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O conceito de «hibridação» (ou «hibridismo») é hoje amplamente conhecido e utilizado em diversos contextos, particularmente no âmbito dos chamados estudos pós-coloniais, como categoria de análise de formas culturais novas que emergiram em zonas de contacto cultural propiciado pelo colonialismo europeu. Projetando identidades diferenciadas, articulando-se por um espaço ambivalente em virtude do processo de colonização ou, então, de movimentos de diáspora que incluem (mas não esgotam) os movimentos da colónia para o país colonizador, o texto literário híbrido encena o entre como categoria existencial e crítica de um modo extremamente rico e produtivo, tanto do ponto de vista da organização linguística dos textos, como dos modos de narrar e das configurações dos respetivos imaginários.

Muito menos utilizado, embora com indiscutíveis potencialidades teóricas e críticas, é o conceito de imaginário imigrante. Este conceito foi originalmente formulado pelo investigador filipino (a trabalhar nos EUA) Vicente L. Rafael no âmbito dos chamados Estudos de Área. Registe-se esta colocação inicial do conceito:

 Along the way, I want to tease out what I take to be  an implicit though repressed term in the discussion of  the current and future formations of  area studies: the presence of what I will call an immigrant imaginary,  which  calls into  question the  integrationist  logic inherent in liberal conceptions of area studies.

(Rafael, 1994: 98).

Mais tarde, o conceito de “imaginário imigrante” foi expandido no sentido de designar o fenómeno de drásticas mudanças demográficas e de massivas imigrações para os EUA de cidadãos latino-americanos que se verificou nas últimas décadas. Mas na sua origem ele orienta-se para a problematização das relações entre a especificidade local da produção de conhecimento e o posterior lugar estrangeiro de intervenção desse conhecimento. Vale pena referir que Vicente Rafael acentua o papel desempenhado no capitalismo global pelas migrações massivas, juntamente com os regimes flexíveis de trabalho e as disseminadas tecnologias de comunicação. Registe-se a continuação do argumento citado antes:

 The differences  marked  out   by  the regional  term would,  from the  perspective  of  the  immigrant,  begin  to migrate “in  here,”  redrawing the distinction between  “us”  and “them.” It is my sense, then, that to speak of  “indigenous scholars,” for whatever strategic reasons,  in the late-twentieth-century United  States simultaneously raises the question of the immigrant imaginary in the configuration of area studies. For what if one were to take seriously the position of Southeast Asian scholars who, for various reasons,  cannot or choose not to return to  their “homes”?  What  are the predicaments  faced  by  immigrant scholars  once  they  are  pa r t   of  a  plural diaspora? How  do these predicaments  differ  from those  of  American  and indigenous  scholars? (Indeed, what is “American’? How secure is that term? And isn’t  “indigenous”  always  already  a historical  and therefore  negotiated  term?) How does  one  begin  to  think  about  the  works  of  Southeast Asian  scholars (admittedly few in the U.S.,  but whose  conditions may be  analogous  to those of immigrant scholars from Latin America, Africa, the Middle East, Europe,  and so on), who are no longer,  if they  ever were, indigenous to any one place? How might their work-inescapably  written in conversation with other disciplines and other areas and engaged in various projects of affiliation  both  within  and  outside  the  academy-play  differently  to “American”  and “Southeast  Asian”  audiences? Indeed, how would such Southeast  Asian  scholars  negotiate  the  difference  in  what  counts  as “scholarship,”  “critique,”  “commitment,”  and  “career”  between  “here” and “there”?

(Rafael, id: 103)

Sem dúvida que a aplicabilidade do conceito de “imaginário imigrante” transborda tanto a preocupação tradicional com o Outro que vive geograficamente a sul da fronteira dos EUA como a nova atitude que encara as fronteiras, não só no seu movimento para norte mas sobretudo na própria realidade interna dos EUA. Por isso, o conceito tem sido utilizado posteriormente por vários investigadores para designar o fenómeno migratório mundial, bem como para enquadrar a problematização das relações espaciais entre centro e periferia, entre lugar de origem (home) e estrangeiro.

Quando transferido para o estudo da literatura, ou melhor, para o estudo da expressão literária daquele terceiro espaço de que fala Homi Bhabha, o conceito de «imaginário imigrante» ultrapassa o mero interesse (mais ou menos exótico) em compreender o Outro que se dá a ver na sua diferença. O conceito de  “imaginário imigrante» permite situar uma prática imaginativa (literária) emblemática das próprias ambivalências psicológicas, das contingências sociais e das interrogações existenciais de todos os deslocados e/ou exilados.

Se somos sempre o outro de alguém, conforme nos assegura o polémico Rustom Barucha (1994), então isso significa que podemos alargar o “imaginário imigrante” a todos os deslocados e exilados, esbatendo especificidades derivadas de diferenças étnicas ou religiosas de modo a conservar unicamente a imaginação  como lugar de representação das ambivalências e contingências. Colocado deste modo o problema, então um horizonte se abre à inclusão de autores muito diversos num mesmo espaço de estudo e compreensão. Ao serem comuns, as temáticas abertas à experiência literária imigrante acabam por tornar cada país representado (ou mesmo uma região)  numa sinédoque, conforme refere Arnold Harrichand Itwaru a propósito de vários romances publicados no Canadá, ou numa experiência qualitativa da vida social de um determinado país enquanto possibilidade de uma existência imigrante geográfica e culturalmente mais global:

 The immigrant writer is not merely the author who speaks about the immigrant experience, but one who has lived it, one whose response is an irruption in words, images, metaphors, one who is familiar with some of the inner as well as the outer workings of these particular contexts.

(…)

Each of the novels selected presents a number of versions of Canadian reality which in many ways go beyond the political, traditional, sociological and journalistic notions of Canada. They demonstrate that the term Canada is merely a synedoche, that its existence lies in the way individuals and groups experience social life within the landscape named Canada (…).

(Itwaru, 1990: 25-26)

Como se adivinha, são muito numerosos os exemplos possíveis de textos literários contemporâneos identificados pelos traços do “imaginário imigrante”. A produtividade do conceito é grande. A título de mera ilustração crítica, convoco  um romance da autoria de Romesh Gunesekera intitulado O Relógio de Areia (The Sandglass). Nascido no Sri-Lanka (antigo Ceilão) em 1954, este é um escritor bilingue que vive em Londres há muitos anos, sendo o romance em questão tanto acerca de um determinado modo de vida de uma família imigrante nesta cidade britânica como acerca da experiência de uma outra parte da mesma família no Sri-Lanka.

Somos colocados no ano de 1993, na altura em que Prins Ducal, um empresário do Sri-Lanka, chega a Londres para o funeral da mãe, Pearl Ducal. Esta senhora tinha saído do Sri-Lanka há quarenta anos, depois da morte do marido, Jason Ducal. Em Londres, esta senhora conviveu com Chip, que é o narrador da estória, um homem desenraizado que, sendo cingalês, se assume mais como observador do mundo do que protagonista com identidade própria. Quando este Chip recebe o filho da senhora morta e se fazem os preparativos do funeral, este homem começa então a desenrolar a estória da família Ducal e com ela a revelação de episódios do Sri-Lanka após a independência (1948), sobretudo durante os anos Cinquenta e Sessenta do século passado. A narrativa desenvolve-se num ritmo muito próprio, alternando episódios de vida no Sri-Lanka com cenas do quotidiano britânico de gente imigrada que, de facto, parece ter perdido a noção de pátria, de nação ou até de cultura. Os títulos dos treze capítulos são os de determinados momentos no período de vinte e quatro horas de um qualquer dia (raiar do dia, manhã, dez horas, um quarto para as cinco, madrugada, etc.). Este simbolismo do tempo ajuda a promover a atmosfera por que duas gerações de duas famílias em dois países se dão a ver nas suas idiossincrasias de gente imigrada, mas também afirma a representatividade pungente dos dramas que decorrem da condição de muitos homens e mulheres que vivem naquilo que é considerado ser a condição pós-colonial do mundo contemporâneo.

 {bibliografia}

Barucha, Rustom. (1994): “Somebody’s Other: Disorientations in the Culture Politics of Our Times”, in Third Text. Third World Perspectives on Contemporary Art & Culture, no. 26, Spring: 3-10.

Bhabha, Homi (1992). “Of Mimicry and Men: The ambivalence of Colonial Discourse”, in Philip Rice & Patricia Waugh (orgs.): 120-145.

Gunesekera, Romesh (1999). O Relógio de Areia. Tradução de Sandra Oliveira. Lisboa: Editorial Notícias.

Itwaru, Arnold Harrichand (1996) The Invention of Canada. Literary Text and the Immigrant Imaginary. Toronto: Tsar.

Rafael, L. Vicente. 1994. “The Cultures of Area Studies in the United States”. Social Text, No. 41, Winter: 91-111.

Rice, Philip & Patricia Waugh (orgs.) (1996). Modern Literary Theory: A Reader. London: Edward Arnold.