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O conceito de decadência remete, originariamente, para um significado histórico-político e, numa acepção mais lata e algo “impressionista”, para uma atmosfera psicológica e moral (decorrente, em parte, de um particular contexto socioeconómico e político epocal, onde confluem imagens e recordações da fase crepuscular de antigas civilizações) que caracterizou a cultura europeia (com acentuados reflexos e prolongamentos na América Latina e Estados-Unidos da América, por exemplo) do último quartel do século XIX. Nos quadros mentais da “Europa das Luzes”, particularmente em França, o conceito surge relacionado, pela primeira vez, com o declínio do Império Romano tardio (Montesquieu, Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de leur décadence, 1734; edição definitiva em 1748), legitimando e reforçando os ditames da emergente racionalidade clássica. Posteriormente, nessa linha, poder-se-á ler o fragmentário Essai sur les causes et les effets de la perfection et de la décadence des lettres et des arts (1780-1790; título segundo a edição póstuma de Abel Lefranc, 1899) de André Chernier, ou ainda a obra de Désiré Nisard, historiador da literatura clássica, Études de moeurs et de critique sur les poètes latins de la décadence (1834), autor que compara a obra de Lucano, poeta maneirista latino, com a literatura do seu tempo, assinalando numerosas coincidências negativas na sobrecarga erudita, no uso pretensamente inexacto das palavras e nas complicadas figuras de estilo. Exemplos da formulação de juízos valorativos profundamente desvalorizadores da decadência, com base num pessimismo cultural que tem a sua génese numa interpretação histórica “descendente”, que entende a História como uma decadência gradual, desde o estado mítico do Paraíso e da “Idade do Ouro” até à queda final.

A sensação de viver numa época terminal perpassa por todo o século XIX, desde o romântico “mal du siècle”, a dolorosa consciência da vacuidade da vida (ennui) que é descrita magistralmente por A. de Musset (1810-1857) em La confession d’un enfant du siècle (1836), passando pelo baudelairiano spleen até ao decadente “Fin-de-Siècle”. Esta expressão, que numerosas línguas tomam emprestada do Francês (entrando, deste modo, no uso cultural internacional), designando, grosso modo, a passagem do século XIX para o nosso século, encontra-se em estreita relação com outras como “literatura decadente”, “literatura da decadência”, “decadismo”, “snobismo”, “diletantismo”. Em França foi modismo na designação da consciência decadente descrita e analisada por Ch. Nodier (1780-1844) já em princípios do século XIX. O sentimento cultural finissecular com ela relacionado, caracterizado pelo ostensivo pendor voluptuoso para a morbidez, impregnado de luxo e refinamento na busca de sensações novas, mais intensas, fruídas na temática extravagante e no requinte da forma, procedia de uma situação de tensão face ao contexto socio-económico e político. A consciência da ruína cultural da época encontra-se em estreita relação com a observação do ocaso do poder político. Em França, já Musset se lamentava do declínio do poder napoleónico. No nosso país, Antero de Quental (1842-1891), por seu turno, analisa, no âmbito de uma série de conferências no Casino Lisbonense, a 27 de Maio de 1871, as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (Prosas, vol. II, Coimbra, 1926), dando voz à ibérica ambiência agónica, numa reflexão sobre a problemática do declínio pátrio, peculiar tratamento tópico da decadência nacional, tão agudizado pela geração de 70 e a tarefa semelhante se consagra o espanhol Ángel Ganivet (1865-1898), considerado o percursor da geração de 98, em Espanha, na sua obra Idearum Español (1897). De facto, as análises pessimistas foram, em grande parte, confirmadas por acontecimentos políticos: a França perde a guerra de 1870/71 contra a Prússia-Alemanha, Portugal sofre a “vergonha” do Ultimatum inglês de 1890 (incidente diplomático com profundas repercussões no imaginário colectivo da época). A Espanha perde, em 1898, a guerra contra os Estados-Unidos. Apenas a Itália parece viver um eufórico sentimento de união política, com a conversão de Roma, em 1870, como capital de um país unificado.

No sentido mais restrito, a “decadência” é, no plano estético, uma corrente da literatura francesa desde meados do século XIX com o seu apogeu nos anos 80. No quadro da reacção irracionalista (o retorno ao onirismo, aos mitos, à imaginação, ao fantástico), espiritualista (catolicismo estético, rosa-crucianismo, budismo, por exemplo) e ocultista (magia, cabala, espiritismo, teosofia, quiromancia, astrologia) do fim-de-século contra o positivismo e o cientismo, o decadentismo integra uma lata e plural renovação estética, de teor antinaturalista e antiparnasiana, distinguindo-se como arte de crise correspondente a uma paradoxal atitude, dúbia e ambivalente, perante a sociedade urbano-industrial (miticamente percepcionada como processo de declínio irreversível, o finis Latinorium) e face aos efeitos da moderna racionalidade científica e pragmática, em que o materialismo burguês despontava como algo de abjecto. Daí a recusa do utilitário, de um praticismo social unicamente orientado para os valores mercantis e, como contraponto, a projecção para o “culto do eu” que, tanto no plano do estético como do vivencial, relevava a diferença entre a elite e as massas. Daí, igualmente, o culto exacerbado do artifício, do anti-natural (na tradição baudelairiana), do excesso, do decorativismo sensualista (a predominância dos universos de simulacro, a sofisticação ritualística dos objectos, o fascínio pela flora exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a sintaxe dos odores) e o culto do individualismo (expressão dum egotismo absoluto, clara hipertrofia do eu), a centripetação subjectiva (especularidade narcísica), a ficcionalização de um narcisismo paroxístico. Sob o primado destas tendências temático-formais (a que poderíamos acrescentar, entre outras, o amor ritualmente lascivo e inibitório, o fascínio pela figura ambivalente de Salomé, tal como surgia nos quadros do pintor simbolista Gustave Moreau, o erotismo anómalo, a volúpia transgressiva do vício e do sangue, o imaginário nosológico, monstruoso e necrófilo) o decadentismo reclama o novo, pretendendo os estetas libertar a literatura e as artes das convenções da moral burguesa, conscientes que estavam da desilusão de um século que parecia ter esgotado todas as potencialidades de um romantismo reduzido a cinzas. Estes sentimentos encontraram fortíssima expressão literária na obra de J.-K Huysmans (1848-1907), particularmente em A rebours (1884) que, sob a influência tardia do pessimismo de Schopenhauer (1788-1860), empreende uma síntese intensificadora da estética decadente na criação da personagem Des Esseintes, paradigma do dândi finissecular. As representações mentais do “fin-de-siècle” pareciam, deste modo, corresponder à chamada “decadência” e difundir-se-iam, por volta do penúltimo decénio do século XIX , ultrapassando as fronteiras da área franco-belga, persistindo na Europa e na América Latina, ora até aos alvores do século XX (constituindo incontornável substrato da fermentação das estéticas da modernidade emergente, importante momento do conflito entre a modernidade estética pós-baudelairiana e a modernidade científico-sociológica de matriz iluminista), ora até ao imediato pós-Guerra. Representantes desta sensibilidade, exteriores à área linguística francófona, foram, entre outros, Hofmannsthal (1874-1929) na Áustria, Pascoli (1855-1912) e D’Annunzio (1863-1938) em Itália, W. Pater (1839-1894), E. Dowson (1867-1900) e O. Wilde (1854-1900) na Grã-Bretanha, Ramón del Valle-Inclán (1869-1936) em Espanha, os poetas hispanófonos do “modernismo”, do “modernisme” catalão e muitos autores do simbolismo e pós-simbolismo português (Eugénio de Castro, António Nobre, Cesário Verde, Afonso Lopes Vieira, João Barreira, Gomes Leal, entre outros). Em Portugal, o decadentismo manifesta-se cedo, na tentativa de decidida modernidade inspirada no prólogo de Ch. Baudelaire e Th. Gautier, através da criação do imaginativo poeta Carlos Fradique Mendes, cujos poemas foram escritos por Antero de Quental e Eça de Queirós, germinando nos anos 80, consolidando-se e implantando-se entre 1889 e 1891 e atingindo o auge entre 1892 e 1902, constituindo a dominante da renovação literária finissecular promovida pelo grupo portuense de Os Nefelibatas e da Revista d’hoje (Raul Brandão, João Barreira, Júlio Brandão, D. João de Castro, entre outros) e por círculos das revistas coimbrãs Boémia Nova e Os Insubmissos (António Nobre, Alberto Osório de Castro, Alberto de Oliveira, Eugénio de Castro), acompanhados pela evolução literária de figuras como Gomes Leal e Fialho de Almeida que alcançam notória manifestação na poesia e na narrativa ficcional respectivamente, manifestando-se ainda, em parte, na novelística do modernista Mário de Sá-Carneiro, em inícios do nosso século. Em Espanha, o decadentismo foi “absorvido” pelo “modernismo”, fundado por Ruben Darío e, na área linguística do Catalão, a decadência, no sentido francês do termo, não se desenvolveu independentemente, mas como corrente tributária do “modernismo” e apenas durante um curto período de tempo (cf. J. Maragall, Estrofes decadentistas). “Decadència”, no sentido catalão, é basicamente uma designação hoje recusada, da época dos historiadores românticos catalães que pretenderam, deste modo, separar a sua própria época de renovação (“Renaixença”) da época de abatimento político da Catalunha (séculos XVI-XVIII). Influenciada pela “boémia” e por Ch. Baudelaire, entre 1860 e 1880, a Itália conhece a “Scapigliatura”, denominação devida ao romance homónimo de Carlo Righetti, Gli scapigliati (1826), um movimento que revela certas semelhanças com a decadência francesa na sua luta contra a moral burguesa e contra a estética classicista. No entanto, D’Annunzio revelar-se-á como o máximo representante do decadentismo no país transalpino. Poder-se-á dizer que o decadentismo antecede imediatamente o simbolismo, acompanhando-o, contudo, epigonalmente, miscigenando-se com tendências neo-românticas até se diluir em simbioses ornamentalistas no domínio das letras e das artes, esgotando, deste modo, o seu período de vigência histórica.

bibliografia

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