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Qualquer forma de linguagem concretizada num acto de comunicação oral ou escrita. Das possibilidades ilimitadas de exemplificação da tipologia do discurso, podemos falar de discurso político, literário, teatral, filosófico, cinematográfico, etc. Sinónimo de enunciado em termos linguísticos, o discurso constitui-se por um conjunto de frases logicamente ordenadas, de forma a comunicar um sentido. Nesta acepção, a frase é considerada hoje uma unidade do discurso e é susceptível de ser analisada na forma como se combina com outras frases para constituir um discurso. A palavra latina oratio possui sentido idêntico ao do discurso que é sobretudo conversação e que constitui uma realidade linguística significante. Como não existe uma única acepção de discurso, tentaremos descrever algumas propostas de teorização.

1. Em 1952, Zellig Harris propôs a designação análise do discurso para descrever um método de análise daquilo a que chamava “fala (ou escrita) conexa”. Esta ideia lançou as bases de uma linguística descritiva, cujo objectivo era o estudo de todos os enunciados que se produziam para além de uma simples frase. Esta primeira tentativa de analisar um texto na sua globalidade não teve continuidade. Contudo, e colocando de parte problemas de influências, as mais recentes teorias da análise do discurso partem do mesmo princípio. Podemos agrupá-las em dois grandes movimentos: linguístico, a partir dos estudos de Michael Halliday; sociolinguístico, a partir dos estudos de Harold Garfinkel. Também é comum associar hoje a análise do discurso ao grupo de investigação da Universidade de Birmingham, onde pontificam John Sinclair e Malcom Coulthard, que desenvolveram um projecto com o título The English Used by Teachers and Pupils (1970-72). Um estudo importante nesta área, para o caso português, é o da sociolinguista Emília Ribeiro Pedro: O Discurso na Aula: Uma Análise Sociolinguística da Prática Escolar em Portugal (1982).

2. É. Benveniste (1966), para quem o discurso é uma espécie de actualização da língua, tentou uma primeira distinção entre discurso e narrativa ou história (récit): o primeiro implica uma situação de comunicação em que um determinado locutor tenta influenciar um ouvinte; a segunda, é uma espécie de grau zero da enunciação, como se na narrativa o sujeito da enunciação fosse uma entidade morta ou incapaz de se organizar segundo a categoria da pessoa (eu vs. tu). Ora, sabemos hoje que esta acepção é profundamente redutora das funções do sujeito na narrativa e não esclarece que existem certos tipos de discurso que também anulam a capacidade comunicativa da enunciação, como sejam os discursos técnico-científicos. As teses de Bakhtin sobre o discurso do romance podem facilmente desmentir esta hipotética posição anticomunicativa do récit: todas as pessoas são influenciadas por discursos alheios, todas as pessoas aprendem no discurso de outras pessoas a sua própria ideologia. Ora, isto significa que o discurso literário é também um acto de comunicação e de aprendizagem. De notar ainda que o problema da enunciação é o lugar onde se cruzam a teoria da literatura, a psicanálise e as análises mitológicas, dado que todas estas se definem como teorias do discurso (literário; do inconsciente; e mítico). A teoria geral do discurso é apenas um projecto e devia englobar uma teoria geral do discurso científico, ideológico, político, jurídico, etc. O estruturalismo legou-nos um esboço desta teoria geral do discurso, mas não foi além disso.

3. No quadro da linguística textual, a tendência é para identificar o discurso com o texto, um conjunto coerente de enunciados que resulta de um processo de comunicação entre dois falantes. De extensão variável (entre uma única palavra e um número elevado de frases), o discurso é analisado sobretudo nas suas qualidades de coerência e coesão. Se o nível de análise destes factores for o da estrutura da frase linear, diz-se análise microestrutural; se o nível for o da totalidade do discurso, diz-se análise macroestrutural. (Este último nível corresponde, aliás, à fábula na terminologia dos formalistas russos).

4. Sobretudo nos livros Écrits (1966) e nos vários seminários recolhidos na série anual Le Séminaire de Jacques Lacan (1953-80), Lacan destaca o papel nuclear da linguagem, que é a principal força constitutiva do homem. Para Lacan, o discurso primário é o do inconsciente, que considera o discurso do Outro, ponto de partida para as relações intersubjectivas. Uma das suas mais célebres afirmações — “O inconsciente é estruturado como uma linguagem, porque a tem como pré-condição; o Simbólico precede e constitui o Imaginário.” —, proferida a partir de 1953, valeu-lhe inclusive a aproximação do seu método ao estruturalismo. Para Lacan, o inconsciente é que é simbólico e não o contrário, como se supôs na poética formalista-estruturalista, sobretudo quando aplicada à antropologia. O que se chama o ensino de Lacan é o desenvolvimento desta hipótese do inconsciente estar estruturado como uma linguagem — e, portanto, ser fundamentalmente um discurso susceptível de análise — até às suas últimas consequências.

5. O conceito de discurso literário tem sido tratado sobretudo nos estudos sobre a narrativa. O conceito entra nas discussões sobre a distinção e/ou aproximação entre récit, narrativa, história, intriga e diegese. De difícil operacionalidade, a distinção entre discurso e narrativa desde logo choca com a própria designação de discurso narrativo. Se o discurso é o suporte verbal da narrativa, não se entende como é que a distinção entre ambos pode ser hermeneuticamente relevante; se o discurso é o próprio conteúdo de uma narrativa, parece que estamos a atribuir dois nomes diferentes à mesma coisa, quando sabemos hoje que conteúdo e forma são indissociáveis na interpretação-análise de qualquer texto literário; se o discurso for, grosso modo, a composição do tempo, do espaço e das personagens de um texto narrativo, também não se vislumbra como é que se processa a separação entre o plano da análise do discurso e o da própria narrativa que é o resultado dessa composição. Parece, pois, mais conveniente, a utilização da expressão discurso literário, uma vez que nunca se separa o texto da sua própria natureza — ao invés, acrescenta-se um atributo especial (o literário), para o qual já é possível encontrar diferenças substanciais, por exemplo, a diferença primária entre discurso literário e discurso não literário (a expressão discurso não narrativo, como hipotética oposição a discurso narrativo, parece impraticável para quem define uma identificação tão completa entre discurso e narrativa, o que a própria diversidade dos géneros e modos literários parece contrariar). Por outro lado, se o discurso for definido apenas como uma entidade concreta e empírica que é sobreposicionável à narrativa, estaríamos necessariamente a introduzir um factor de ambiguidade na definição de narrativa: como é que esta pode não ser também uma entidade concreta e empírica? Por último, se se optar por estabelecer diferentes aplicações dos dois termos, discurso e narrativa, e não uma complexa associação, todos estes argumentos se tornam irrelevantes: um discurso é um dado acto comunicativo; uma narrativa é também um acto comunicativo, mas com um objectivo artístico ou literário que implica a construção de um dado estilo, isto é, obriga a um trabalho de composição textual que não pretende apenas informar, persuadir ou legislar, por exemplo, como acontece com o discurso não narrativo, mas que se ocupa da produção de mensagens não pragmáticas. É a partir daqui que é possível dizer que um discurso literário narra certos acontecimentos e que uma narrativa pode incluir diferentes discursos, para além do facto de poder ser, na sua globalidade, um outro discurso.

6. A célebre distinção saussuriana entre língua e fala, geralmente explicada em termos definitivos, quer por teóricos da literatura, quer por linguistas ainda arreigados a modelos estruturais, tem sido um dos alvos privilegiados pela crítica pós-estruturalista. O dualismo de Saussure, que produz nada mais do que um sistema abstracto e idealista, omite um terceiro elemento na construção de linguagem, aquilo a que Michel Foucault vai chamar discurso. De notar que este conceito de discurso nada tem a ver com a dimensão comunicativa de praticamente todas as propostas anteriores. O comentário de C. Segre parece oportuno: “Demasiado fácil objectar que o discurso de que ele fala nada tem a ver com o dos linguistas; ou antes: que é um ente tão abstracto que não é concretizável nem sequer em palavras e enunciados, de tal modo que toda a obra de Foucault, em vez de constituir uma descrição deste discurso ou das suas leis, é uma profecia da sua existência.” (1989, p.38). Na aparente união entre as palavras e as coisas, Foucault sugere que se podem descortinar regras que determinam e possibilitam determinadas práticas discursivas. Foucault recusou qualquer ligação categórica com o estruturalismo e a sua obra é de alguma forma evidente uma crítica profunda dos pressupostos saussurianos em que o estruturalismo se fundamentava. O pêndulo de Foucault inclina-se antes para o escrutínio da actividade da crítica literária, sugerindo a necessidade de uma auto-crítica que pode começar pela sujeição da noção de autor à mesma investigação, que se ocupa do significado do discurso. Uma análise foucaultiana destacará e analisará as diferenças, as partes dissimilares de um poema, de um romance, de várias obras. Questionará não só o conceito de história literária enquanto continuidade ou genealogia, mas também o próprio conceito de “literatura”, naquilo que a constitui como um objecto, os seus limites e exclusões, as suas implicações políticas e a sua relação com o poder na sociedade e nas instituições que a formam.

bibliografia

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http://www.lsadc.org/Tannen.html