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A pregnância da conflitualidade e do paradoxo, no processo de contactos entre produtores e produtos de um determinado campo artístico, tem o seu exemplo privilegiado na relação que se considera excessiva, ao ponto de, relativamente a ela, se poder falar de plágio. Assim, o facto de um autor ser acusado de estabelecer excessivos contactos textuais com os seus pares ou mestres, contemporâneos ou antecessores, revela com muito maior precisão e densidade os itens que estão em causa nessa relação, do que o levantamento neutro, feito pela actividade crítica de leitura especializada, académica ou não. No fundo, atentar nos processos de uma acusação de plágio, desde a sua primeira formulação, de crítica empenhada ou partidária, até à sua generalização, como tópico recorrente relativamente ao autor em causa, oferece um manancial quase inesgotável de problemas, valores, perspectivas estéticas e ideológicas, ligados à concepção do objecto poético, podendo mesmo influenciar à própria concepção do campo literário (os mestres, os cânones, os marginais…) que é actualizado por múltiplas perspectivas: a dos autores (nos seus posicionamento poéticos), a dos críticos (nas suas formulações de enquadramento e abstracção teoréticas) e a dos leitores comuns (nas suas valorizações e interesses de leitura). Um caso notável, a referir como exemplo, foi a acusação feita ao romance de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, referindo-o como plágio de La Faute de l’abbé Mouret, de Émile Zola.

Somos levados a reconhecer que o conceito de plágio, dentro dos vários modelos discursivos relativas à literatura (teorias, poéticas, críticas), caso não seja atribuído apenas a ocorrências de captura camuflada, integral e ipsis verbis, corre o risco de se confundir com quase todas as práticas da interacção textual e de ser mais um imbróglio no nosso discurso argumentativo do que um conceito linearmente operatório. A menos que o tomemos apenas como designação do processo de paradoxos e mal entendidos, na percepção de um ou vários casos de relacionamentos temáticos e/ou formais, entre obras de autores distintos. Assim, embora correndo o risco de assumir as aporias que o mesmo texto, assinado por dois autores distintos e dissociados no tempo e no espaço, poderia suscitar, como maliciosamente o demonstrou Borges no “Pierre Ménard Autor del Quijote”, podemos considerar, à partida, que o plágio, para existir, teria de ser textualmente total e que o nome do autor original teria de ser, de algum modo, “apagado”. As operações previsíveis para esse apagamento são várias, podendo chegar, na pior das hipóteses, ao roubo do original ou ao assassinato do autor. É claro que tais acontecimentos, a serem possíveis, cabem na alçada da investigação policial ou do processo criminal.

De facto, podemos imaginar uma espécie de truque de prestidigitação, capaz de iludir não só o leitor, o público em geral, mas, sobretudo, coisa mais difícil, o próprio autor. Contudo, se não postular essa “distracção”, assombrosa e perene, o plágio apenas pode ser entendido como uma impossibilidade, ou então como uma simples farsa, um equívoco de atribuição, ou uma simples forma de apropriação, ingenuamente perpetrada e facilmente deslindável. No fundo, roubar a autoria de uma obra é algo tão complexo e dificilmente realizável como roubar a identidade de alguém. Mas tais “ilegalidades” acontecem. Normalmente existem e mantêm-se pelo facto de se realizarem em meios sociais restritos, sendo tanto mais eficazes quanto esses meios desconheçam o objecto roubado ou plagiado. Se o indivíduo cuja identidade foi utilizada para identificar outra pessoa for pouco conhecido em meios alargados, o sucesso do roubo da sua identidade pode ser prolongado, e, caso viva isolado e se tiverem perdido dele os registos civis, pode ser total. Se o autor cuja obre de criação é roubada for pouco conhecido, ou se o plagiador a fizer circular como sua, num meio restrito e pouco conhecedor do género de obra em questão, a apropriação indevida pode não ser descoberta.

Tendo em conta tudo isso, é possível pensar, em nosso entender, na existência de dois processos, conduzindo a que a questão do plágio gere instrumentos nocionais e procure construir categorias discretas que visam elaborar os contornos de um objecto, resultante da invenção, passível de ser propriedade de alguém e de ser roubado por outrem: a construção ideológica do “autor” como génio, o qual é concebido como alguém que gera a obra a partir da sua própria psique, ou por acção criadora do seu espírito, inventando ab ovo, proveniente do romantismo; e a valorização da sinopse, do argumento, da ideia de uma intriga, que se desenvolve na narrativa, numa situação dramática, ou na evocação realizada pela lírica, como objectos de pertença de alguém.

Com a operação de categorização da invenção – tomando-a como o processo da actividade criadora de objectos originais e irrepetíveis –, noções difusas, oriundas dos processos de compreensão da organização dos discursos, como a inventio [a euresis, em grego], que designa a fase de determinação dos tópicos do discurso, ou provenientes do juízo estético, como o termo criação, são assumidas enquanto designações da actividade capaz de produzir objectos poéticos ou estéticos, considerando-os descobertas, inventos ou criações pessoais, a serem colocadas em paralelo com as descobertas científicas. Assim como estas são tomadas por produtos de um trabalho de investigação, cujos resultados podem ser reivindicados pelo cientista, existindo como princípios ou leis atribuíveis ao seu descobridor (por exemplo: “qualquer corpo mergulhado num líquido….” é atribuída Arquimedes e assim é retomada no corpo do discurso científico), o autor artístico procura colar ao seu nome o discurso integral que produz como obra.

Mas é preciso reconhecer que há uma enorme diferença entre os dois tipos de autoria, na dimensão dos discursos reivindicados. O cientista reivindica um enunciado e, sobretudo, não tanto o enunciado ipsis verbis, como o objecto de saber por ele delineado. Assim, por um lado, ele reconhece que o discurso mais extenso, em que o seu enunciado original ganha sentido, pertence ao corpo colectivo da ciência, a todos que, desde sempre e em toda a parte, fazem ciência, e, por outro, aceita que a fórmula do enunciado pode desaparecer desde que seja substituída por outra que determine o mesmo objecto sem deixar de se considerar autor da lei ou do princípio enunciado (a fórmula matemática que represente o dinamismo da flutuação de um corpo, em vez do enunciado de Arquimedes, por exemplo).

Quando tratamos a propriedade de um texto artístico do mesmo modo que, na ciência, o investigador reivindica o enunciado de um princípio, arriscamo-nos a reivindicar, como resultado da criação ou da invenção, uma massa textual imensa, na totalidade e nas partes. Essa pretensão é tanto mais paradoxal quanto sabemos que o valor e realidade de uma obra artística não existe tanto na originalidade do seu tema, nem na excepcionalidade ou exclusividades de cada um dos seus signos (linguísticos, semióticos, poéticos), como reside, sobretudo, no modo como se agrupam e estruturam os elementos, em função de uma dimensão temático/ideológica que, por esse meio (o formular da obra enquanto sistema semiótico) se repete e reformula, simultaneamente.

Ora, se a ideia de génio, segundo o romantismo, gera a ideia de uma propriedade que estende as suas fronteiras de um modo tal que todas as parecenças – do todo ou das partes – são suspeitas e tende a condenar todos os processos de paródias, pastiches ou imitações, cultivando um modelo mítico de autoralidade ideal, em que a obra produzida não se pode parecer com nada e rejeitará como má ou nula toda e qualquer obra que a ela se venha a assemelhar; a prática mais recente da produção artística, exactamente desde o romantismo, tende para a produção de adaptações (ou seja, a utilização da “mesma obra mas de outra forma”), sobretudo as teatrais, operáticas, cinematográficas e difusões gráficas de massas (por exemplo:  de um romance para uma peça, para uma ópera, para um filme, para uma versão resumida, para uma banda desenhada).

Relativamente ao último aspecto apresentado no parágrafo anterior, podemos dar como assente que, para a produção dos espectáculos, convergem, muitas vezes, transformações de textos artísticos oriundos das mais variadas linguagens: literário-verbais, pictórico-visuais e auditivo-musicais. São reconhecidos – e, por isso, remunerados, quando as coisas correm com lisura e idoneidade – os autores das obras que estão na base daquelas que delas resultam, por adaptação ou transposição, as quais  integram e transformam as primeiras, gerando um espectáculo de impacto nas massas, o qual pode dar lucros tentadores para quem os produz. Uma mesma história, um universo pictórico, uma obra musical podem surgir agregadas na obra de um novo criador:  músico/ libretista, na ópera, dramaturgista, no teatro, realizador, no cinema… Mesmo que não mantenham os traços e os nomes das personagens, as referências espaciais e históricas e outros índices iniludíveis de identidade são, normalmente, reconhecidas como adaptações devedoras, sobretudo para efeitos de pagamento de direitos.

De tal modo assim é que, por regra, quando o plágio não passa de uma obra semelhante a outra, numa mesma linguagem que não esteja vocacionada para o espectáculo de massas, pode haver acusações, mas, em princípio, o caso dirime-se em invectivas mais ou menos violentas. Ao passo que, quando uma narrativa é adaptada a um espectáculo de palco, ou a um ecrã, os proventos da sua exibição são cobiçados e, caso a autoria do argumento não seja reconhecida e devidamente remunerada, a questão pode tomar proporções litigiosas que terminam em tribunal. Pensamos que é sobretudo por via deste último mecanismo que o plágio, sob a designação de contrafacção, consolidou a sua figura legal.

Alargando, deste modo, a compreensão do termo plágio, que acabou por se tornar uma noção bastante dinâmica, no entendimento crítico da leitura e recepção das obras literárias, muito especialmente as de ficção, percebemos que, sobre ele, poderíamos fazer incidir uma conceptualização que lhe retirasse o sentido depreciativo, presente nalgumas dimensões do seu significado, para o fazer funcionar como um objecto de apoio à investigação das condicionantes culturais e literárias em que toda a nova obra emerge. Nessa óptica, a designação de plágio sublinha, sobretudo, a evidência de um relacionamento entre uma obra que emerge e outras, que a precedem, determináveis segundo o gosto e conhecimento do leitor ou crítico. Toda e qualquer configuração do novo autor, que seja semelhante à de um escritor do passado (mesmo do passado recente), pode ser vista como uma imitação dolosa, ou como uma criativa apropriação de um texto alheio.

{bibliografia}

BERGLER, Edmundo, 1971, O Plágio, Moçambique Editora, Lourenço Mar­ques

DARRIEUSSECQ, Marie, 2010, Rapport de police, Folio/POL, Paris

GENETTE, Gérard, 1982, Palimpsestes, Seuil, Paris

JORGE, Carlos J. F., 2013, Plágio – Propriedade e Apropriação em Eça, Zola e Outros…, Apenas Livros, Lisboa