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Termo originário da filosofia para a arte do diálogo ou da discussão, quer num sentido laudativo, como força de argumentação, quer, num sentido pejorativo, como excessivo emprego de subtilezas. Aristóteles considerou o seu livro Tópicos o primeiro tratado sobre a matéria, porém reconhecendo a dívida que tinha para com Zenão de Eleia (século V, a.C.), cujos famosos paradoxos constituíam o primeiro exemplo de dialéctica. A dialektiké, para além do princípio estóico, é tudo o que é mais do que o simples estudo das formas do discurso externo e interno. Não é apenas demonstração, porque parte das opiniões (endoxa) de todos aqueles que já falaram, de todos aqueles que já anunciaram uma verdade sobre os textos — o passo verdadeiramente dialéctico consiste em provar que aquilo que parece verdadeiro a todos os que sabem não é tão verdadeiro como se julga ser. Assim a define Diógenes Laércio: “O rigor, força de raciocínio que evita que sejamos arrebatados por um rigor oposto; a gravidade, aptidão para acrescentar às representações um raciocínio justo.” Platão havia abordado a dialéctica apenas como um tipo de argumentação que provinha de um esquema pergunta/resposta; um diálogo dialéctico era aquele que nascia da reflexão interpessoal. Dos filósofos estóicos à Idade Média, a dialéctica foi sendo identificada com a disciplina escolar da lógica formal. Kant, no século XVII, usou o termo de forma sistemática na sua Crítica da Razão Pura, organizando as quatro contradições da razão pura em quatro grupos de teses e antíteses. Schelling e depois Fichte chamaram síntese a esta terceira fase de resolução das contradições da tese e da antítese. Este é o sentido que hoje predomina para a dialéctica, que deve a sua quase definitiva formulação triádica a Hegel e a Marx. O primeiro tratou a dialéctica como a natureza verdadeira e única da razão e do ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o processo racional que procede pela união incessante de contrários – tese e antítese – numa categoria superior, a síntese. Segundo Marx, a dialéctica é o processo de descrição exacta do real; o materialismo dialéctico descreve o processo material do real em geral e da sociedade em particular. Em teologia, traduz a oposição entre o homem e Deus.

Hegel considerava toda a sua obra como uma construção dialéctica, em que o pensamento e a natureza aparecem como opostos unidos no espírito e na sociedade, nos produtos artísticos e religiosos do homem e, no fim último, na actividade da auto-consciência filosófica. A obra de Hegel tem, portanto, uma estrutura dialéctica, mas em que consiste o seu método dialéctico? A dialéctica (palavra da mesma origem de diálogo, donde dualidade de posições ou teses) é um processo ligado à razão, procurando superar as suas limitações no desejo último de alcançar o Absoluto. A dialéctica dá-nos uma visão em que cada momento deve ser visto como parte de um todo; o finito deve ser visto não meramente como finito, mas como concretização do infinito que através dele se eterniza. Significa isto que a realidade não é algo estático e determinada de uma vez para sempre, mas como um processo de constante transformação, sendo a contradição o motor do desenvolvimento.

A dialéctica é, pois, a estrutura do real que, entendido como processo, envolve os três conhecidos “momentos”: o da identidade, da tese, do ser em-si; o da contradição ou negação ou antítese, ser para-si; o da positividade, negação da negação, ser em-si e para-si, a totalidade, a síntese. O momento propriamente dialéctico do processo é o da negação, mas não se detém aí, ou imobilizar-se-ia. Por isso, pela negação da negação, alcança um novo estádio, ou positividade, que contém os elementos anteriores e os supera, na totalização da síntese. Se competiu a Marx e a Engels dar um conteúdo concreto à dialéctica hegeliana, a expressão poética portuguesa deste método pode encontrar-se em Antero de Quental nos dois sonetos “Tese e Antítese”. Os dois sonetos seguem a dialéctica da Fenomenologia do Espírito de Hegel no sentido em que reflectem sobre a forma como várias atitudes humanas podem ter um cerne de significação e serem contudo contraditórias. Hegel afirmará no prefácio à Fenomenologia que a verdade é uma celebração bacanal em que ninguém fica sóbrio; Antero defende a “tese” de que a Ideia se transformou numa “bacante após lúbrica ceia”, ou seja, a “nova ideia” não pode ser intuída no mundo da inconstância. Os “pecados” para com a Ideia encontram-se, a um primeiro nível de análise da dialéctica hegeliana, na falta de confiança na experiência sensorial, confirmada quando o Poeta a Ideia “nas ruas desgrenhada”, descobre que “Sanguinolento o olhar se lhe incendeia” e que “Aspira fumo e fogo embriagada” (soneto I – Tese); na descrença na Substância e no Pensamento – sobreposta à descrença na Ideia anunciada logo no primeiro verso do primeiro soneto – identificável num “século irritado e truculento” que “Chama à epilepsia pensamento, / Verbo ao estampido de pelouro e obus…”.

Uma postura dialéctica na hermenêutica de um texto literário deve observar alguns princípios de actuação: 1. Discernir o verdadeiro do falso, o coerente do incoerente em si mesmo no discurso; 2. Discernir os pontos fracos nas teses literárias e/ou ideológicas dos textos/obras; 3. Apresentar o argumento decisivo capaz de reduzir o sentido esperado (ou pré-determinado ou canonizado aprioristicamente) do texto a uma espécie de silêncio interrogador e reflexivo. Como método crítico, uma hermenêutica vista dialecticamente precisa de partir sempre de uma proposição (=enunciado que formula um juízo) problemática (que pode ser talvez verdadeira, mas que o hermeneuta afirma expressamente não o ser). Por exemplo, se quiser escrever um ensaio sobre José Régio partirei da proposição problemática de o Poeta ser um “homem religioso” e a sua poesia ser capaz de confirmar tal religiosidade. Uma variante nesta metodologia pode ser: o processo dialéctico procede de uma leitura cerrada de tudo aquilo que parece verdadeiro a todos os que leram o texto-objecto para determinar que nem tudo é tão verdadeiro como se julgava ser.

A tradição de uma hermenêutica dialéctica começa, na época contemporânea, com o célebre aforismo de Niezsche: “Não há factos, apenas versões de factos.”, de enorme repercussão para o estudo teórico da literatura. Não há um sentido-de-facto do texto, mas apenas leituras (ou “versões”) do sentido do texto. Esta é, aliás, uma das primeiras lições dialécticas quer das teorias da recepção quer da própria desconstrução que nega toda a possibilidade de determinação desse sentido. A lógica hermenêutica de Gadamer ensina-nos que quem questiona não pode deixar de ser questionado ao mesmo tempo. E Ricoeur vem acrescentar que só o conflito das interpretações nos pode dar alguma coisa do ser interpretado. É também a partir de Ricoeur que podemos sintetizar os seguintes princípios de actuação dialéctica: 1. Princípio formal: analisar os signos, as suas regras de operação e as suas inter-relações, respondendo à questão: Como funciona o texto? 2. Princípio histórico: para responder à questão: Do que é que fala o texto?, preciso de aceitar que todos os textos e todos os leitores são “históricos”; e que, enquanto discurso, um texto é linguagem escrita dirigida a alguém sobre alguma coisa. 3. Princípio fenomenológico: para responder à questão: O que é que o texto me diz que seja comum à experiência de leitura dos outros?, supor que o texto vive da experiência intersubjectiva do leitor. 4. Princípio hermenêutico: a fusão de horizontes só pode ocorrer porque o texto é um lugar de conflito entre a sua autonomia e a apropriação que o leitor faz do seu sentido; responde-se então à questão: Como é que o meu mundo mudou em função da leitura do texto?

Não basta dizer que todas as interpretações são válidas, só porque não é possível fixar o sentido de um texto. Se assim fosse, teríamos que admitir até o absurdo como interpretação válida de um dado texto. Temos que acrescentar que todas as interpretações são válidas desde que sejam criteriosas, isto é, desde que 1) não se apresentem comparativamente segunda uma lógica competitiva – uma dada interpretação não é “melhor” do que a(s) outra(s); 2) não pretendam ter mais (ou menos) mérito do que outras experiências de leitura; 3) possuam coerência ideológica; 4) sejam capazes de estabelecer a necessária abertura do conflito hermenêutico; 5) possuam inteligibilidade discursiva; 6) sejam capazes de resolver os problemas do texto (mesmo que se conclua pela sua irresolução).

bibliografia

Carlos Ceia: De Punho Cerrado – Ensaios de Hermenêutica Dialéctica da Literatura Portuguesa Contemporânea (1997); Enciclopédia: Dialéctica, vol.10 (Lisboa,1988); Hans-Georg Gadamer: Dialogue and Dialectic (1980); J. D. Evans: Aristotle’s Concept of Dialectic (1977); Jonathan Francis Bennett: Kant’s Dialectic (1974); Livio Sichirollo: Dialéctica (Lisboa, 1980); Nicolai Hartmann: A Filosofia do Idealismo Alemão (2ªed., Lisboa, 1983); Paul Folquié: A Dialéctica (Mem Martins, 3ªed., 1978; 1ª ed., 1949); Wolfgan Röd: Filosofia Dialética Moderna (Brasília, 1984).

http://vt.fermentas.lt/philo/kosmos/c.1.1.html