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[Do gr. aporia, “caminho inexpugnável, sem saída”, “dificuldade”.] 1. Dificuldade, impasse, paradoxo, momento de auto-contradição ou blindspot que impede que o sentido de um texto ou de uma proposição seja determinado. Na filosofia grega antiga, o termo começou por servir para designar contradições entre dois juízos (o que se chamaria depois, com mais propriedade, antinomia). Na filosofia de Zenão de Eleia, por exemplo, podemos falar de aporias nos juízos sobre a impossibilidade do movimento. Mais tarde, designaram-se alguns diálogos platónicos como “aporéticos”, isto é, inconclusivos. Ao estudo das aporias chama-se aporética. Aristóteles definirá a aporia como uma “igualdade de conclusões contraditórias” (Tópicos, 6.145.16-20).

O termo é utilizado com frequência por alguns descontrucionistas como Jacques Derrida e Paul de Man, que, de alguma forma, são responsáveis pela sua imposição dentro da teoria literária pós-estruturalista. A aporia é identificada pela leitura desconstrutiva do texto, que terá como fim mostrar que o sentido nele inscrito atingirá invariavelmente o nível da indeterminação ou da indecidibilidade.

Uma aporia cria uma tensão lógico-retórica que impede que o sentido de um texto se possa fixar. Um texto, por definição, conterá sempre aporias que servirão para mostrar que um texto pode querer dizer algo que escapa a uma qualquer leitura convencional. Nem o texto nem o seu autor estão obrigados a ter conhecimento prévio ou consciência da presença de aporias. Compete ao leitor, pela desconstrução – se se quiser, segundo os exemplos de Jacques Derrida e Paul de Man – identificar tais impasses. Os efeitos do que na desconstrução de Derrida se chama différance dependem da presença inquietante destas aporias.

Na aporia clássica de “Aquiles e a tartaruga”, diz-se que o veloz Aquiles nunca conseguirá alcançar a tartaruga, porque, quando o atleta chegar ao lugar em que a tartaruga se encontrava no momento da partida, o animal terá tido tempo de mover-se e alcançar uma determinada distância, e por aí fora. Podemos encontrar o mesmo tipo de aporia no pensamento religioso de António Ramos Rosa, por exemplo. No artigo “Deus e a natureza humana”, publicado pelo Poeta no Jornal de Letras, em 29 de Junho de 1931, afirma-se que Deus é o universal e, porque o é, a natureza humana participa da sua divindade. Se quiser demonstrar que esta proposição é aporética, procederei da seguinte forma: se eu participo da natureza de Deus é porque sou seu semelhante ou vice-versa. Neste caso, eu devo ser tão real como Deus e vice-versa. E real deve ser sinónimo exclusivo de natural. Eu também sou tão universal quanto Deus, pois me é dada a possibilidade de participar da sua universalidade. Ora, o homem é, por rigor ontológico, o mais individual dos seres, pelo que a aporia que daqui nasce – um ser individual participar da natureza de um universal, seu contrário e seu semelhante, seu sol e sua noite – ergue desde logo um obstáculo impossível de vencer. Este tipo de leitura aproxima-se do que se convencionou chamar desconstrução: toma-se o texto (literário ou não) como um conjunto de potenciais oposições internas que hão-de conduzir irremediavelmente a uma aporia; nesse momento, o texto obriga a uma tomada de decisão crítica perante as duas leituras opostas e, quase paradoxalmente, uma leitura desconstrucionista será aquela que não deixar que tal decisão penda para qualquer dos lados. Uma crítica imediata a este tipo de abordagem textual é que chama a atenção para o círculo viciado das leituras desconstrucionistas: perante um texto, mais tarde ou mais cedo, surgirão aporias, momentos em que a lógica interna do texto falha.

De alguma forma, a prática desconstrutiva de leitura das aporias de um texto ou proposição central no pensamento de um autor não difere do método platónico, sobretudo dos diálogos aporéticos como Laques ou Ménon. Num diálogo aporético não se chega nunca a uma definição do tema central – a coragem e a virtude, respectivamente -, mas só pela refutação de todas as tentativas de definição se pode estar em condições de dizer alguma coisa (“de científico”) sobre aquilo que se quer discutir. O método socrático vale para uma leitura crítica de um texto literário, no qual devemos reconhecer que as aporias têm uma função heurística: da mesma forma que o interlocutor de Sócrates só estará em condições de aprender quando se der conta da sua ignorância, assim o leitor perante o texto só deve ter a pretensão de progredir para a compreensão do seu sentido quando demonstrar que as aporias que o caracterizam impedirão sempre que esse sentido seja uno e finito. Da mesma forma que o método aporético de Sócrates pressupõe a purificação da falsa sophia do interlocutor, assim o leitor deve “purificar” o texto das suas dificuldades, deixando sempre abertas as portas da significação. De notar ainda que também Aristóteles viu a metafísica como uma ciência diaporemática, ou seja, como um conjunto de questões cuja principal característica é o facto de constituírem dificuldades. Na metafísica (e no trabalho teórico-crítico sobre literatura, devemos acrescentar), não há resultados finais e dogmáticos, mas apenas interrogações e problemas à espera de refutação e discussão. Em ambos os casos, na filosofia e na literatura, o trabalho aporético deve ser conduzido de forma a não procurar dificuldades como num jogo de adivinhação, mas a problematizar todas as aporias para que se chegue a um resultado mais seguro e consistente.

2. Como figura de retórica, a aporia diz respeito àqueles momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a forma de se expressar ou de agir. O melhor exemplo é o célebre solilóquio de Hamlet, de William Shakespeare, consagrado na expressão “to be or not to be” (Acto III, 1). O registo retórico do termo é ambíguo e definido quase sempre por aproximação. Puttenham, atesta o Oxford English Dictionary, refere-se-lhe desat forma: “Aporia, or the Doubtfull. So called (. . . ) because often times we will seem to cast perills, and make doubt of things when by a plaine manner of speech wee might affirme or deny him.” (English Poesie, 1589). Caso comum é o dos poetas cuja vida se lhes apresenta como uma indecisão ou irreversível aporia, geralmente em situações de conflito interior ou crises de personalidade. Veja-se o exemplo de Álvaro de Campos: “Ah, as horas indecisas em que a minha vida parece de um outro. . . / As horas do crepúsculo no terraço dos cafés cosmopolitas! / Na hora de olhos húmidos em que se acendem as luzes / E o cansaço sabe vagamente a uma febre passada” (Livro de Versos, ed. crítica de Teresa Rita Lopes, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p.205).

 

Bibliografia:

 

Benjamin Friedlander: “ ‘Aporia’ after Friedrich Holderlin”, Talisman: A Journal of Contemporary Poetry and Poetics, 6 (1991); C. Stephen Finley: “Hermeneutic and Aporia: Beyond Formalism Once More”, Christianity and Literature, 38, 1 (Carrollton, GA, 1988); Enrique Pupo Walker: “La aporia, la refutacion y los hallazgos contradictorios de la critica contemporanea”, in Los Ensayistas: Georgia Series on Hispanic Thought, 16-17 (Atenas, 1984); Jacques Derrida, De la grammatologie (1967), Apories (1996); Maria Isabel Acosta Cruz: “Severo Sarduy y el juego contrarreferencial de aporias”, in Revista de Estudios Hispanicos, 17-18 (Rio Piedras, 1990-1991); Paul de Man: Allegories of Reading: Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke, and Proust (1979); Richard Toby Widdicombe: “Eutopia, Dystopia, Aporia: The Obstruction of Meaning in Fin-de-Siècle Utopian Texts”, Utopian Studies, 1, 1 (1990); Roberta Seelinger Trites: “Is Flying Extraordinary? Patricia MacLachlan’s Use of Aporia”, Children’s Literature: Annual of The Modern Language Association Division on Children’s Literature and The Children’s Liter, 23 (New Haven, 1995).