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Termo que entrou para a crítica literária a partir da reflexão dos poetas românticos ingleses sobre o processo de criação literária, que era entendido como um acto não premeditado, desartificioso e instintivo. A defesa da espontaneidade como pré-requisito da criação literária é feita por William Wordsworth no prefácio a Lyricall Ballads (1800): "I have said that poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings; it takes its origin from emotion recollected in tranquility; the emotion is contemplated till, by a species of re-action, the tranquility gradually disappears, and an emotion, kindred to that which was the subject of contemplation, is gradually produced, and does itself actually exist in the mind." Na estética de Wordsworth, destaca-se aquela função especial da imaginação no acto de criação poética, aquilo a que chamava "coloring of Imagination", ou seja, o processo criativo que se apoia no fluxo “espontâneo” dos sentimentos. Esta forma de expressão, adoptada também por Shelley e Keats (“If Poetry comes not as naturally as the Leaves to a tree it had better not come at all”, carta de 17-02-1818)., parte da noção de poeta como um tradutor de sentimentos que privilegia o trabalho da Imaginação. Coleridge foi mais prudente com esta tese da espontaneidade, defendendo que existem antes poetas que escrevem motivados pela inspiração e outros por um simples acto de vontade, mas não acreditando, de qualquer forma, que o estudo fosse uma condição da criação literária. Desde a poesia grega antiga que se acreditava que o poeta era antes um artesão, um artista que, pelo trabalho aturado, conseguia desenvolver uma técnica de composição de acordo com regras estéticas preestabelecidas. A espontaneidade não intervinha no trabalho poético e não era compatível com o processo de aquisição de uma técnica ou habilidade artística, que Sócrates, por exemplo, identificava no ser capaz de fazer (epistasthai) dos artesãos. Horácio, na Arte Poética, concede já alguma importância à inventio, termo que corresponderá, por aproximação cautelosa, ao conceito de inspiração dos românticos ingleses. Mas Horácio também adverte que a criação artística tem que ser fundada numa prática controlada pela consciência e não como resultado apenas de impulsos ou espontaneidades. A poesia japonesa sob a forma de haiku parece ter tido sempre o efeito de respostas espontâneas a certas situações, o que concorda com a tese dos românticos ingleses, que, apesar de tudo, não vingou, sobretudo no século XX. Neste século desenvolveu-se e aceitou-se quase sempre a ideia de que a criação literária é sobretudo o resultado de um trabalho aturado de composição e investigação, ao qual se pode juntar, não como sua condição sine qua non, alguma dose de espontaneidade e/ou inspiração.

Fernando Pessoa, que inventou um “poeta espontâneo”, de nome Alberto Caeiro (“O extraordinário valor da obra do sr. A.C. está precisamente em ela ser obra de um místico materialista, de um abstracto que só trata das coisas concretas, dum ingénuo e simples que não pensa senão complexamente, dum poeta da Natureza que o é do espírito, dum poeta espontâneo cuja espontaneidade é o produto de uma reflexão profunda.”, «A. C. ( Artigo para A Águia», in Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa, ed. Por Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa, 1990), criticou a postura estética dos poetas românticos ingleses, a quem chama “espamódicos”, para ilustrar a sua resistência ao método e ao estudo: “No homem culto e imaginativo a imaginação é da superfície. Assim escreve poesia querendo muito melhor geralmente do que o verdadeiro poeta. Sirva, de exemplo o célebre desafio poético sobre o tema NILO entre Leigh Hunt, Keats e Shelley. O resultado foi que os sonetos produzidos foram na razão inversa do valor dos que os produziram: o de Leigh Hunt é o melhor, segue-se depois a alguma distância o de Keats e perto deste, mas ainda assim ainda mais fraco, o de Shelley. Shelley era aliás extremamente rápido e espontâneo na inspiração; veja-se porém em que deu quando quis escrever. Sendo tão espontâneos era de esperar que os espasmódicos fossem bons líricos; é justamente o que não são. São os poetas líricos mais fracos da Inglaterra no século XIX. É nisto que se nota a sua fraqueza: é nisto que se que a sua espontaneidade é a do superficial e não a do imaginativo repentista. Este é sempre um lírico. O espasmódico nunca o é.” (“Estética – The Spasmodics – Mostram bem a diferença entre génio e talento” (1913?), in Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa, Ática, Lisboa, 1966). Esta posição de Pessoa prevalece nas várias literaturas do século XX ­­- salvo excepções como a poesia e a arte surrealistas, muito dependentes da criação espontânea e da expressão descontrolada das emoções, ou a chamada Beat Literature norte-americana, onde se destaca On the Road (1957), de Jack Kerouac, que disse ter escrito este romance de um só fôlego criativo, sem estudo ou plano prévio -, reservando-se a noção de espontaneidade para a criação literária ou artística que não é premeditada, para certas formas de poesia oral e tradicional, para a poesia ao desafio, própria de ocasiões festivas, por exemplo.

{bibliografia}

Michael N. Nagler: Spontaneity and Tradition: A Study in the Oral Art of Homer (1974); W. Jackson: Immediacy: The Development of a Critical Concept (1973).