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Método instituído a partir da dupla referencialidade de signos integrados no âmbito do mundo natural da Arcádia, de tal forma que a relação não motivada, em termos saussurianos, entre significante e significado, coexiste com uma outra, dotada de uma motivação mais forte, de ordem simbólica. Assim fica instituída uma linguagem críptica, per aenigmata, que implica processos semióticos caracterizados, de um modo só aparentemente paradoxal, pela aliança entre abertura e fechamento. De facto, se, por um lado, este tipo de signos se abre às mais variadas interpretações e o véu arcádico pode permitir a expressão de conteúdos que de outra forma seriam alvo de condenação social, por outro lado, esses signos devem inserir-se no âmbito das restritas convenções próprias do universo arcádico e a sua interpretação tem por referência, em última instância, uma intentio auctoris dificilmente decodificável.

Desta feita, o arcadismo ganha forma a partir do contraponto entre o domínio do histórico e o domínio da ficção, ou, situando-nos no campo da arte, entre um universo e um meta-universo. Aliás, se o sistema secundário de simulação de tipo artístico constitui, segundo Lotman, o próprio sistema de denotados, não enquanto cópia, mas enquanto modelo do mundo dos denotados no significado linguístico comum, o funcionamento do método arcádico pode com boas razões ser aproximado, na sua essência, da arte e da literatura.

Na verdade, é no mundo das letras que deparamos com as mais ancestrais referências ao talento poético e musical dos míticos habitantes da Arcádia — na obra dos poetas pós-teocriteios. Mas se cabe a Virgílio o mérito de ter sido o primeiro escritor a descobrir e a valorizar esta região poética, Petrarca foi o grande divulgador do método arcádico, quer através das suas éclogas latinas, quer através dos vários passos da sua obra em que disserta acerca da função, que é própria da poesia, de enunciar verdades profundas sob a capa de imagens que atraem pela sua beleza. O napolitano Jacopo Sannazaro, por sua vez, foi o primeiro autor moderno a escolher a Arcádia para cenário de uma obra bucólica em vernáculo. O seu romance pastoril intitulado, precisamente, Arcadia, em cujas páginas fica contida uma autocelebração do país dos pastores, virá a assumir, nos séculos seguintes, um valor modelar canónico.

Em termos geográficos, a Arcádia é a parte central, que se prolonga para nordeste, da península do Peloponeso. Todavia, nas estruturas antropológicas do imaginário, a Arcádia é o lugar mítico onde o homem vive em plena comunhão com a natureza. O significado simbólico atribuído à terra dos pastores, enquanto paraíso de felicidade, contrasta, porém, com a representação que dela é feita pelos mais ancestrais cultores do género bucólico. A mítica idade do ouro, em que o homem convivia livremente com os deuses e se nutria dos bens que a terra lhe prodigalizava, encontra-se definitivamente superada pela incursão da História.

Neste sentido, o arcadismo consubstancia-se num heroísmo reflectido sobre um espelho que lhe inverte o sentido das formas, o que implica um vasto leque de cambiantes que pode ir da opção por uma via alternativa até uma deliberada atitude de não participação na História. A associação de abertura e fechamento que caracteriza este método confere-lhe amplas possibilidades combinatórias a partir da intersecção com elementos das mais diversas proveniências sígnicas e modais. Enquanto tal, é um método poético polimorfo, como observa Feo, susceptível de se abrir a um vastíssimo leque de possibilidades de expressão artística, entre sonho e evasão, idílio e repouso, utopia intrépida e fuga irresponsável, doce mistificação enganosa e projecção de todas as liberdades, paraíso perdido e sombria figuração da essência do humano.

Na Arcadia de Sir Philip Sidney, é representado um ambiente pastoril perpassado por notas dolorosas e pungentes. Giovanni Francesco Guercino e Nicolas Poussin, nas famosas telas onde figuram o mundo arcádico, reservam um lugar de destaque à epígrafe Et in Arcadia ego, que estigmatiza a presença da morte também na pátria de Orfeo e Pan. Várias das personagens do D. Quixote vivem a meio caminho entre o compromisso com o mundo urbano e o retiro campestre. As circunstâncias que propiciam a narração das histórias que compõem o Decameron prendem-se com o abandono da cidade e com a escolha de um outro ambiente de vida, no seio da ruralidade. Aliás o arcadismo inspirou movimentos culturais dotados de vastas repercussões, com relevo para a Arcádia Romana, fundada em 1690. Esta sociedade de homens de letras reuniu um considerável número de membros em torno de um programa que tinha por objectivo eliminar os excessos do Barroco a partir do retorno às fontes da naturalidade. O elitismo dos seus pressupostos literários é actualizado no seio de um círculo intersocial e imóvel, formado por intelectuais igualados por pseudónimos pastoris, que desempenhou uma efectiva função de homogeneização linguístico-literária, divulgada através das várias coloniae espalhadas por toda a Itália. Serviu de modelo à Arcádia Lusitana, fundada em Lisboa no ano de 1757.

O arcadismo, enquanto método, continua a marcar a sua presença difusa em muitos dos sectores da cultura do nosso tempo, como o comprova o cariz edénico de muitas imagens publicitárias. O espaço crescente que tem vindo a ocupar, a partir de meados do século XX, é indissociável da emersão de estéticas minimalistas. Mas a repulsa experimentada por Cocas, o sapo de pano que é protagonista do programa de animação Rua Sésamo, quando toca a pele viscosa de um outro sapo que entrou na fita, ilustra bem a capilaridade deste método.

 

Bibliografia:

 

G. Jachmmann, “L’Arcadia come paesaggio bucolico”: Maia, n.s., 5, 3-4 (1952); M. Feo, “Tradizione latina”: Letteratura italiana. 5. Le questioni (1986); E. Panofsky, “Et in Arcadia ego: Poussin e a tradição elegíaca”: O significado nas artes visuais (1989); Rita Marnoto, A “Arcadia” de Sannazaro e o bucolismo (1996).