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O discurso indirecto livre é considerado, por grande parte dos autores, uma forma de relato de discurso, tal como os discursos directo e indirecto, embora haja quem defenda que ele é uma técnica narrativa predominantemente literária em que se sobrepõem duas situações de enunciação: a da personagem e a do narrador. Foi Charles Bally (1912) quem primeiro se debruçou sobre a existência do discurso indirecto livre na literatura francesa e as suas opiniões sobre ele ainda hoje têm ressonâncias. O linguista suiço considera o discurso indirecto livre próprio da literatura dos últimos cem anos, afirmação que outros estudiosos contestam (Fludernik, Authier-Revuz, Cerquiglini, p.e.): porque dizem encontrar discurso indirecto livre na linguagem corrente, na interacção verbal não literária, e porque consideram haver discurso indirecto livre em textos muito anteriores a Jane Austen e La Fontaine, geralmente tidos pelos primeiros utilizadores do recurso. Segundo Bally, pode ser uma forma de a sintaxe literária procurar apropriar-se de traços próprios da sintaxe falada, já que o discurso indirecto livre evita a subordinação que a oralidade usa menos do que a escrita. Seria, como mais tarde para Hamburger e Genette, uma espécie de indício estilístico da linguagem literária. Bally considera que o discurso indirecto livre cria a ilusão de um discurso directo (conservando facilmente os sinais exteriores da expressão falada, como exclamações, frases sem verbo, partículas modais, vocativos transpostos, fraseologias, interjeições, topicalizações), mas transpondo palavras (ou pensamentos) ajustadas aos tempos verbais e à pessoa gramatical da enunciação relatora. Há, no discurso indirecto livre, uma sobreposição de duas enunciações: a do relator, a quem se adaptam os tempos verbais e a pessoa gramatical e a do locutor cujo discurso é relatado, da qual se retêm palavras, expressões, sintaxe oralizante, e, geralmente, dícticos temporais (como «agora», «hoje», «presentemente»). Tem vantagens do discurso directo (a vivacidade e o «efeito de real» devidos a diferentes instruções de oralização) sem ter os defeitos dele (excessiva teatralização da fala das personagens e quebra na narrativa). Do discurso indirecto, não apresenta o inconveniente da estrutura subordinada geralmente tida por pesada, permitindo maior maleabilidade e continuidade narrativa.

Além de relatar palavras de personagens (tendo nessas ocorrências, frequentemente, conotações irónicas), o discurso indirecto livre usa-se igualmente para transmitir pensamentos, criando, nesse caso, um efeito de aproximação empática entre o leitor e o mundo interior da personagem. Relaciona-se, por este prisma, com as noções de focalização e de  ponto de vista.

Ann Banfield, que estudou o discurso indirecto livre no âmbito da gramática generativa, considera-o unspeakable, i.é., fazendo parte indissociável da narrativa, incompatível com a presença de uma segunda pessoa, ou seja, com aquele modo enunciativo a que Benveniste chamou discurso e usado, sobretudo, para referir pensamentos ou, quando muito, palavras ouvidas, o efeito que as palavras ditas têm na consciência de quem as ouve. Embora na literatura portuguesa o discurso indirecto livre se utilize, sobretudo, para reproduzir palavras de personagens e também, embora menos, para transmitir pensamentos, há passagens em que o agora coexiste com formas verbais no imperfeito (no mais-que-perfeito ou no condicional) e em que não existe transmissão nem de palavras nem de pensamentos, havendo apenas a apresentação de uma situação feita de um ponto de vista subjectivo, mas sem que, por vezes, esteja presente qualquer personagem. Banfield (1982) atribui a subjectividade e a emotividade presentes nesses excertos a um ‘empty centre’.

Guerra da Cal e Oscar Lopes atribuem a Eça de Queirós (um mestre no uso deste recurso) a introdução do discurso indirecto livre na literatura portuguesa e até peninsular.

bibliografia

Ann Banfield: Narrative Style and the Grammar of Direct and Indirect Speech, in  «Foundations of Language», 10 (1973); id.: Unspeakable Sentences. Narration and Representation in the Language of Fiction (1982); Bice Mortara Garavelli: La parola d’altri (1985); Brian Mc Hale: “Free Indirect Discourse: A Survey of Recent Accounts”, PTL: A Journal for Descriptive Poetics and Theory of Literature, 3 (1978); Charles Bally: Le Style Indirect Libre en Français Moderne (I e II), Germanish-Romanische Monatsschrift, 4; Graciela Reyes: Polifonía Textual. La citación en el relato literario (1984); Monika Fludernik: The Fictions of Language and the Language of Fiction. The Linguistic Representation of Speech and Consciousness (1993).