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A distinção entre ciência e literatura, não obstante os ares de naturalidade e evidência de que à primeira vista se reveste, apresenta um cunho histórico, que deve prevenir contra qualquer tentação generalizante. Convém pois assinalar de saída que se trata de um empreendimento moderno a separação entre as mencionadas esferas, cuja vigência se esboça apenas na passagem do século XVI para o XVII, reforçando-se no XVIII e consolidando-se somente no curso do século XIX.

O reconhecimento, contudo, da origem moderna do contraste não impede que se vislumbrem suas raízes remotas no mundo antigo e no medieval. Assim, sua configuração inicial pode remontar à controvérsia entre Platão e Isócrates sobre a pedagogia: o primeiro advoga um ideal de educação como domínio da razão fria e calculante, vendo na linguagem não mais que um meio neutro que deve corresponder à verdade alta e serena, infensa às inconstâncias das simples opiniões; o segundo, em contrapartida, entende que a educação deve justamente sensibilizar para o exercício da opinião, elemento concreto da experiência, donde uma concepção de linguagem não como transparência à verdade, mas como habilidosa construção de verossimilhanças. Esse contraponto entre “esprit géométrique” e “esprit de finesse”, constitutivo das “duas colunas do templo” da educação clássica (cf. Marrou, 1975, p. 146-9), é aproximável à moderna dicotomia ciência/literatura.

Outros prenúncios da distinção no mundo antigo encontramos em duas passagens famosas da Poética de Aristóteles: uma delas se acha no capítulo I, quando o filósofo se refere à diferença entre Homero e Empédocles, esclarecendo que, apesar da circunstância de terem ambos escrito em versos, “… aquele merece o nome de ‘poeta’, e este, o de ‘fisiólogo’, mais que o de poeta.” (1966, p. 69); a outra, no capítulo IX, quando menciona a peculiaridade que distingue o poeta do historiador, mais uma vez descredenciando o verso como critério distintivo: “… a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (ibid., p. 780)

A idade média, por sua vez, detalhando a distinção antiga entre artes mechanicae e artes liberales — isto é, entre ofícios manuais e servis, de um lado, e atividades do intelecto próprias aos homens livres, do outro — , produz uma classificação que pode ser relacionada à oposição moderna entre ciência e literatura. Fixa-se então um “currículo” de sete artes liberais, chamado septennium e subdividido em dois grupos: trivium — composto por gramática, dialética e retórica — e quadrivium — formado por geometria, aritmética, astronomia e música. Observe-se que o trivium pode ser assimilado ao esprit de finesse isocrático — e pois à literatura — , enquanto o quadrivium corresponderia ao esprit géométrique platônico — e pois à ciência — , o primeiro constituindo as artes sermocinales (isto é, do discurso) e o segundo as artes reales (isto é, das coisas). Outra correspondência possível pode fazer-se no interior do trivium, interpretando-se a oposição entre dialética e retórica em termos da polaridade pensamento formal abstrato/pensamento informal concretizante, um relacionável à ciência, o outro à literatura.

A cultura antiga e medieval, no entanto, ainda que tenha estabelecido as distinções referidas, conservou-se longe de levá-las a consequências extremas. A despeito do elogio platônico da especialização, apresentada como antídoto à leviandade generalista da poesia (cf. A república, livro III), antes acabou por canonizar a ideia de humanidades, isto é, corpo de saberes pertinentes ao conjunto dos homens livres, tido como coincidente portanto com a própria essência humana, e alheio à fragmentação de interesses determinada pelo treinamento para o exercício de cada uma das artes mecânicas. Lidando com o que é comum a todos os homens, com o que é de natureza comunicável, o amplo sistema dito humanístico consolida e difunde uma cultura geral — no sentido de extensível a todos os homens — constituída pelas matérias do septennium. Disso decorre certo relevo concedido às disciplinas do trivium, espaço por excelência da comunicação, donde um nexo de inter-implicação entre gramática-dialética-retórica e cultura geral. Assim, em vez de favorecer distinções por especialização — como aquela que aparta a literatura da ciência — , o humanismo tende muito mais à unificação de todos os discursos; sem deixar de reconhecer os seus gêneros — o que deu margem a uma classificação expansiva, que acabou por englobar prosa e verso; ciência e literatura; eloquência, história, filosofia, ficção e carta — , não se propõe aprofundar as fronteiras entre eles, optando antes por enfraquecê-las mediante a submissão de todas as regiões discursivas à mesma disciplina retórica.

Essa concepção integradora, porém, que já apresentava, conforme vimos, sinais de fissura anteriores à própria consolidação, não sobreviverá ao século XVI. Um dos aspectos das vastas transformações então consumadas é a reivindicação de autonomia da ciência em relação à retórica. Exemplo marcante e inaugural desse movimento é a proposta da Royal Society of London, no século XVII, no sentido de erigir a clareza, vista como supressão de ornamentos supérfluos preconizados pela retórica, em novo padrão de estilo por que se deviam pautar os relatos científicos (cf. Dixon, 1971, p. 66). Cria-se desse modo, mais do que uma cisão, verdadeira desconfiança mútua entre humanidades e ciência, destinada a contínuo aprofundamento ao longo dos séculos XVIII e XIX, que aliás motivaria o ensaio famoso de C. P. Snow, “The two cultures and the scientific revolution”, publicado em 1959.

Mas a oposição humanidades/ciência é apenas um primeiro esboço ainda muito geral de especialização dos campos discursivos ou das atividades culturais, que será objeto de novos arranjos até que se delineie a oposição ciência/literatura. Como a área da ciência, nos séculos XVII e XVIII, dispunha de maior homogeneidade — sua jurisdição é a natureza, submetida a um ordenamento matemático resultante na física, por sua vez referencial para a química e depois para a biologia — , é no âmbito sincrético das humanidades que mais se exercerá o impulso para a demarcação de diferenças. É provável que o gesto mais radical nesse sentido tenha sido a secessão da poesia, empreendida pelos primeiros românticos e continuada século XIX afora. Veja-se, por exemplo, a distinção entre poesia e ciência feita por Wordsworth em 1800 (em Adams,ed.,1971, p. 437), ou a tese de Stuart Mill defendendo a especificidade da poesia sobretudo em face da eloquência e da ficção, formulada em 1833 (cf. ibid., p. 538-9). A eficácia dessa vertente de argumentação implicará diferenciações internas nas humanidades, que, em linhas gerais, na altura da segunda metade do século XIX já se apresentarão fragmentadas em modalidades discursivas de autonomia crescentemente reconhecida. Essas modalidades serão designadas por termos cuja precisão conceitual se tentará estabelecer, embora jamais se tenha logrado eliminar a debilidade dos limites entre os produtos discursivos que pretendiam recobrir. Um deles é o termo filosofia, aplicado àquele que será talvez o mais difuso dos territórios que se desejava individualizar. Um segundo termo é constituído pela expressão ciências do espírito, que concorrerá com ciências morais, políticas, históricas, culturais, sociais, humanísticas e humanas. Aplica-se a uma zona de transição — amplamente caracterizada por Wolf Lepenies no livro As três culturas, de título alusivo ao já citado ensaio de C. P. Snow — , oscilante entre a pertinência às humanidades e certo tropismo para as ciências, o que acabaria causando a quebra da aludida homogeneidade destas últimas, impondo a dicotomia ciências naturais/ciências do espírito. Finalmente, um terceiro termo será obtido pela reorientação semântica da palavra literatura; esta se desliga da acepção etimológica — arte das letras, em sentido clássico, isto é, perícia em escrever e ler, e daí resultado do exercício dessa arte: instrução, saber — , para circunscrever sua aplicação a produtos discursivos que, embora heterogêneos (como, por exemplo, o poema lírico e o romance), seriam dotados de certa particularidade, constituída pela vinculação/identificação ou com a ideia de poesia conforme elaborada no pensamento romântico, já aqui aludida, ou com a ideia de arte, entendida não no sentido clássico de técnica, perícia ou ofício, mas na acepção moderna de gratuidade estética, manifestação do belo ou exposição do sentimento.

Assim se completa a obra de separar a literatura da ciência. Talvez seja lícito dizer que a iniciativa autonomista primeiro tenha sido da ciência, por ocasião de seu desligamento das humanidades. Depois a poesia também reivindicará, com os românticos, seu direito à autonomia, projeto nuclear cuja simultânea radicalização e diluição implicará o delineamento do conceito de literatura nas condições referidas. Por fim, a experiência romântica de busca de uma linguagem específica e puramente poética, desdobrando-se nas pesquisas de vanguardas literárias emergentes na segunda metade do século XIX e no XX, conduziria a uma surpreendente redefinição no status da literatura: esta, cujo vínculo decisivo com a ideia de poesia tornava presumível sua permanência no espaço generalista do humanismo, passa a retirar sua inteligibilidade não mais do repertório humanístico constitutivo da cultura geral, porém de um conhecimento especializado sem cujo domínio as produções de vanguarda mais típicas revelam-se tão incompreensíveis quanto uma teoria física exposta a um indivíduo sem a devida formação. A especialização, assim, em princípio pensada como apanágio da ciência, transforma-se em instrumento da literatura em seu empenho de autodeterminação. Essa inesperada circunstância teria desconcertado Platão, que concebeu a especialização como recurso antipoético por excelência (cf. A república, livro III), e efetivamente decepcionou um nostálgico Georg Lukács, que num ensaio de 1939, exortava escritores e críticos a romperem com o círculo estreito da investigação especializada, recuperando assim a amplitude dos interesses humanísticos. Observe-se finalmente que, em direta correlação com o que se passa no plano da própria elaboração literária, no plano teórico-especulativo a configuração moderna da ideia de literatura, arrancando das dissertações filosóficas românticas sobre a natureza da poesia, vai manifestar-se no século XX sob a forma de teses cada vez mais especializadas e formais. Estão nesse caso os esforços para a depreensão da propriedade definidora da literatura, encetados por correntes dos estudos literários deste século, especialmente as noções de desvio da norma, estranhamento, tensão (e ainda ironia e ambiguidade) e literariedade, propostas respectivamente no âmbito da estilística, do formalismo russo, do new criticism e do estruturalismo.

Vimos assim que, somente no século XIX, aparecem plenamente constituídas as fronteiras entre ciência e literatura, compreendidas desde então como dois saberes, atividades ou discursos bem distintos e mutuamente irredutíveis. Isso não significa, no entanto, que não tenha restado alguma porosidade nessas fronteiras. Nesse sentido, vamos agora apontar certa simetria que, se não for real, será pelo menos verossímil e sugestiva.

No século XIX, particularmente a partir da década de 70, não obstante a defesa romântica da dignidade da poesia em face do prestígio crescente da ciência, boa parcela da literatura capitulou à sedução dos procedimentos científicos. É o que se verifica, embora com tonalidades distintas, por exemplo nos pensamentos de Émile Zola e de Leon Tolstói. O primeiro, empolgado com a ciência sua contemporânea, em livro de 1880 se propôs estabelecer “a ideia de uma literatura determinada pela ciência” (1982, p. 25); o segundo, cujas convicções morais e religiosas conduziram a críticas severas à ciência do seu tempo, nem por isso deixa de postular subordinação dos processos artísticos aos científicos, conforme se lê em obra de 1898: “E somente então a arte, sempre dependente da ciência, será o que poderia e deveria ser: um órgão igualmente importante juntamente com a ciência para a vida e o progresso da humanidade” (1994, p. 159).

Em torno da década de 70 do nosso século, em contrapartida, tudo faz crer que a relação ciência/literatura revela seu caráter reversível. A reflexão epistemológica, a partir de pesquisas de ponta em diversas disciplinas científicas, direciona o interesse para as interferências do acaso, da ação do tempo e das irregularidades em geral sobre os objetos de investigação; a grande ideia-diretriz da atitude científica consumada no século XIX — o determinismo — torna-se alvo de restrições, que culminam na proposição do que se veio a chamar ciências do caos ou, segundo nomenclatura mais recente, ciências da complexidade. Desse modo, se em fins do século passado ficcionistas e poetas revelavam seus projetos de orientação pela ciência, neste nosso fim de século são os cientistas de diversas áreas que declaram suas afinidades com o trabalho dos artistas.

bibliografia

A. Norman Jeffares: Language, literature and science: an inaugural lecture (1959); Aldous Huxley: Literature and science (1963); Aristóteles: Poética (Porto Alegre, 1966); B. Ifor Evans: Literature and science (1954); C. P. Snow: As duas culturas e uma segunda leitura (São Paulo, 1995); Émile Zola: O romance experimental e o naturalismo no teatro (São Paulo, 1982); Georg Lukács: O escritor e o crítico. In: —. Marxismo e teoria da literatura (Rio de Janeiro, 1968). p. 215-54; Henri-Irénée Marrou: História da educação na antiguidade (São Paulo, 1975); J. A. V Chapple: Science and literature in the nineteenth century (1986); J. L. Jardanova (ed): Languages and nature; critical essays on science and literature (1986); John Stuart Mill: What is poetry? In: Critical theory since Plato. (San Diego, 1971). p. 537-43; Leon Tolstói: O que é a arte? (São Paulo:, 1994); Murray Gell-Mann: O quark e o jaguar (Rio de Janeiro, 1996); Peter Dixon: Rhetoric (London, 1971); Platão. A república (Porto Alegre, 1964); William Wordsworth: “Preface to the second edition of Lyrical ballads”, in: Critical theory since Plato (San Diego, 1971). pp. 433-43; Wolf Lepenies: As três culturas (São Paulo, 1996).