Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

A refinada expressão “écriture artiste “ foi criada pelo escritor francês Edmond Huot de Goncourt (1822-1896), no  prefácio a Les frères Zemganno,  datado de 23 de março de 1879, onde se exalta a escritura cheia de requinte, que, romovendo, na literatura, o impressionismo, enche-se, por exemplo, de metáforas e de epítetos raros, ao lado de inversões da construção sintática e de palavras peregrinas: “Le Réalisme, pour user du mot bête, du mot drapeau, n’a pas en effet l’unique mission de décrire ce qui est bas, ce qui est répugnant, ce qui pue: il est venu au monde aussi, lui, pour définir, dans de l’écriture artiste, ce qui est élevé, ce qui est joli, ce qui sent bon, et encore pour donner les aspects et les profils des êtres raffinés et des choses riches : mais cela, en une étude appliquée, rigoureuse, et non conventionnelle et non imaginative de la beauté, une étude pareille à celle que la nouvelle école vient de faire, en ces dernières années, de la laideur”. Os cultores da écriture artiste pintam quadros no texto, como ilustra o próprio Edmond de Goncourt, em seu Journal, de 22 de março de 1882: “Je voudrais trouver des touches de phrases, semblables à des touches de peintre dans une esquisse: des effleurements et des caresses, et, pour ainsi dire, des glacis de la chose écrite, qui échapperaient à la lourde, massive, bêtasse syntaxe des corrects grammairiens.” Para além de toda uma sofisticação na maneira de escrever, de transgredir o código da gramática, de estruturar, avidamente, figuras de retórica, de operar torneios frásticos, essa estética implica uma sensorialidade e, até, uma sensualidade no gesto escritural. Está-se diante de uma écriture-dandy, como convém aos decadentistas todos, sejam franceses, ingleses, italianos, portugueses, brasileiros… (MUCCI, 1994, p. 49-52). Tomando a écriture artiste como culto do artifício, “os decadentistas maquilharam a escritura, na tentativa de transfigurá-la ao máximo, através de fulgurações, refinamentos estéticos, numa exacerbada consciência de estilo” (MUCCI, 1994, p. 67). Sobre o artifício, pondera sabiamente Carlos Ceia: “Termo de origem latina (artificium) que se utiliza como sinónimo de recurso retórico, isto é, o modo ou processo engenhoso pelo qual elaboramos um discurso. Neste caso, um artifício é um sinal de uma intenção artística no acto de criação literária, distinto, portanto, de outros actos naturais e espontâneos. O artifício é um conceito central na poética formalista, estando ligado ao conceito de desautomatização (a libertação das palavras do automatismo que caracteriza o uso de uma língua por um grupo de falantes). O escritor tenta recorrer a estes artifícios para resgatar as palavras do seu uso corrente e ordinário, ou seja, procura ir mais além do mero significante, descobrindo relações e associações poéticas para a linguagem. Os artifícios verbais (as figuras de retórica) permitem concentrar a atenção na mensagem. A função primordial da arte seria então essa desautomatização dos mecanismos de percepção da língua, esse estranhamento que nos conduz à criação artística”.

Pela écriture artiste, o texto coloca-se em cena e, qual dândi baudelairiano, o texto mira-se, constantemente, ao espelho: “o dândi deve aspirar a ser sublime sem interrupção, ele deve viver e dormir diante de um espelho”  (BAUDELAIRE, p. 406).

Garimpando, na preciosa literatura brasileira, aponto uma trindade-esteta, que cultuou, fervorosamente,  a écriture artiste: Machado de Assis, Raul Pompeia e João do Rio.

Sociólogo, professor universitário, diplomata e polímata humanista, José Guilherme Merquior (1941-1991) escreveu, em tons de écriture artiste, uma “breve história da literatura brasileira”, brevíssima, infelizmente, porque a morte roubou-lhe, subitamente, a pena; restou-nos, além de uma saudosa frustração, o livro De Anchieta a Euclides. O capítulo, precisamente dedicado ao carioca Machado de Assis (1839-1908), intitula-se “Machado de Assis e a prosa impressionista”, o que traz uma luz diferente sobre esse escritor carioca, que goza de invejável e mais que merecida fortuna crítica. Merquior inaugura, nestes termos, seu estudo original sobre o criador de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881): “O termo ‘impressionismo’, aplicado primeiro à pintura de Monet e à música de Debussy, passou a designar também uma das correntes lierárias do tardio Oitocentos. A princípio, chamou-se de impressionista apenas a écriture artiste dos irmãos Edmond (1822-196) e Jules (1830-1870) de Goncourt. A ‘escrita artística’ é a linguagem vibrátil de romances como Germinie Lacerteux (1865), nos quais os diálogos e descrições, convertidos em ‘estenografias ardentes’, procuram grafar a aparência vívida da realidade humana (…) Edmond e Jules se  concentravam na pintura refinada das impressões subjetivas, dos estudos d’alma (…). Do mesmo modo que o quadro impressionista se propõe captar as mudanças mais sutis da atmosfera, o estilo hipersensível dos Goncourt buscava figurar a variedade dos estados mentais com a maior precisão possível. No fim do século (XIX), esse idioma literário colorido e nervoso, de sintaxe fragmentária e ritmos evocatórios, fazendo largo uso do imperfeito e da metáfora, foi adotado por grandes narradores e dramaturgos ‘decadentes’. (…) O emprego do mito, do símbolo e do metaforismo não foi nenhuma exclusividade simbolista, e, por outro lado, alguns notáveis prosadores impressionistas, como Eça, perfizeram sua formação estilística independentemente de qualquer contato relevante com o simbolismo. Este é precisamente, aliás, o caso dos impressionistas brasileiros Machado de Assis, Raul Pompeia ou Euclides da Cunha. (…) O mais acabado exemplo brasileiro de “escrita artística” é O Ateneu de Raul Pompeia; mas o grande e originalíssimo representante nacional do espírito e da letra da literatura impressionista é Machado de Assis (…)”(p. 150-153).

Mais adiante em seu excelente livro, Merquior retoma o fluminense Raul d’Ávila Pompeia (1863-95), que, com o  romance O Ateneu (1888), figura como “nosso maior romancista impressionista, depois de Machado de Assis” (p. 191); “(…) O Ateneu é uma sucessão de quadros mentais – uma serie impressionista de ‘páginas’ soltas na consciência do narrador. De evocações altamente plásticas, como seria de esperar de um escritor-artista” (p. 192).

Eis um terceiro fiel, no Brasil,  da écriture artiste: João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, nascido no Rio de Janeiro, a 5 de agosto de 1881, e falecido, na mesma cidade, em  23 de junho de 1921); foi jornalista, cronista, contista, tradutor e teatrólogo.

O escritor carioca usou, ainda, outras máscaras, como Claude, José Antonio José, Caran d’Ache, Joe ou Godofredo de Alencar (heterônimo com vida própria – como os de Fernando Pessoa); mas o pseudônimo mais constante e que, finalmente, ficou, foi João do Rio, inspirado em Jean de Paris, de Le Figaro.

Por suas atitudes de dândi tropical (“dândi de salão”, como o chamaram seus desafetos), foi cognominado de “Oscar Wilde brasileiro”, de quem, aliás, traduziu, em 1919, O retrato de Dorian Gray; traduziu, igualmente Jean Lorrain, aliás, Paul Alexandre Martin Duval (1855-1906); tanto o decadentista irlandês quanto o decadentista francês influenciaram o estilo do autor de A alma encantadora das ruas (1908).

Afirma Ricardo Lísias: “Mesmo com particularidades inevitáveis, seguramente João do Rio é um representante  importante da Belle Époque que, um tanto tardiamente, o Brasil importou da Europa (in WILDE, 2006, p. 12-13). Em seguida, Lísias chama, citando a Antônio Arnoni Prado, a atenção para a produção literária de João do Rio, “mediada pelo compromisso com o ideal estético de vida, copiado ao art nouveau” (p. 18).

Já, no âmbito paradigmático da literatura portuguesa, além do mencionado Eça de Queirós (1845-1900), basta que se cite Al Berto, aliás, Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997), poeta, pintor, editor e animador cultural, lídimo representante de uma sofisticadíssima plêiade, que funde a poesia na prosa, criando uma espécie de deambulações fragmentárias. No texto, intitulado “Telão pintado de vida e obra”, escreve Liana Rosa sobre o dândi coimbrão: “Uma obra que se lapidou como representação de uma vida, de um autor, no sentido do poeta trágico moderno, ao estilo de Rimbaud; ou uma obra que se cruza com a vida.

Al Berto definiu poeticamente o horizonte em que se quis ver desenhado, ou seja, situou-se ele próprio, oniricamente, na realidade das suas obras. Há, na sua obra, a dificuldade de definir os limites da realidade e da ficção. Criou Al Berto os cenários pitorescos caravaggianos onde encenou a sua vida numa exuberância excessiva; exuberância essa que remete para a morte e para o sexo, e onde se cruzam imagens de mar, deserto, fogo, noite, eternidade, silêncio, corpo, aveias, sémen, paixões… Além de ter estudado Belas-Artes, Al Berto escreveu sobre artes plásticas (“A Vida Secreta das Imagens”), usou soberanamente a fotografia como um detonador de fantasmas: os seus e os de quem se cruzava consigo nas noites boémias. A sua poesia é carregada de uma encenação dramática capaz de oscilar entre os sentidos mais eruditos e a pacatez da prosa. A prosa, por sua vez, transfigurada poeticamente, é elevada a uma espécie de  condição mítica”. Inscrevo um exemplo de écriture artiste, à la Al Berto, um simples aceno, um fragmento que denuncia o pseudônimo ou, como dizem, belamente, os ingleses – nom de plume: “Um nome… Um nome, um nome apenas, evocando alguém, um lugar ou uma coisa, é a bagagem suficiente para avançar pela noite dentro, esperar a morte, ou iniciarmos o regresso…”  ( O Anjo Mudo, Contexto, 1993).

Nos volteios da écriture artiste, joga-se, gozosamente, a vida e a morte: escrever, álibi da morte.

bibliografia

Al Berto: Contexto (1993); Charles Baudelaire: Oeuvres complètes (1980); Edmond de Goncourt: “Préface”, Les frères Zemganno (1879), acesso em 25/1/2009; http://visualiseur.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k208027x (acesso em 25/1/2009); http://www.freres-goncourt.fr/ZemgannoZola/preface.htm (acesso em 25/1/2009); id.: Journal (1882); José Guilherme Merquior: De Anchieta a Euclides, 2.ed. (1979); Latuf Isaias Mucci: A poética do Esteticismo (1993); Id.:  Ruína & simulacr d ecadentista: uma leitura de Il piacere, de D’Annunzio (1994).  Liana Rosa: http://lilianarosa.blogspot.com/2008/02/al-berto-poeta-portugus.html (acesso em 26/1/2009); Raul Pompéia: O Ateneu: crônica de saudades (1979); Ricardo Lísias: “Introdução”, In: WILDE, O retrato de Dorian Gray, Trad. João do Rio (2006).