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Em português, tal como na maioria das línguas românicas, o termo “fantástico” torna-se com frequência objecto de emprego ambíguo, dado ser (nem sempre conscientemente) aplicado a, pelo menos, duas ordens diferentes de conceitos no domínio dos estudos literários. Com efeito, surge, não raro indiferentemente, a designar quer um género quer uma noção de maior abrangência (de há muito apontada por críticos como Northrop Frye, Gérard Genette ou Robert Scholes) que, em regra, se denomina modo. Esta expressão, por sua vez, aplica-se a categorias que envolvem um elevado grau de generalidade e abstracção (algo como universais da arte literária) cuja vigência se tem mantido praticamente inalterada através dos tempos a despeito das contingências e mutações inerentes ao evoluir dos sistemas sociais e culturais. Trata-se de construções teóricas decorrentes de reflexões de índole predominantemente dedutiva sobre os “possíveis” da literatura, nas quais se procura levar em conta as combinações de elementos discursivos já realizadas na prática, assim como determinar ante rem as susceptíveis de realização futura. Às grandes esferas conceptuais pressupostas pela noção de modo, têm sido atribuídas outras designações, como “formas naturais” (Naturformen) por Goethe, “arquigéneros” (archigenres) por Gérard Genette ou “géneros teóricos” (genres théoriques) por Tzvetan Todorov. Entre as elaborações tipológicas baseadas nesta ordem de considerações, a tripartição clássica das modalidades fundamentais da enunciação (épica-narrativa, lírica e dramática) constitui, se não a mais correcta e operativa, pelo menos a mais influente e duradoura. Quando assim perspectivado, o modo fantástico abrange (como, entre outros, Rosemary Jackson apontou) pelo menos a maioria do imenso domínio literário e artístico que, longe de se pretender realista, recusa atribuir qualquer prioridade a uma representação rigorosamente “mimética” do mundo objectivo. Recobre, portanto, uma vasta área a muitos títulos coincidente com a esfera genológica usualmente designada em inglês por fantasy. Torna-se, a propósito, curial encarar os intuitos representacionais da globalidade da literatura como subdivisíveis grosso modo em duas gigantescas esferas que se poderiam denominar icástica ou realista, por um lado, e fantástica, ou fantasiosa, por outro. Justifica-se igualmente lembrar que as múltiplas obras abrangidas pela segunda se repartem por diferentes géneros (entre os quais o maravilhoso, o estranho e o fantástico), assim como por certas zonas-limite do misterioso. Estendem-se, ainda, por outra enorme região que, embora apresente contornos algo indefinidos, se encontra muito próxima do conceito de género: a ficção científica.

Perante o grande número e a heterogeneidade dos textos (e, mesmo, dos géneros) aqui envolvidos, convém examinar com alguma atenção aquilo que invariavelmente surge em qualquer deles e justifica, portanto, a sua subsunção no modo fantástico. Trata-se, afinal, do único factor que, a despeito da sua índole extra-literária é comum a todos: o conceito geralmente designado por sobrenatural. Porém, apesar de muito corrente, esta expressão levanta óbices quanto à sua plena adequação aos elementos aqui considerados. De facto, no seu sentido mais comum e mais lato, deixa subentender que as entidades ou ocorrências por ela qualificadas ultrapassam a natureza conhecida, situando-se, de algum modo, num plano simultaneamente exterior e superior. Por outro lado, o vocábulo tem servido ao longo de eras para referir uma multidão heterogénea de elementos, desde as fadas, os espectros ou as divindades das diversas religiões aos casos de percepção extra-sensorial e às figuras monstruosas de lendas populares como o lobisomem ou o vampiro. Para além de muito diversificados, estes elementos variam com as épocas e as culturas em que surgem e vigoram. Portanto, modificam-se, desaparecem ou passam a sobreviver residualmente nas artes e na memória colectiva conforme o conhecimento invade o real, explorando as largas zonas de sombra que nele ainda subsistem. Acresce que numerosas narrativas integráveis no modo fantástico, sobretudo as de ficção científica, se reportam a alterações de ordem espacial ou cronológica, situando a acção em épocas futuras ou aludindo a forças, experiências ou inventos que, contudo, estão longe de poder ser qualificados como sobrenaturais. Com efeito, embora não sendo empregados ou, mesmo, conhecidos na época de publicação da obra, tais elementos nada têm de alheio à natureza nem contraditam em regra os princípios científicos então aceites. Uma tal diversidade torna inevitável recorrer a um conceito mais englobante do que o de sobrenatural, não se deixando embora de empregar este quando tal se justifique. Ora, se em qualquer época histórica, as entidades ou ocorrências ditas sobrenaturais revelam um traço de facto comum, ele consiste não numa efectiva fuga à natureza, mas no facto de se tornar impossível comprovar de modo universalmente válido a sua existência no mundo conhecido. Daí não haver grande sentido em denominar tais elementos com base em características que, na melhor das hipóteses, se poderão considerar meramente presumíveis. Ao contrário, a tentativa de os qualificar deverá ser deslocada para a perspectiva do sujeito humano do conhecimento, tornando-se, portanto, preferível subsumi-los numa categoria mais ampla e apelidá-los de “metaempíricos”. Efectivamente, quer, por exemplo, um lobisomem, uma fada ou o deus Pã quer fenómenos fictícios mas possíveis, embora ainda não compreendidos ou sequer detectados pelos vários ramos do saber, apesar das suas óbvias diferenças, correspondem a tal designação. Isto, não obstante os elementos do primeiro tipo (de facto sobrenaturais, caso existissem) relevarem apenas do imaginário, enquanto alguns do segundo possam porventura vir a ser detectados e compreendidos mediante novos dados a estabelecer no futuro. Assim, o conceito expresso pelo termo aqui proposto recobre não só as manifestações de há muito denominadas sobrenaturais, mas, ainda, outras que, não o sendo, também podem parecer insólitas e, eventualmente, assustadoras. Todas elas, com efeito, partilham um traço comum: o de se manterem inexplicáveis na época de produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva.

Diversas razões apontam as vantagens operativas do conceito de metaempírico face ao de sobrenatural na abordagem do modo fantástico. Desde logo, o primeiro abrange uma gama bastante mais ampla de figuras e situações. Depois, permite inferir o teor relativo e contingente das noções que qualifica e da forma como estas têm sido encaradas através da história, assim evidenciando a sua estreita dependência da sucessão de factores sociais e culturais. Por outro lado, embora a expressão deixe depreender que, pelo menos na sua grande maioria, essas manifestações são indetectáveis e incognoscíveis, não exclui necessariamente a hipótese de algumas delas virem a tornar-se objecto de conhecimento em épocas subsequentes. Daí que muitas personagens e acontecimentos insólitos correntes em narrativas de ficção científica (alienígenas, mundos paralelos, viagens interestelares ou no tempo, etc.), situando-se embora para lá do âmbito mais restrito do sobrenatural, sejam, com este, inteiramente englobáveis no conceito mais lato de metaempírico. Portanto, as narrativas de quase todos os tempos em que elementos a ele circunscritos assumem uma função central no desenvolvimento da intriga constituem (desde a epopeia de Gilgamesh às modernas histórias fantásticas) o que se poderá denominar “ficção do metaempírico”, afinal outra designação possível do modo fantástico.

Dado todas as obras integráveis neste último partilharem do metaempírico, a distinção entre os géneros que se lhe circunscrevem terá de resultar das atitudes veiculadas pelos textos em relação a ele. No essencial, as variantes possíveis daquelas resumem-se praticamente a três: aceitação, rejeição ou dúvida. Assim (como se aludirá mais pormenorizadamente em artigos dedicados a cada uma dessas classes de narrativas), enquanto, no maravilhoso, a manifestação metaempírica nunca é negada ou de algum modo posta em causa, o estranho, pelo contrário, evoca-a para, em regra no final de acção, a afastar com uma explicação racional. Por fim, o fantástico adopta uma posição indecisa, ambígua, entre as duas, sem afirmar ou negar plenamente a eventualidade da sua coexistência com o mundo conhecido. Portanto, com base nas diferentes reacções perante o metaempírico adoptadas nas obras, é possível divisar no modo fantástico algo como um espectro ou um continuum susceptível de abranger pelo menos três géneros: o estranho, o fantástico e o maravilhoso. Esta sequência implica um duplo crescendo. Ele surge, em primeiro lugar, no grau de alteridade conferido a certas personagens ou situações prodigiosas. Depois, na intensidade do cepticismo ou da crença quanto à efectiva existência daquelas evidenciados pelo narrador ou por outras figuras fictícias. Daí que, estendendo-se desde textos cujo contrato implícito de leitura os compromete ainda a uma representação tão mimética quanto possível do mundo objectivo, o continuum aqui considerado abranja, no extremo oposto, obras onde aquele é objecto da mais completa e arbitrária distorção. Daí, também, que a demarcação entre os géneros esteja longe de ser nítida, não raro se verificando em narrativas de transição um acentuado sincretismo de caracteres e uma consequente fluidez de fronteiras.

Embora já inicie a sua progressão em certas narrativas incluíveis no género misterioso, o crescendo de alteridade não ultrapassa um teor “natural” e admissível de insólito antes de alcançar a zona limítrofe com o estranho. É, por exemplo, já notório em certos thrillers ou em histórias de terror não sobrenatural, o mesmo se verificando em romances policiais como Ten Little Niggers (1940) de Agatha Christie, onde, além dos crimes, parece tomar forma algo que se presume impossível face às leis da natureza. Porém, só nas obras circunscritas ao estranho certas manifestações começam a revestir uma aparente índole metaempírica, a qual, contudo, vem, antes do final, a ser objecto de completa racionalização. Inserem-se neste domínio as histórias de terror de sobrenatural explicado (entre as quais se contam romances góticos de diferentes épocas), a par de grande parte da ficção científica mais concordante com os princípios do mundo físico. A partir da zona limítrofe entre o estranho e o fantástico, o sobrenatural, embora não plenamente aceite, nunca é negado em definitivo. Entre os textos que mais claramente evidenciam a constante indefinição e o consequente equilíbrio da ambiguidade fantástica, poder-se-ão apontar “La Vénus d’ Ille” (1837) de Prosper Mérimée e The Turn of the Screw (1898) de Henry James. Finalmente, apenas no maravilhoso se vem a verificar a admissão sem reservas e, não raro, sem regras do metaempírico em qualquer nível da narrativa, o que, naturalmente, proporciona uma enorme latitude no tocante a efabulação. Até certo ponto por isso, aquele género mostra-se de longe o mais prolífico entre os aqui considerados, tendo revelado uma extrema adaptabilidade a muitos e diversos condicionalismos socioculturais durante a sua longuíssima vigência histórica. Daí a extremamente grande variedade de classes de textos em que é subdivisível. De facto, estende-se por uma vasta gama, desde os mitos, os contos de fadas ou o romance gótico de sobrenatural aceite a diferentes áreas da ficção científica, como as denominadas heroic fantasy ou sword and sorcery.

{bibliografia}

Lucie Armitt, Theorising the Fantastic (1996); Irène Bessière, Le Récit fantastique: la poétique de l’incertain (1974); Clive Bloom, Gothic Horror: a Reader’s Guide from Poe to King and Beyond (1998); Julia Briggs, Night Visitors: the Rise and Fall of the English Ghost Story (1977); Christine Brooke-Rose, A Rhetoric of the Unreal: Studies in narrative and structure, especially of the fantastic (1981); Neil Cornwell, The Literary Fantastic: From Gothic to Postmodernism (1990); Filipe Furtado, A Construção do Fantástico na Narrativa (1980); Rosemary Jackson, Fantasy: The Literature of Subversion (1981); Marie Mulvey-Roberts (ed.), The Handbook to Gothic Literature (1998); Peter Penzoldt, The Supernatural in Fiction (1952); David Punter, The Literature of Terror: A History of Gothic Fictions from 1765 to the present day (1980); Jack Sullivan, Elegant Nightmares: The English Ghost Story from Le Fanu to Blackwood (1978); Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique (1970).