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A doxa reside dentro da famosa caverna de Platão. Os homens nos encontraríamos acorrentados à entrada de uma gruta escura, vendo, dos acontecimentos que acontecem às nossas costas, tão-somente suas sombras na parede oposta. Poucos conseguiriam, à custa de muito esforço, libertar-se das correntes — isto é, libertar-se da percepção das coisas pelos sentidos — e virar a cabeça para ver o real, e não a sombra do real. Esse virar-se é justo a guinada da percepção sensível rumo ao pensamento puro, à visão das ideias em si.

A doxa reside no corpo, que não é apenas o continente da alma — na verdade, representa as paredes do seu cárcere. A alma se assemelha ao divino, ao supra-sensível e indissolúvel, ou seja, ao que permanece sempre idêntico a si mesmo; o corpo, por sua vez, assemelha-se ao humano, ao sensível e àquilo que se dissolve, logo, ao que jamais pode permanecer idêntico a si próprio. A alma, na concepção platônica, seria inteiramente diversa do corpo; para o filósofo, tão-somente a alma pode fazer de nós o que verdadeiramente somos; o corpo, ao contrário, acompanha cada um de nós como uma espécie de sombra.

Todo o trabalho dos homens de pensamento consiste em libertar e separar a alma do corpo — o que implica, sem paradoxo, desejar a morte, como Platão termina por reconhecer: “ou é inteiramente impossível obter um saber, ou só é possível após nossa morte. Isso porque, então — e não antes disso —, a alma estaria sozinha consigo mesma, apartada do corpo”. No aqui e no agora, portanto, não pode haver nem justiça, nem conhecimento verdadeiro — apenas alhures, quando nos libertássemos do corpo, vale dizer, da doxa e do conhecimento sensível, para alcançarmos a esfera do conhecimento supra-sensível.

Assim como o corpo se opõe à alma, a doxa se opõe à episteme. A episteme (que significa “ciência”, “conhecimento”, de onde deriva “epistemologia”) é o lugar do genuíno conhecimento racional, do pensamento puro e do verdadeiro saber, uma vez que, fora daquela caverna de sombras, pode-se ver o reino transcendente da ideia, desprovido de tempo e de espaço, onde nada muda porque tudo sempre foi o que é, assim como sempre será. A doxa, por sua vez, é o lugar do sensível, do engano e do engodo, da mera opinião, uma vez que, preso dentro da caverna e das sombras, só se podem ver as coisas não como elas verdadeiramente seriam, mas somente como elas se apresentam aos nossos sentidos de per si limitados e, como se não bastasse, submetidos, em segunda instância, ao jugo do tempo e do espaço.

O pensamento platônico fundou uma desconfiança grave no valor da opinião, termo que se pode tomar como sinônimo de doxa. Esta desconfiança chegou até os nossos dias, principalmente na chamada Academia, isto é, na escola e na universidade. Combate-se o “achismo”, para promover a expressão de um pensamento que vá além da “mera opinião”, que se fundamente, se prove, se demonstre, em suma, que supere as primeiras impressões da sensibilidade.

A oposição entre doxa e episteme atualiza-se, hoje, como oposição entre a opinião e o intelecto. A opinião só pode ver as coisas sensíveis mergulhadas no devir — na verdade, o próprio agente da opinião está mergulhado no processo de mudança constante do seu ser que o levará, em última instância, a não mais ser —; a opinião só pode perceber as primeiras aparências. O intelecto, ao contrário, tenta ver, para além das aparências e das mudanças, o que não muda, portanto, o que é. O intelecto, ao fabricar o universo com os olhos fixos nas formas inteligíveis, tenta garantir, no mundo sensível, a existência de uma certa estabilidade, de modo a permitir que ele seja conhecido e que dele se fale.

O lugar da doxa e da opinião também é conhecido como o espaço do “senso comum”, que congrega as verdades populares sobre as coisas, verdades estas, por definição, não especializadas, presas às impressões e aparências do conhecimento sensível. O Sol é menor do que a Terra (é o que vemos); os pássaros sempre foram pássaros, jamais poderiam ter sido répteis (é o que lemos nos livros sagrados); o negro é inferior ao branco (é o que constatamos graças à escravidão). A astronomia, entretanto, demonstra (não opina, não acha: demonstra) que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de mutações de microrganismos extremamente simples. A história demonstra que a superioridade da raça branca sobre a raça negra se deu em um determinado momento histórico e sob determinado e preciso aspecto, qual seja, quantidade e qualidade das armas — o que não implica qualquer outro nível de superioridade, nem moral, nem físico, nem social.

Sem dúvida, como vemos, há boas razões, de Platão até os cientistas modernos, para se desconfiar da doxa, da opinião; mas talvez também se deva desconfiar, um pouco, da episteme, ou seja, do pensamento que se quer tão puro.

O próprio Platão reconhecia que o nosso mundo, o mundo do humano, se encontra dentro da caverna. O lado de fora da caverna é uma abstração conveniente, feita para se tentar pensar além das aparências sensíveis, mas de facto não podemos saber se existe ou como existe — a não ser na morte, quando tivéssemos nos libertado do corpo para pensar apenas com a alma (o que não deixa de ser uma aposta, quer dizer, uma opinião de Platão; não deixa de ser uma espécie filosófica de doxa, já que não se pode demonstrar).

O treinamento filosófico, ou científico, ou acadêmico, não transforma o sistema perceptivo e cognitivo de um ser humano em um outro sistema completamente diferente, capaz de ver o que as pessoas destreinadas não poderiam ver. O treinamento pode apurar a percepção, pode apurar o raciocínio, mas, não só não o torna outro, como também cobra seu preço, “produzindo” outro tipo de sombras, condicionando-nos a pensar dentro de determinados esquemas e modelos mentais, esquemas e modelos estes que não deixam de ser espécies de cavernas de sombras. A tendência da ciência moderna, por exemplo, é a especialização, o que, se implica maior visão em profundidade, necessariamente reduz a visão em extensão. De tanto estudar a árvore, o biólogo pode não reconhecer mais a realidade “floresta”. A tendência da especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos.

A expressão depreciativa “senso comum” não foi inventada pelas pessoas de senso comum. Quando um cientista ou um professor se refere ao senso comum, ele está pensando nas pessoas que não passaram por um treinamento científico ou acadêmico. Na verdade, a expressão “senso comum” foi criada, e é mantida, por cientistas e acadêmicos para designar pessoas que, segundo seu próprio critério, seriam intelectualmente inferiores.

O crítico ou professor de literatura deve se preocupar em apurar, em refinar seus níveis de leitura, bem como os níveis de leitura de seus pares ou de seus alunos, para não ficar preso às sombras do “gostei”, “não gostei”. Deste modo, supera a doxa, a opinião superficial, o “achismo”. Mas também deve prestar atenção nas próprias sensações ao ler uma nova obra, para tentar fruí-la como nova, sem estar a todo momento aplicando esquemas preconcebidos de interpretação que acabam por encarcerar o texto em sombras e estereótipos fatais. Deste modo, supera a doxa filosófica, a frieza da leitura alienada de suas primeiras motivações, em suma, o “academicismo”.

bibliografia

Hans Kelsen: Die Illusion der Gerechtigkeit (1985); Hilton Japiassu & Danilo Marcondes. Dicionário básico de filosofia (1990); Luc Brisson: “Platão”; in Laurent Jaffro & Monique Labrune (orgs). Gradus philosophique (1994); Marilena Chauí: Convite à filosofia (1994); Rubem Alves: Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras (1981).