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No fazer poético, os versos livres, também chamados de versos irregulares, não utilizam os esquemas métricos, e podem dispensar, ou não, o uso das rimas, ou qualquer outro padrão formal, preocupando-se tão somente com ritmo, unidade semântica, musicalidade natural da fala e leitura. Além disso, como veremos no decorrer do presente artigo, outros elementos podem compor a versificação livre: o estilo prosaico, a disposição deliberada e inteligente dos vocábulos na folha, aproveitamento de espaços incomuns da página, fragmentação de frase, isolamento de palavras, etc. É fundamental, antes de mais nada, distinguir os versos livres dos versos brancos e da prosa poética. Os brancos, apesar de se desembaraçarem das rimas, possuem métrica (são escritos em pentâmetro iâmbico). A prosa poética, por sua vez, como bem apontou Alberto Pimenta no respectivo verbete deste dicionário virtual, se afasta do verso livre sobretudo por causa da visilegibilidade do texto e pela intenção de efeito ou comunicação propostas por S. J. Schmidt.

Partindo desses princípios estéticos, podemos começar uma investigação da versificação livre sob âmbito histórico. Podemos encontrar um sem número de poetas do século XX que, rejeitando a métrica regular tão vigente nos movimentos literários do século XIX, optaram pelo pensamento claro e a musicalidade sem pompa que os versos irregulares são capazes de oferecer. Essa mudança de estilos foi bastante incentivada pelo poeta norte americano Walt Whitman (1819 – 1892) e pelo francês Stéphane Mallarmé (1842 – 1898). Whitman é considerado o pai do verso livre; sua poesia recebeu a influência do fraseado da Bíblia do Rei Jaime e terminou por influenciar poetas posteriores, como Allen Ginsberg (1926 – 1997). Os longos poemas de seu Leaves of Grass (1855) utilizaram-se dos versos longos, brancos e livres com o intuito de se adequar aos ritmos da fala humana. Embora seja melhor associado ao modernismo, do qual trataremos em instantes, essa forma de verso teve diversos antecedentes.

Já na era da Rainha Vitória alguns poetas escreviam versos irregulares com rimas, como Christina Rossetti, Coventry Patmore, e T. E. Brown. Além disso, o poema ‘Discharged’ de W. E. Henley (1849 – 1903) e os poemas ‘The Light-Keeper’ e ‘The Cruel Mistress’ de Robert Louis Stevenson (1850 – 1894) são bons exemplos preliminares do verso livre. Os 22 poemas de Heinrich Heine (1797 – 1856), considerado ainda hoje um dos mais significativos poetas alemães do século XIX, publicados no Buch der Lieder (1827), contribuíram para o desenvolvimento do verso livre entre os poetas mais consagrados. Mesmo a Threnodia Augustalis de Dryden (1631 – 1700), o Samson Agonites de Milton (1608 – 1674) e um ou outro poema da House of Fame de Chaucer (c. 1343 – 1400) adotaram o vers libre, como bem apontou o crítico T. E. Hulme em seu A Lecture on Modern Poetry (1908), afirmando que “somente o nome é novidade”.

A teoria poética e as buscas históricas apontam Eugénio de Castro (1869 – 1944) como um dos primeiros poetas em Portugal a adotarem o verso livre. Não podemos nos esquecer, porém, de exemplos posteriores, como Mário Cesariny (1923 – 2006) e notavelmente alguns dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888 – 1935), em especial Álvaro de Campos, cujos versos livres são indisciplinados, torrenciais, como no início do longo poema “Tabacaria”:

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.

Em que hei de pensar?  […]

No chamado Período Simbolista, Adalberto Guerra Duval (influenciado por Maeterlink e principalmente pelo já citado Eugénio de Castro) é considerado o introdutor do verso livre no Brasil por conta de diversas linhas nas composições de Palavras que o Vento Leva… (1900). A consagração e fama desse verso no país viria, contudo, com o livro Pau-Brasil (1925), que não é só a obra de estreia em poesia do escritor Oswald de Andrade (1890 – 1954), como também um dos mais inovadores de toda a poesia produzida até então no país. O livro trazia versos livres em tom de prosa e uma linguagem simples e coloquial muito ousada para os padrões poéticos vigentes (e até mesmo se comparada aos versos livres de Guerra Duval). É notória tal ousadia no poema “Prenominais”, que se encontra na segunda parte do livro, chamada “Poemas da colonização”:

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da nação brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

Ainda assim, Manuel Bandeira (1886 – 1968) é o poeta mais famoso do verso livre no país. Bandeira familiarizou-se com a forma durante sua estadia na Suíça (entre 1916 e 1917), onde assimilou as inovações poéticas europeias através das conversas com o escritor Paul Éluard (1895 – 1952). A adoção do verso livre na poesia de Bandeira começou com o livro Libertinagem (1930, que contém o famoso “Vou-me embora pra Pasárgada”) e foi recebida com muita simpatia pelos modernistas de 22, porque abandonava a metrificação dos parnasianos e abria novas possibilidades estéticas para a moderna poesia brasileira.

Essa primeira fase do Modernismo no Brasil (1922-1930), também chamada de geração de 22, encontrou no verso livre a mais perfeita adequação de suas típicas características: a paródia, o humor, o coloquialismo, a dessacralização de conteúdos, a busca pela originalidade nacional, a visão poética do cotidiano e do homem comum. A segunda fase modernista brasileira (1930-1945) introduz, porém, novos sentidos ao verso livre, muitos deles antagônicos aos da primeira: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) apresenta um ceticismo diante do mundo e os primeiros poemas de Vinicius de Moraes (1913-1980) são melancólicos e de cunho religioso. Qualquer psicologismo identificaria nisso, talvez, as consequências sociais e mentais do contexto da Segunda Grande Guerra.

Ainda no início do século XX, mas antes da Primeira Guerra Mundial, a forma geométrica e abstrata do Futurismo terminou por influenciar formalistas russos como Kamensky, Khlebnykov e Maiakovski, num contexto sócio-cultural muito bem apresentado por Dina Moniz no respectivo verbete deste dicionário virtual. Maiakovski é, provavelmente, um dos poetas russos mais famosos e influentes de todo o mundo: seu manuseio da versificação livre resultou na reatualização da sintaxe oral. Em um ensaio, escreve: “Não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta e escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Chama-se poeta justamente o homem que cria estas regras poéticas.” Ele foi um dos grandes influenciadores do Manifesto Concretista publicado em 1958 na revista noigrandes, em São Paulo, elaborado pela trindade concretista Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari (este segundo traduziu os seguintes versos livres maiakovskianos):

EU

Nas calçadas pisadas

                    de minha alma

passadas de loucos estalam

calcâneo de frases ásperas

             Onde

                    forcas

                esganam cidades

e em nós de nuvens coagulam

             pescoço de torres

      oblíquas

  soluçando eu avanço por vias que se encruz-

                                                           ilham

à vista

de cruci-

fixos

 

      polícias

O Concretismo, apesar de se esbarrar nos versos livres, também é visto como verso preso, daí seu distanciamento da versificação livre. O poema concreto não é totalmente livre, nem espontâneo, mas rigoroso: em sua produção influi a matemática dos espaços, o teor visual, o design tipográfico, ou seja, racionalidades ignoradas ou deixadas em segundo plano pelos poetas de versificação irregular.

Como vimos, os versos livres foram usados em âmbito histórico por uma gama muito rica de temáticas, épocas e motivações, sobretudo por seu caráter elástico: a sutileza de Whitman, as galhofas de Oswald de Andrade, os delírios de Álvaro de Campos, a agressividade de Maiakovski. Talvez por isso mesmo tem sido um tema bem discutido a sua “liberdade”, ou melhor, sua espontaniedade. Robert Graves (1895 – 1985) e W.H. Auden (1907 – 1973) acreditavam que o verdadeiro gênio depende de uma dificuldade poética que só se encontraria em versos metrificados. Em um ensaio intitulado “The Music of Poetry”, o poeta e dramaturgo modernista e também crítico literário T. S. Eliot (1888 – 1965) escreve que “verso nenhum é livre para aquele que deseja fazer um bom trabalho.” Tal apontamento nos faz pensar sobre o ofício de qualquer artista que precisa impor palavras do zero, independente da forma usada. Outro adepto do verso livre, o poeta William Carlos Williams (1883 – 1963) pensava que o verso era uma forma de arte e, como tal, não poderia ser livre no sentido de não ter limitações ou princípios orientadores. 

Na verdade, a crítica de Graves e Auden soa hoje como datada; o verso livre é um fato e suas possibilidades artísticas são incontestáveis. Sobre a dificuldade exigida por eles, poderíamos transpor a título de refutação um trecho do percuciente artigo “A Poesia d”Os Sertões'” escrito pelo ensaísta, poeta, tradutor, jornalista, heraldista e crítico de cinema Guilherme de Almeida (1890-1969) e publicado no “Diário de São Paulo” de 18/8/46 (grifo nosso): “Muitos falam os chamados ‘novos’ da velha coisa que é o ‘verso livre’. Mas tão poucos o sabem praticar! Ora, nesta prática do difícil verso livre -o verso que só existe enquanto a idéia existe, indo apenas até onde vai ela- nessa prática perigosa, Euclides é mestre. Se certas passagens d”Os Sertões’, em vez de compostas tipograficamente em forma de prosa, o fossem em forma de versos livres, muito pasmaria o compilador de uma antologia da moderna poesia brasileira, topando com poemas autênticos, muito mais legítimos que os de muitos catalogados modernistas. É tal trabalho tipográfico convidativa experiência a que não me sei furtar”.

Guilherme de Almeida, ao transpor trechos d’Os Sertões de Euclides da Cunha (1866-1909) em versos, expõe o ponto crucial, a essência, do verso livre: o verso que só existe enquanto a ideia existe, indo apenas até onde vai ela. Por isso mesmo, como acaba concluindo, é uma versificação perigosa, exigindo maturidade literária e acabamento artístico. É possível, como Whitman demonstrou, escrever poesia que possua ritmo e estrutura mesmo em versos irregulares, por meio de frases repetidas e vírgulas estratégicas. Marjorie Boulton (1924), em Anatomy of Poetry, reivindicou ainda que o verso livre pode alcançar a beleza por meio do padrão interno de sons, a escolha exata das palavras e o recurso das associações. Não podemos esquecer, mais uma vez, que movimentos importantes da cultura, como o Imagismo, o Simbolismo, o Futurismo, o Modernismo, se apropriaram do verso livre.

Além disso, assumir que o verso livre não requer dificuldade desabrocha outras discussões pertinentes: não bastasse a riqueza linguística e a singularidade poética que toda poesia exige (seja em qual forma for), muitos poetas de versos livres, como os já citados Mallarmé e Maiakovski, arranjam a disposição dos versos na página, em um casamento de sintaxe e semântica que não é mero capricho, mas sim um mecanismo de isolamento, intensificação, destaque, das frases e palavras. Também assim o faz o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar (1930), um dos surgidos na terceira e última fase do Modernismo no Brasil (1930-1945), que escreveu o poema livre (com rimas espontâneas) “Um instante”, reproduzido abaixo:

Aqui me tenho

Como não me conheço

            nem me quis

sem começo

nem fim

            aqui me tenho

            sem mim

nada lembro

nem sei

 

à luz presente

sou apenas um bicho

            transparente

Este poeta maranhense é, aliás, um grande exemplo de reivindicação da versificação livre, pois começa a escrever com pleno domínio da metrificação, habilidoso em decassílabos e sonetos, quando, tardiamente, confronta-se com a poética de Drummond e de Mário de Andrade (1893-1945) e com os estudos críticos de Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e Álvaro Lins (1912-1970) sobre o modernismo. Conclui, então, que a verdadeira arte tinha de ser a invenção de sua própria técnica, desembaraçando-se da poesia de habilidade, pensamento esse que culmina em seu primeiro grande livro, o revolucionário A Luta Corporal (1954). Este volume é um acerto de contas com a poesia clássica numa constante violação iconoclasta de suas normas padrões. Embora Gullar force os limites da linguagem e acabe por desintegrá-la – chegando onde nenhum outro modernista ousou ir – seus escritos posteriores e o conjunto de sua obra apostam sobretudo no verso livre como modo de expressão, às vezes utilizando-se de rimas.

Hilda Hilst (1930-2004), escritora e poeta imensa, vai na contramão do pensamento de que os versos livres são simplesmente soltos e despejados, conferindo à sua obra uma poética estilizada, bem formulada, mas ainda assim livre, como se mostra num dos versos do livro Do Desejo (1992):

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Antes, o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradura.

Visgo e suor, pois nunca se faziam.

Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo. E que descanso me dás

Depois das lidas. Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada, fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

No percuciente artigo “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês” publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.19, em 2011, Paulo Henriques Britto, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, lança novo olhar histórico no estudo do verso livre: propõe divisão que denomina de verso livre clássico, verso liberto e novo verso livre, tanto na literatura em inglês como na em português. O verso livre clássico encontraria sua maior expressão em Whitman, Pessoa, Bandeira, poetas que oscilam entre o formalismo regular de rimas, ritmos e efeitos e o informalismo de elementos não poéticos, falas coloquiais, prosa técnica (o informal e o coloquial é encontrado sobretudo na literatura em português, pois em Whitman tal característica se dá através de aliterações e no afrouxamento de regras tradicionais do verso anglo-saxão). O verso liberto seria a poesia de Eliot, de Wallace Stevens (1879–1955), versos que esbarram na prosa e marcam inovações na dicção silábica. Também é apresentado em forma de metrificação “fantasma”, ritmos artificiais e coloquialismo em Jorge de Lima (1893-1953) e na poesia “imatura” de Mário de Andrade. Por fim, o novo verso livre, segundo Britto, é aquele popularizado a partir dos anos 60 com Williams e E. E. Cummings (1894-1962), influente em toda a literatura em português desde então e caracterizado por versos curtos, desalinhamentos radicais, contraponto entre o gráfico e o sonoro, utilização irregular dos recursos do verso tradicional e do verso livre clássico. Britto, por fim, assume que este último mereceria uma pesquisa mais ampla, pois é o menos estudado pelos prosodistas.

Para concluir, a versificação irregular, como vimos, ajusta-se ao temperamento do poeta, instaura na cultura impacto significativo, subvertendo as formas tradicionais e conferindo novos valores aos mecanismos poéticos que pareciam exauridos. De fato, o verso livre representa isso mesmo, nova possibilidade ou afirmação diante da crise poética no mundo, elasticidade de pensamento, desembaraço de fórmulas para se atingir o cerne poético, porque no perigoso, atraente e difícil verso livre, só influi e resta uma única certeza: a da poesia.

{bibliografia}

Abbs, Peter; Richardson, John. The Forms of Poetry: A practical study guide for English (15th ed.). Cambridge University Press.

Boulton,Marjories, Anatomy of Poetry, Routledge&Kegan, London 1953.

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Philip Hobsbaum, Metre, Rhythm and Verse Form, Routledge, 1996.

S. J. Schmidt, Text, Bedeutung, Ästhetik, 1970.

H. T. Kirby-Smith, The Origins of Free Verse, University of Michigan, 1996. ISBN 0-472-08565-4.

Timothy Steele, Missing Measures: Modern Poetry and the Revolt Against Meter, University of Arkansas Press, 1990.

Jesper Kruse, “Free Verse and the Constraints of Metre in English Poetry,” Ph.D. thesis, University of Copenhagen, 2012.