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Designa-se com essa palavra [Subst. e adj. fem.] certa literatura produzida no extremo sul do Brasil e nos países do Prata (Argentina e Uruguai). A literatura assim denominada é a que trata do gaúcho (gaucho, em espanhol), tipo humano caraterístico da formação social em ambiente físico dominado por vastas planuras parcamente habitadas. Trata-se da campanha gaúcha ou campaña e desierto ou, ainda, o/a pampa, em ambas as línguas. A literatura assim conhecida é construída tanto em prosa como em versos. Jorge Luis Borges entende a poesia gauchesca como “um dos acontecimentos mais singulares da história da literatura”.

A figura do gaúcho (citada a partir da primeira metade do século XVIII) tem representado profundo interesse de estudos. Esses estudos se prendem especialmente à constituição étnico-social do gaúcho e à sua representatividade como elaborador do universo cultural em que surgiu. O gaúcho é geralmente tido como descendente da mestiçagem entre portugueses ou espanhóis e ameríndias. No caso brasileiro, porém, o homem branco chegado de regiões do Brasil anteriormente povoadas pelos europeus e seus descendentes contribuíram também para a constituição do tipo. Mais tarde a miscigenação incluiu os negros. O gaúcho tem sido visto como o constituinte étnico principal da formação do povo e da cultura do Estado do Rio Grande do Sul. Daí se denominarem gaúchos todos os nascidos e habitantes desse Estado. O gaúcho como originalmente foi – andarilho, coureador de gado bravio, despreocupado com propriedade e com posse de terras, sem interesse pelo lucro nem pela acumulação – começou a desaparecer a partir da segunda metade do século XIX, quando as cercas de arame começaram a demarcar os territórios das estâncias de criação de gado. O trabalhador do campo, homem geralmente solitário e exímio cavaleiro, ainda hoje é chamado especificamente de gaúcho pelos coestaduanos.

Essa figura banhada de lendas constitui o grande mito formador do Estado gaúcho e da própria forma de ser do homem local. Análoga situação ocorre em parte da Argentina e em quase todo o Uruguai. Constitui mito de resistência e denodo na manutenção de valores locais caraterizadores.

A crítica tem distinguido dois sentidos no termo gauchesca para expressar essa literatura originariamente oral, porque nascida de uma população que não escrevia e quase não lia. O primeiro sentido diz respeito a toda literatura que narra a vida primitiva do gaúcho ou simplesmente alude a ela, em discurso peculiar. O segundo se refere apenas a determinada literatura vincada de ideologia encomiástica e escamoteadora da situação desse homem espoliado e explorado. Tem sido também contestada a propriedade do termo. Seria impróprio, em primeiro lugar, porque não há simetria nomenclatural nesse adjetivo (gauchesca): não existe, p. ex., uma literatura carioquesca ou beiresca. Em segundo lugar, porque não designa com clareza o que pretende. Tem-se que a forma apropriada para designar essa literatura seria o adjetivo gaúcha.

A partir dos anos oitenta, no Brasil, se multiplicaram discussões a esse respeito. Donaldo Schüler elaborou lúcida distinção entre o que chamou de texto monárquico e texto arcaico. A primeira denominação se refere à literatura conhecida em geral como gauchesca, que representa os textos laudatórios que mascaram a situação de despossessão, pobreza e marginalização do gaúcho. A segunda denominação diz respeito a textos fundados na primeira fala do gaúcho, i. e., no discurso que lhe é apropriado, literariamente o único possível. Essa literatura, originária desse universo cultural, representa a reflexão do gaúcho sobre sua própria condição. Entre esses textos orais recolhidos é impossível deixar de citar as narrativas versificadas O Tatu e Chimarrita. Nessas narrativas, a crítica tem visto aproximações com os romances velhos portugueses.

São textos exponenciais da literatura gaúcha, de acordo com o que ficou expresso na segunda denominação: Antônio Chimango (1915) de Amaro Juvenal (Ramiro Barcelos); Contos gauchescos (1912) de João Simões Lopes Neto; Don Segundo Sombra (1926) de Ricardo Güiraldes; Lendas do Sul (1913) de João Simões Lopes Neto; Martín Fierro (1872) de José Hernández; Recordações gaúchas (1898?) de Luiz Araújo Filho.

{bibliografia}

Ángel Rama: La ciudad letrada (1984); Augusto Meyer: Cancioneiro gaúcho (1952) e Gaúcho: história de uma palavra (1957); Donaldo Schüler: A poesia no Rio Grande do Sul (1987); Guilhermino Cesar: História da literatura do Rio Grande do Sul (1956) e Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul, 1605-1801 (1969); Jorge Luis Borges: El Martín Fierro (1979); Regina Zilberman: A literatura no Rio Grande do Sul (1980).