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A expressão QUARTA PAREDE, tão celebrada entre práticos e teóricos do teatro, expressa uma convenção teatral muito particular e específica da cultura e da prática teatral ocidental. Associada a esta fórmula encontra-se uma segunda expressão que, não sendo menos importante, é complementar à primeira, FATIA DE VIDA. Juntas, ambas expressões empregadas no jargão da gente de teatro encerram, em parte, a própria essência da proposta estética do Naturalismo no teatro idealizada por Émile Zola. Do ponto de vista histórico, tanto o teatro grego quanto o teatro latino ignoraram essa convenção. Da mesma forma, o teatro medieval tanto na sua forma mais erudita quanto popular também não esteve subordinado a este preceito. As formas populares de teatro do tipo teatro ambulante, Comedia dell’Arte, farsas entre outros, além de terem ignorado o princípio de uma QUARTA PAREDE trabalharam, por assim dizer, no sentido inverso, isto é, reforçando sempre que possível uma comunicação direta entre atores e público, sendo os atores inclusive apostrofados pelos espectadores e vice-versa, dependendo do calor da representação e dos estados de ânimos da platéia. Seguindo-se o mesmo princípio pode-se afirmar, igualmente, que o Teatro Elisabetano, bem como o seu homólogo, o Teatro do Século de Oro espanhol, sobretudo por conta de suas configurações espaciais e de uma dramaturgia por vezes híbrida, graças à presença de uma estrutura dramática contaminada pelo elemento épico, não estabeleceram pontos de contato com a noção em questão. Pode-se arriscar a afirmação de que já germinaria o princípio da QUARTA PAREDE desde o século XVII, quando da sistematização de um teatro dito de corte à maneira do Teatro Clássico Francês. Essa dramaturgia, dita clássica, fora condicionada ao rigor de uma estrutura dramatúrgica, sobretudo, na comédia e na tragédia, balizadas pela releitura que foi feita da Poética de Aristóteles neste período na França. Ao longo do século XVIII, essa germinação eclodiria na configuração do princípio do tableau defendido por Diderot na direção do Drama Burguês. Deste período em diante, a percepção de que certa autonomia da ação dramática poderia ser atribuída à cena, que por sua vez buscava se dobrar sobre si mesma constituiria agora um pequeno mundo que só aguardava a estética Naturalista para se consolidar e confirmar sua eficácia.

No ocidente, a origem da expressão QUARTA PAREDE é bem datada e relacionada diretamente à estética Naturalista, não temos dúvida. Nesse sentido, salientamos dois aspectos distintos que contribuem para o aperfeiçoamento e emprego da convenção da QUARTA PAREDE.

O primeiro aspecto é de caráter espacial. Isto é, com a consolidação do palco dito frontal ou à l’italiana com a sua tradicional moldura de cena, se obtém a confirmação de um tratamento pictural ao palco à maneira da pintura com o emprego da perspectiva. Além do fato de que o próprio edifício teatral, como local de sociabilidade, se fechara sobre si mesmo, consolidando a ruptura entre palco e platéia por meio da moldura de cena; do fosso; do proscênio; da ribalta e da iluminação. Lembre-se, neste sentido, das experiências de Richard Wagner em Bayreuth que por volta de 1875 experimentava apagar os lustres da sala onde se localizava a platéia mantendo acesa somente a iluminação do palco durante a representação. Esse procedimento enfatizava o enquadramento da cena. Essa ruptura entre palco e platéia fundava uma distância que isolava, parcialmente, a cena para o conforto dos olhos do espectador.

O segundo aspecto já é de natureza dramatúrgica e revela igualmente o artificialismo do procedimento da QUARTA PAREDE. O repertório de procedimentos dramatúrgicos tais como o do aparte; do monólogo e/ou do solilóquio; da presença do épico na estrutura dramática; do efeito do cômico; das árias nas óperas realistas ou veristas; os gêneros lírico-musicais como operetas, revistas de ano, mágicas, burletas e vaudevilles entre outros se manifestam em lapsos de tempo maior ou menor ao longo da representação, agora no intuito de desfazer a convenção, quebrando o princípio da QUARTA PAREDE ao permitir que o ator se dirigisse diretamente ao espectador, não o ignorando mais.

Em termos objetivos, pode-se dizer sobre a convenção da QUARTA PAREDE, que ela se estabelece com o fito de promover a ilusão cênica, diria-se mesmo que a noção de QUARTA PAREDE sintetizaria o corolário Naturalista na busca pela eficácia do efeito de real, do máximo de ilusionismo. A estética Naturalista conforme fora pensada por Émile Zola e, por conseguinte desenvolvida em termos de encenação por André Antoine na França e Constantin Stanislavski na Rússia considerava que entre ator e público havia uma “quarta parede imaginária, invisível”; quarta parede visto que, as três restantes seriam o espaço suficiente para caracterizar o ambiente, ou o meio onde se desenvolveria a ação e evoluiria o personagem. O ambiente, sobre o palco, seria composto pela parede do fundo e pelas duas paredes laterais que ao encontrarem, cada uma pelo seu lado, a boca de cena, por convenção, formariam as quatro paredes do local da ação. O drama estaria enclausurado, fechado, concentrado sobre si nessa operação de estabelecer uma lógica realista, de causa e efeito à representação. Esta quarta parede seria a “janela” ou o “buraco da fechadura” por onde o espectador apreciaria o que transcorria sobre o palco na condição de voyeur, distante da ação, porém não menos envolvido por ela, graças ao efeito de identificação que se esperava alcançar. Conta-se que Constantin Stanislavski ao proceder aos ensaios de certas peças, conduzia o ensaio dos atores em ambientes fechado por cortinados ou qualquer outro acessório que fizesse com que os interpretes não soubessem de que lado se “abriria” a cortina que revelaria ao espectador a QUARTA PAREDE. Este procedimento, por parte do mestre russo, levaria os atores à não se condicionarem em suas interpretações prevendo a priori por onde seriam observados pelos espectadores.

Com Pirandello, em 1921, quando da estréia de Seis personagens à procura de um autor principiava, do interior da própria forma dramática realista pura, o abalo da convenção da QUARTA PAREDE. O princípio de ilusionismo que fora construído, paulatinamente, desde o Renascimento, com o advento da perspectiva, com seu coroamento no Naturalismo, começava a ser questionado. Outra experiência no âmbito da dramaturgia que adensaria o ruir da QUARTA PAREDE foi a composição da peça de Thorton Wilder, Nossa Cidade. Nessa peça, de 1938, a ação dramática é, por assim dizer, mediada pela figura do personagem “Diretor de cena”, que inúmeras vezes se dirige ao público de espectadores para apresentar lugares, personagens, ajeitar um ou outro elemento relevante para o andamento da ação, fazendo assim ricochetear para platéia aquilo que era restrito ao palco, revelando o que se encontra por trás desta parede imaginária. A ruptura se completaria e se radicalizaria com as experiências de Bertolt Brecht com seu teatro francamente não-ilusionista. No cinema, pode-se apreciar bem a operação explorada por Woody Allen e os desdobramentos romanescos causados pela ruptura da “parede imaginária” no seu filme A Rosa Púrpura do Cairo. Voltando ao teatro, para concluir, constata-se que desde os anos 1950, do teatro do pós-guerra para cá, verifica-se a permanência, não mais da intransponível QUARTA PAREDE, mas sim da flutuação da noção dependendo do tipo de dramaturgia e do tipo de convenção que práticos teatrais querem implementar junto ao seu público. Neste sentido, o exemplo de Samuel Beckett em Fim de jogo é lapidar, pois apesar de enquadrar sua peça num espaço frontal e fechado, confinado às três paredes tradicionais, Samuel Beckett, em certos momentos da ação, expressa, por meio das personagens Hamm e Clov, a sua própria consciência de autor acerca da representação que não ignora mais o público e manifesta total consciência sobre o próprio fato teatral em si, visto agora como obra estética emancipada da literatura.