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Fortuna de Dante Alighieri (Florença, 1265 – Ravena, 1321) no campo da literatura e do pensamento, bem como no domínio das belas-artes. Ao pôr em causa o universalismo linguístico-cultural de base latina, a partir da valorização da realidade literária, linguística e cultural italiana, elevada ao nível da provençal e da francesa, e ao desenvolver o seu labor literário a partir da interferência dos modelos de género, o vate florentino superou barreiras que até ao momento eram dadas por intransponíveis. A sua obra coloca-se num ponto de charneira fulcral, ganhando, desta feita, uma projecção incomensurável, que se estende ao longo dos séculos. É animada por um impulso orgânico que culmina no poema supremo, a Commedia — entre o alargamento dos conteúdos do lirismo amoroso documentado pelas páginas da Vita nuova, a teorização em chave poética e retórica acerca do uso do vulgar enquanto língua literária, no De uulgari eloquentia, a assunção do vernáculo como língua de alta cultura, no Convivio, ou a reflexão acerca dos elos que ligam Império e Papado, felicidade terrena e felicidade eterna, na Monarchia.

A Commedia inspirou de imediato sérias reservas não só aos seus adversários políticos e a certas ordens religiosas (os Dominicanos proibiram os frades mais jovens de lerem Dante), como também aos eruditos que deploravam o afastamento do modelo da Eneida e o uso do vulgar num poema de tão vasto saber. Este juízo, emitido por Giovanni del Virgilio (numa epístola métrica dirigida ao poeta florentino, que lhe responde de imediato, com subtil ironia, num poema modelado em humilis stilus que é um marco fundamental da recuperação do bucolismo), por Petrarca (de tal forma que o poeta de Arezzo sentiu necessidade de se justificar, na célebre carta Fam. 21. 15.) e por tantos outros intelectuais trecentistas, repercutir-se-á através dos séculos, de Coluccio Salutati a Voltaire. Se, por um lado, este tipo de polémica condicionou, em certa medida, a difusão do poema, por outro lado, em muito favoreceu a sua divulgação, tendo em linha de conta os movimentos de reacção que desencadeou. O apreço merecido pela Commedia é sobejamente documentado pelo elevadíssimo número de manuscritos trecentistas e quatrocentistas que transcreve o seu texto, bem como pela heterogeneidade do respectivo público — nobreza culta, intelectuais com a mais diversa integração geográfica, mercadores e até artesãos.

A fortuna da obra de Dante tem por características fundamentais, de um modo só aparentemente paradoxal, a “inclusividade” e a “irrepetibilidade”. Conforme nota Contini, a contradição vital que a sustém diz respeito ao facto de a sua cultura, escolástica, enciclopédica, universalista, ser alvo de uma ampla recepção no âmbito do particular e do nacional. As páginas escritas por aquele membro da velha classe dirigente, nostálgico da antiga ordem social, alcançaram uma enorme receptividade nos ambientes da burguesia mercantil. O De uulgari eloquentia erige-se em baluarte do grupo de intelectuais que, nos séculos XVI e XVII, defendeu a excelência do vulgar toscano, num momento em que a língua viva, fruto de um processo histórico de “municipalização” de há muito em curso, se encontrava substancialmente distanciada do modelo dantesco. Schiller, Herder e Schlegel, em clima romântico, interpretam a obra de Dante como suprema expressão do binómio que associa o plano da história ao sentimento de actualização dessa história, o universalismo ao génio da individualidade criadora, elegendo-a como epopeia da civilização medieval cristã. A “inclusividade” que lhe é própria liberta sempre o espaço de manobra necessário para contornar obstáculos resultantes de antíteses contingentes. Por consequência, o distanciamento temporal torna-se garantia da sua proximidade vital, ou seja, da sua “traduzibilidade” noutros sistemas culturais.

Será esta uma das razões pela qual a citação, bem como a adaptação de fragmentos textuais de Dante aos mais variados contextos, o apoio na sua auctoritas, a tradução (também para latim e para dialecto), ou a apropriação mais ou menos discreta da letra dos seus versos, constituem um fenómeno cujas fronteiras são incomensuráveis. Mas se Santillana, Agrippa d’Aubigné, D. Manuel de Portugal, Tasso, Milton, Gogol, Joyce ou Pound não foram indiferentes às determinantes estruturais da Commedia, o traço que deu origem ao poema permanece irrepetível. Em âmbito crítico, a consagração do fenómeno literário de “petrarquizar” (de tal forma que o petrarquismo se define como código) contrasta com as reservas merecidas por uma prática de “dantizar”. Ao unilinguismo (aspiração a um absoluto estilístico, quer em vulgar, quer em latim); à unidade de tom e de léxico; à escassez de interesses linguísticos teoréticos; e à concentração em torno de um conjunto de textos fundamentais que caracterizam o labor de Petrarca, contrapõe-se, de acordo com o célebre paradigma de Contini, um Dante vinculado ao plurilinguismo (no plano estilístico e dos géneros literários); à pluralidade dos tons e estratos lexicais implicados; a um permanente interesse teorético; e a um incessante experimentalismo. Se Petrarca foi o primeiro imitador de si mesmo, dada a frequência com que retomou temas e estilemas cunhados por ele próprio, os seus sequazes exploraram as potencialidades oferecidas por um sistema linguístico-literário que tem por característica essencial a “repetibilidade” — enquanto absoluto. De outra forma, não é fácil delimitar um Dante que se repita a si próprio, em virtude da abertura e da atracção pela novidade que caracterizam o seu método de trabalho — enquanto marcas de um excesso. O absoluto de Petrarca é eterno e, como tal, circular e repetível, o excesso de Dante é o unicum que compreende também o efémero e o contingente, abrindo-se, como tal, à explicitação e ao comentário. Assim se compreende a amplitude da exegese dantesca, que desde os primórdios do século XIV até hoje, não tem cessado de engrossar o seu caudal, estendendo-se aos mais diversos campos da crítica e do ensaísmo.

Neste sentido, poderemos admitir que, tal como Petrarca foi o primeiro petrarquista, assim Dante foi o primeiro comentador da sua própria obra, quando, na epístola que acompanha o envio a Can Grande della Scala da Comoedie sublimen canticam que decoratur titulo Paradisi, elabora uma apresentação geral do poema e uma interpretação dos versos iniciais do Paradiso. Os pressupostos metodológicos que enformam a sua leitura virão a ser posteriormente seguidos pelos muitos comentadores desta obra-prima da literatura mundial. Aliás, os critérios com base nos quais Dante justifica o título Commedia (ou melhor, Comedìa, em conformidade com a norma linguística trecentista) são formulados à margem dos parâmetros de uniformidade ditados pelas poéticas clássicas: uma obra cuja matéria é a principio horribilis et fetida e no fim desiderabilis et grata, escrita numa linguagem humilis, quia locutio uulgaris in qua et muliercule comunicant. O adjectivo divina, que não é do punho de Dante e pode induzir o leitor a interpretações erróneas, foi introduzido na tradição impressa por Ludovico Dolce, na edição veneziana de 1555. Na sequência de rigorosos estudos levados a cabo pelos filólogos que, no início do século, prepararam a edição nacional, foi definitivamente eliminado do seu título.

bibliografia

Daniele Mattalía, “Dante Alighieri”: I classici italiani nella storia della critica (1956); Francesco Maggini, “La critica dantesca dal ’300 ai nostri giorni”: Questioni e correnti di storia letteraria (1949); Giacinto Manuppella, Dantesca luso-brasileira. Subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri (1966); Gianfranco Contini, Un’idea di Dante. Saggi danteschi (1992).