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Erro da crítica literária que apenas aprecia uma obra de arte em função da intenção original do autor que produziu essa obra. A expressão foi divulgada por W. K. Wimsatt e M. C. Beardsley (“The Intentional Fallacy”, 1946, in The Verbal Icon – Studies in the Meaning of Poetry, Noonday Press, Nova Iorque, 1964) e nasceu como crítica do New Criticism (de I. A. Richards e T. S. Eliot aos New Critics norte-americanos dos anos 30 e 40) que privilegiara sempre um tipo de abordagem textual que ia ao encontro da intenção autoral ou, por outro lado igualmente falacioso, preferia ir ao encontro da intenção imposta pelo próprio leitor (que no contexto norte-americano se confundia com autoritarismo académico). A expressão “falácia intencional” concorre com uma outra, de origem germânica, “falácia genética”, na crítica directa da interpretação da obra de arte literária pelo recurso ao biografismo ou ao relativismo das auto-interpretações autorais.

A ideia do respeito total que o crítico deve à intenção do autor de uma obra de arte, se a quiser analisar e avaliar, encontra-se claramente exposta já no Essay on Criticism (1711) de Alexander Pope: “In every work regard the writer’s end, / Since none can compass more than they intend.” Teremos de esperar, de facto, por meados do século XX para que esta tese seja refutada de forma assumida. Para W. K. Wimsatt e M. C. Beardsley, o texto pertence “ao público”, mas segundo o princípio que obriga a não ser prerrogativa de nenhum leitor a tarefa de definir autoritariamente o sentido do texto, que deve ser sempre aberto e plural. Entendemos melhor a importância desta denúncia crítica, com justa actualidade, se aceitarmos que a crítica literária não deve ser crítica de autor sob o pretexto de um texto, mas, pelo contrário, crítica de um texto sem o pretexto de existir um autor por detrás dele. Dito de outra forma, não devia interessar à textualidade o autor enquanto autor de um texto, porque logo que produz esse texto colocou à nossa disposição indiscreta um objecto de investigação que pode dispensar na totalidade os problemas de autoria, geralmente reservados para a disciplina dita com alguma ambiguidadecrítica textual” – quando seria mais claro que se chamasse também “crítica autoral”, já que não se limita a tratar só da fixação dos textos mas também se embrenha em especulações sobre autoria. Repetindo essa ideia já aduzida por Wimsatt e Beardsley, de que um “poema pertence ao público”, tal há-de significar que um texto literário, uma vez revelado/publicado, pertence ao património do leitor. Hoje podemos ver como a textualidade pós-estruturalista nunca admitiu que um autor pudesse ter qualquer tipo de poder sobre a leitura que nasce a partir do momento em que o texto literário surge publicado. Se um autor não quiser submeter a sua obra de arte à soberania (ou tirania, se se preferir) da crítica, então o que deve fazer é simplesmente deixar inédita essa obra e guardá-la para si, argumenta-se na perspectiva anti-intencionalista.

Se o New Criticism não soube defender-se de uma censura habitual que lhe foi dirigida sobre a concepção do texto literário como estrutura verbal independente quer das intenções do autor quer de condicionalismos históricos, levando a uma multiplicidade de interpretações, coube sobretudo à crítica pós-estruturalista justificar tal crença, ao legitimar o texto literário como fonte de sentidos ilimitados. A principal facção do New Criticism norte-americano, cuja influência ainda se faz sentir fortemente nos dias de hoje, sempre tentou menosprezar a teoria em favor da prática de interpretação de textos individuais, por isso não surpreende o desafio que nas últimas décadas as propostas pós-estruturalistas apresentam ao privilegiar a especulação teórica ao mesmo tempo que não se negligencia a prática crítica. O ponto em que as propostas pós-estruturalistas mais se afastam do New Criticism é talvez o que diz respeito à validade da soberania da crítica que se fundamenta no princípio de que o sentido de um texto pode, por um lado, ser sempre determinado e, por outro lado, ser determinado definitivamente. Estes pressupostos discutíveis remetem desde logo para uma espécie de fatalidade do sentido, que acabará por ser encontrado de alguma forma e para a sua garantia interpretativa, isto é, qualquer interpretação parece estar garantida por norma. Ora, o que a desconstrução tem vindo a defender e a demonstrar, pelas inúmeras leituras profundas de textos sobre os quais se julgava já ter sido dito o que havia a dizer, é que o sentido de um texto é a última coisa que o crítico pode garantir.

Tudo aquilo que já está dito sobre um dado texto literário tem que estar permanentemente sob revisão. A crítica de um texto não se constrói de uma só vez: ela é o resultado do que se escreveu a um tempo mais tudo aquilo que deixar suspenso. Se transpusermos este princípio para a sala de aula de literatura, devemos ter a coragem para não apresentarmos a leitura do professor como a última leitura possível. Mais ainda se a leitura do professor for na realidade a leitura que o professor fez de outras leituras. Uma das grandes inquietações que ainda hoje atinge os críticos contemporâneos, qualquer que seja a sua motivação principal, corresponde às relações estabelecidas no triângulo escaleno: obra/autor/leitor. Entre nós, desde Almeida Garrett, pelo menos, encontramos defensores da sujeição do leitor à intenção manifestada pelo autor na sua obra: "Uma obra de arte, seja qual for, não pode ser julgada pelas regras que à crítica lhe apraz estabelecer-lhe, senão pelas que o autor invocou e tomou para sua norma." (Doutrinas de Estética Literária, 2ªed., col. “Textos Literários”, Seara Nova, 1961, pp.49-50). Este é ainda contemporaneamente um dos grandes debates teóricos da crítica, debate que pode ler-se, a título de exemplo, nas posições antagónicas de H. D. Hirsch, Jr., iniciadas em Validity in Interpretation (1967), que partiu do mesmo pressuposto de validar como objecto de abordagem textual unicamente a intenção do autor, e na tese contrária que exige que a hermenêutica do texto literário esqueça definitivamente a intenção autoral, tese cujo principal divulgador é Hans-Georg Gadamer, em Wahreit und Methode (1ªed., 1960; 3ªed.revista e alargada, 1972). Ler e insistir hoje na legitimação da tese romântica de Garrett sobre a questão da intencionalidade autoral é tão ardiloso como o já era na primeira metade deste século, quer quando Paul Valéry comentou a análise literária do Cimetière marin realizada por G.Cohen na Sorbonne, concluindo: “Pas d’autorité de l’auteur.”, quer por Wimsatt e Beardsley, no célebre artigo onde denunciam a “falácia intencional”. Sabemos que o contexto histórico que provocou o comentário de Garrett diz respeito a uma prática de exibição de juízos de valor geralmente depreciativos e superficiais sobre obras literárias, quase sempre procurando atingir mais o autor do que o texto. Felizmente hoje extinta, tal prática perdurou até à Geração de 70, incluindo o crítico Eça de Queirós, que não hesitou em pretender transformar o crítico num gendarme da literatura.

{bibliografia}

Berel Lang: “The Intentional Fallacy Revisited”, British Journal of Aesthetics, 14 (1974); Burhanettin Tatar: Interpretation and the problem of the intention of the author : H.-G. Gadamer vs. E.D. Hirsch (1988); Gary Iseminger (ed.): Intention and Interpretation (1995); Morse Peckham: “The Intentional Fallacy?”, New Orleans Review, 1 (1979); Patricia de Martelaere: “The Fictional Fallacy”, British Journal of Aesthetics, 28, 3 (1988); Rosemarie Maier: “ ‘The Intentional Fallacy’ and the Logic of Literary Criticism”, College English, 32 (1970); W. K. Wimsatt e M. C. Beardsley: “The Intentional Fallacy” e “The Affective Fallacy”, in The Verbal Icon – Studies in the Meaning of Poetry, Noonday Press, Nova Iorque, 1964.