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Aquilo que faz com que um texto de ficção seja considerado um texto de ficção. Este conceito segue de perto a célebre definição de literariedade apresentada por Roman Jakobson, no contexto do nascimento do Formalismo Russo. Da mesma forma que os teóricos da literatura posteriores ao Formalismo Russo se empenharam por demonstrar que a literariedade de um texto não pode ser reduzida a uma fórmula ou definição universal, porque não é possível enunciar uma regra ecuménica para a identificação da literariedade de um texto, também não existe nenhuma teoria da literatura que diga objectivamente o que é a ficcionalidade de um texto, enquanto marca literária. A capacidade de criar mundo imaginários, para além da realidade objectiva,, para fazer valer a etimologia do conceito, é tão indefinível como o próprio limite da genialidade artística.

No Tristram Shandy (1760-67) de Lawrence Sterne, encontramos já aquilo que hoje reconhecemos como o texto de ficção que fala de si próprio e que interroga a sua própria ficcionalidade, o que legitima o falar-se também de uma metaficcionalidade:

The thing is this.

That of all the several ways of beginning a book which are now in practice throughout the known world, I am confident my own way of doing it is the best – I’ m sure it is the most religious – for I begin with writing the first sentence – and trusting to Almighty God for the second.

(Gentleman, 1983, p.438)

Segundo Wolfgang Iser, o texto literário controla e revela a sua própria ficcionalidade: “Unlike such non-literary fictions, the literary text reveals its own fictionality. Because of this, its function must be radically different from that of related activities that mask their fictional nature. The masking, of course, need not necessarily occur with the intention to deceive; it occurs because the fiction is meant to provide an explanation, or even a foundation, and would not do so if its fictive nature were to be exposed. The concealment of fictionality endows an explanation with an appearance of reality, which is vital, because fiction – as explanation – functions as the constitutive basis of this reality.” (“The Significance of Fictionalizing” (1997), http://www.anthropoetics.ucla.edu/ap0302/iser_fiction.htm). A ficção pós-moderna tem sido interpretada como uma forma de representação do irrepresentável ou como uma forma de transfiguração da própria matéria ficcionalizada. David Lodge, recordando o Ulysses, de James Joyce, não parece recear o desafio de o romance pós-moderno ser também uma forma de representação ou transfiguração do real: “The circumstantial particularity of the novel is thus a kind of anti-convention. It attempts to disguise the fact that a novel is discontinuous with real life. It suggest that the life of a novel is a bit of real life which we happen not to have heard about before, but which somewhere is or was going on. The novelist peoples the world of verifiable data (Dublin, a seaport, capital of Ireland, contains a street called Eccles St) with fictitious characters and events (Leopold Bloom, Jew, advertising salesman, married, one daughter living, one son dead, is cuckolded, befriends a young man). The novelist moves cautiously from the real to the fíctional world, and takes pains to conceal the movement.” (Language of Fiction: Essays in Criticism and Verbal Analysis of the English Novel, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1966, p.42). O uso crítico e não crítico do termo ficção levou-nos até hoje a colocar na mesma estante de uma livraria ou de uma biblioteca todo o tipo de texto narrativo sem olhar a sub-géneros. Qualquer romance, independentemente daquilo que representa, será colocado na estante que diz “ficção”. Por exemplo, um texto como Small World, de David Lodge, é um texto de ficção = mundo imaginado apenas nos pormenores (nomes de personagens e lugares e factos secundários da narrativa). O corpo principal do romance académico de Lodge, como aliás todos os seus romances, é uma representação da mais imediata realidade, dos nossos actos mais mundanos, dos nossos comportamentos mais sociais, das nossas ideias mais terrestres, enfim, tudo o que não podemos em consciência reconhecer como fictício, imaginário ou ficcional. Tais textos estão demasiado próximos da realidade que ficcionam para poderem suportar a ideia de que, enquanto textos de ficção, apenas podem revelar-nos mundos imaginados. Assim sendo, talvez esteja mais próxima do conceito pragmático de ficção a ideia de que o tipo de representação que está em jogo não depende da realidade ou da irrealidade do objecto representado mas do simples facto de o texto ficcional ser uma forma de representação-encenação do mundo.

De que representação do real falamos quando falamos de ficção, de textos de ficção literária ou de romances como textos ficcionais? Se todo o real for irrepresentável, então não será legítimo afirmar que todo o real é uma ficção? Parece que a mais elementar lógica recomenda que a definição dos dicionários para o termo ficção seja uma forma de conflito com a noção moderna e pós-moderna do que se entende por romance. De acordo com o Oxford English Dictionary, a ficção é “the species of literature which is concerned with the narration of imaginary events and the portraiture of imaginary characters”. A partir da simples denotação do termo ficção — e assumindo que o romance é uma forma privilegiada de ficção — seríamos obrigados a concluir que romance é sinónimo de representação de mundos imaginários com personagens imaginárias. Esta posição primária e estreita da noção de romance/ficção parece concordar mais com a tese da irrepresentabilidade do real, porque se este é irrepresentável objectivamente, só por via da imaginação criativa o podemos representar. A meu ver, há contudo um conceito alargado de ficção que convém melhor à questão da representação. João Ferreira Duarte oferece-nos uma reflexão sobre o conceito em “Ficção” que considera em primeiro lugar “um modo de discurso sem referência, no sentido em que, por um lado, os objectos que nomeia são empiricamente inexistentes e,, por outro, não se submete ao valor de verdade, não podendo, por isso, ser considerado falso ou mentiroso.” (Actas do V Encontro da APEAA, 4, 5 e 6 de Maio de 1984, Universidade do Minho, p.18). Esta formulação coincide na crença em uma certa forma de descompromisso com o real ou com a sua descrição mimética que alguns romancistas pós-modernos adoptam.

{bibliografia}

AA.VV: Dedalus, 2 (“Facto e ficção na literatura e na teoria literária”) (1992); Calin Andrei Mihailescu e Walid Hamarneh (eds.): Fictions Updated: Theories of Fictionality, Narratology, and Poetics (1996); M. Riffaterre: Fictional Truth (1990); R. Scholes: Fabulation and Metafiction (1979); Wolfgang Iser: “The Significance of Fictionalizing”, Anthropoetics III, 2 (1997).