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Expressão cunhada por H.-G.Gadamer para caracterizar, contra a concepção romântica e historicista da hermenêutica moderna o nexo de compreensão e experiência que caracteriza o procedimento intelectivo próprio da hermenêutica. Para este autor, discípulo de Heidegger e da sua hermenêutica da facticidade, todo aquele que quer compreender, por exemplo, um texto ou um documento do passado, parte já do efeito que, sobre a sua situação histórica -concreta, exerce esse mesmo texto ou tradição e não de um ponto de partida neutro ou desinteressado. Na própria imediatidade aparente com que alguém se dirige para uma determinada obra ou tradição actua já sempre, de uma forma subreptícia,o efeito da recepção dessa mesma obra ou tradição .É verdadeira tarefa de uma hermenêutica tomar consciência do poder exercido por este efeito em toda a compreensão. O que significa que é necessário perceber, antes de mais, que não existe para o intérprete a possibilidade de uma compreensão pura, sem pressupostos, isto é, que a possibilidade de uma reconstrução objectiva e exacta da mentalidade e circunstâncias do autor lhe é vedada. Esta compreensão foi o logro da tradição romântica que, partilhando o modelo iluminista de uma compreensão sem pressupostos,acreditou no ideal da congenialidade como verdadeiro princípio hermenêutico. Esqueceu, assim, que toda a situação hermenêutica está determinada pelos seus próprios pré-juízos, que marcam o horizonte do presente , a partir do qual cada intérprete se abre a outros horizontes ou possibilidades de ser, representados pelos textos e documentos vários da tradição. Esqueceu ,com isto, que o que nos parece ser a reconstrução de um sentido passado se funde sempre com o que atrai directamente o presente, isto é, com as nossas expectativas; que o nosso ponto de vista próprio, sempre situado, se mistura com o ponto de vista do texto, fazendo-o assim acontecer num verdadeiro processso de fusão de horizontes.

O conhecimento histórico ou literário é,aliás, um exemplo claro de que a compreensão não é nunca uma pura actualização de contéudos mortos depositados em obras escritas.Compreender um texto ou fragmento do passado é, de facto, entendê-lo a partir da questão que ainda hoje ele nos suscita : um processo de contínua fusão ou alargamento de horizontes pelo qual todo o intérprete participa com outros no longo e àrduo caminho do sentido. Aceita-se por fim algo que para o ponto de vista iluminista romântico e histórico era inaceitável : a linguagem simbólica e plural, própria da narratividade das coisas. Mas o que é que isto significa? Significa que uma hermenêutica filosófica reconhece na finitude humana o seu motivo fundamental e sabe que para o homem não existe já a possibilidade de uma coincidência com o real, pois que toda a compreensão humana é linguísticamente mediada e… toda a linguagem é, como o dizia já Aristóteles, uma hermeneia originária do real. Quer dizer que a compreensão é uma apreensão deste por meio de expressões significantes e nunca um puro extracto de impressões vindas das coisas.Daí que toda a verdade seja agora solidária do poder e efeito da palavra e revele o seu sentido através da solicitação que sempre dirige a todo e cada intérprete que a queira apropriar. Daí, ainda, a necessidade que tem toda a interpretação de se deixar fecundar pela abertura a outros horizontes de configuração do referente.Porque o homem é finito, só na linguagem, e seu poder dialógico fundamental, as coisas podem realmente alcançar a sua objectividade (idealidade própria). Só aqui deixam de pertencer ao ponto de vista egoísta do sujeito transcendental anónimo para se elevarem à dimensão da co-referência dos homens concretos que atingidos na sua concretude pela palavra que descentra e interpela, sabem colocar a alteridade do dito, e a da sua perspectiva, no horizonte de uma procura nunca acabada. O outro como tu é assim o mediador fundamental da compreensão de uma verdade,a verdade do histórico e do literário,que nada é sem a sua vinculação ao poder interpelador da palavra já sempre falada e partilhada por outros .O ideal da compreensão por meio de uma “ fusão de horizontes “, historicamente diferentes, substitui pois o modelo metodológico clássico da compreensão explicativa das coisas. Revela ao homem, que aceita a sua condição de ser finito, histórico e situado,que tudo o que existe existe apenas na e pela relação com o outro homem. logo, que a compreensão hermenêutica exige a substituição do modelo clássico da pura presença da coisa pelo da sua narrativa, configuração ou simbolização.

Neste sentido,a hermenêutica gadameriana da historicidade do compreender sublinha, na raiz de toda a reflexividade hermenêutica, algo que a tradição da filosofia reflexiva – para a qual não existia a questão do texto ou da condição corpórea ou linguageira de todo o entendimento humano – não pôde pensar: a relação do Ser ou da Verdade com a problemática da existência concreta, da história, da escrita e da interpretação.Dito de outro modo, é na pertença a uma tradição e horizonte histórico-concreto que enraíza a condição verdadeiramente simbólica de toda a compreensão humana. O ideal de uma “fusão de horizontes” como modelo da intelecção hermenêutica é, pois, um ideal crítico do modelo da consciência reflexiva moderna e do seu voto de uma compreensão neutra e exacta. Procura devolver, hoje ao sujeito compreensor a verdadeira dimensão da sua distância, indicando-lhe o caminho da relação ao outro como única via de superar a usura narcísica da verdade e, com ela, evitar a conversão ideológica do pensar. No consenso ou “ fusão” alcançado, ou ainda sempre por alcançar, exprime-se então toda uma nova maneira de compreender, que não representa, já apenas a verdade de um ou de outro mas, pelo contrário, uma síntese aberta a novas glosas e comentários .Isto quer dizer que verdade hermenêutica não é subjectiva mas intersubjectiva, sempre ligada à condição horizôntica ou dialógico-questionante do ser humano. É referência a um sentido excessivo, que não existindo para além do tempo em que é narrado, se repete nos diferentes horizontes da sua compreensão como símbolo de um envio já sempre recebido mas nunca totalizado.

Em conclusão, na perspectiva de Gadamer, a ideia de “ fusão de horizontes – conduzida deste modo pelo processo dialéctico da palavra – visa, na perspectiva de Gadamer revelar-.nos toda a diferença que existe entre uma compreensão hermenêutica e uma comprensão totalizante. A objectividade hermenêutica é inseparável das categorias da comunicação e implicação no sentido e sabe que o encontro ou fusão de horizontes distintos não é nunca equivalente ao fenómeno da mediação total. Acontecerá sempre isto em todo o processo de interpretação : a linha de sentido que se revela no decurso da leitura acaba necessariamente numa indetreminação aberta.O leitor pode e deve reconhecer que gerações futuras compreenderão de um modo novo o que ele leu neste texto.O âmbito da Hermenêutica não é homogéneo nem tão pouco regulável a priori.É, pelo contrário, percorrido por interpretações diferentes e, por vezes, até concorrentes. No entanto, a interpretação, que se sabe finita, reconhece que ou se abre a outras interpretações ou não faz mais sentido. É porque não pode haver um saber absoluto do todo da história e dos textos que dão testemunho do sentido do existir que não podemos renunciar à forma de aproximação característica da “ fusão de horizontes”.

{bibliografia}

H.- G. GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik I. Wahrheit und Methode-1. Grundzuege einer philosophischen Hermeneutik, Tuebingen, Mohr, 1986.; ID., Gesammelte Werke, 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergaenzungen. Register, Tuebingen, Mohr, 1986.M. L. PORTOCARRERO SILVA, O Preconceito em Gadamer: Sentido de uma Reabilitação, Lisboa, FCG/ JNICT,1995; ID., “ Da fusão de horizontes ao conflito das interpretações : a hermenêutica entre Gadamer e Ricoeur” in Revista Filosófica de Coimbra , vol. 1, nº1, 1992 , 127- 153.