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Etimologicamente falando, o termo gramática (do grego grammatiké, gramma “letra” + tékhne “arte”]) surge na Grécia entre os séculos V-IV a. C., para designar a técnica das letras da escrita alfabética grega. Por extensão, o vocábulo passou a arte ou ciência de ler e escrever, sendo tékhne (equivalente à ars dos latinos) um tipo de conhecimento dirigido à produção e ao saber fazer humano, aplicado, ao nível da língua, na regulamentação da sua pureza linguística. A regulamentação, sempre de natureza prescritiva, tinha finalidades pedagógicas; a pureza linguística era entendida como puritas (“purismo”), isto é, correcção idiomática, aferida quer pelo uso linguístico dos bons escritores (o consensus eruditorum), quer pelo uso de grupos socialmente localizados (caso do usage de la cour no francês do século XVII).

É neste sentido originário de saber relativo à língua escrita, a única então objecto de descrição gramatical, que o mundo ocidental vê os gregos, continuados pelos romanos, a associarem gramática a literatura e a chamarem “homme de lettres”, “homme d’érudition” ao gramático, que se distinguia do gramatista pelo tributo prestado à tutela da lógica (ou arte de pensar) na formação da capacidade da arte de bem falar e escrever (Diderot e D’Alembert, 1751-1772). Lógia e gramática entremeadas no discurso filosófico sobre a linguagem humana até ao século dos port-royalinos, foram hauridas em Platão, Aristóteles e nos estóicos. Já a escola filológico-gramatical de Alexandria (III a. C.), que a estes se sucede, e nela, sobretudo, Dionísio de Trácia (Téchne Grammatiké, II-I a. C.), seguido de Apolónio Díscolo (Sintaxis, século I), respondem pela codificação gramatical como forma de resolver problemas filológicos das obras homéricas e protegê-las da corrupção da mudança linguística. Deste modo, gramática e filologia confundidas passam a ser exegese dos textos clássicos da literatura. Daqui para os romanos, seguindo a cronologia das fontes gramaticais, não houve mudança do epistema gramatical. A plêiade dos gramáticos romanos Varrão (I a. C.), Quintiliano (I a. C.), Donato (século I) e Prisciano (século V) mantém, mutatis mutandis, a concepção grega da gramática como arte de escrever e a concepção helenística da gramática como interpretação dos textos literários. Mas em poucos séculos todo este património bibliográfico de Roma conduzirá à institucionalização da gramática como arte do trivium e tornar-se-á um instrumento de trabalho imprescindível na banca de qualquer gramático, chamasse-se ele modista, vernacular ou filosófico. Os epítetos referem, em síntese, diferentes momentos da história da gramática até ao final do século XVIII (a saber, gramática especulativa, gramática renascentista, gramática geral/universal/filosófica, respectivamente), passíveis de serem analisados como rupturas epistemológicas, em virtude de concepções inovadoras e mesmo de descrições sistemáticas que, em cada caso, são aplicadas ao tratamento dos factos da língua ou das línguas (já sem exclusivismo do latim).

Do ponto de vista tipológico, classifica-se na categoria de “gramáticas normativas” largo número destas obras da tradição gramatical que seguem o padrão normativo do bom uso na prescrição gramatical, sendo algumas delas concebidas como textos oficiais das Academias de Letras, reguladoras do uso correcto da língua (caso da Academia Real Espanhola [1713] que publica a sua primeira gramática em 1771). Outras há, porém, com um corpo variado de ideias linguísticas, que apresentam uma finalidade mais científica do que pedagógica, registando e descrevendo de forma mais ou menos sistemática estruturas da língua (fonológicas, lexicais, sintácticas, semânticas), paralelamente ao estabelecimento das suas normas. São híbridos normativo-descritivos de inegável valor quer para o género “gramática histórica” (por definição, comparativa), quer para a chamada “gramática descritiva”, paradigmaticamente coeva da linguística moderna.

A gramática descritiva é uma disciplina a que a ciência linguística do século XX conferiu uma metodologia de descrição dos factos da língua que os falantes utilizam como instrumento de comunicação, com insistência em operações de observação, comparação, explicação e classificação, por meio das quais se formulam leis sobre o modo como as línguas funcionam. Mais ainda: para além de descritiva, a gramática torna-se teórica, significando tal o modelo ou corrente de pensamento de que o gramático lança mão para descrever e explicar a língua. O que se designa, às vezes, por “gramática teórica” ou “gramática científica” respeita a uma descrição teorética, isto é, orientada segundo determinada doutrina linguística, facto que, em definitivo, diferencia a gramática moderna da tradicional (mais ou menos afastada no tempo). Consequentemente, há vários modelos de gramática descritiva: funcional, distribucional, gerativa, de valências. Por diferentes que sejam quanto a pressupostos, métodos e metalinguagens, são-lhes comuns os seguintes princípios nucleares: “ausência de objectivo normativo”, “rejeição da variante literária como fonte primeira de dados”, “utilização do uso consagrado e recurso a informantes” (Inês Duarte e Matilde Miguel 1996: 17) para a constituição de corpora escritos e/ou orais (já objecto de reflexão em gramáticas da língua falada). Aos mesmos princípios se subordinam as “gramáticas escolares/didácticas”, dirigidas a níveis básicos de ensino da língua. Ainda que sobre elas pese um forte conservadorismo gramatical, já os propósitos normativos e estritamente pedagógicos deixaram de ser os únicos que justificam a investigação gramatical.

{bibliografia}

Diderot e D’Alembert: Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers [artigos “Grammaire”, “Grammairien” e “Gens de lettres”] (1751-1772); Enciclopédia Einaudi. Linguagem-Enunciação, Vol. 2 (1984); Inês Duarte e Matilde Miguel (orgs.): Actas do XI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Gramática e Varia, Vol. III (1996); Inês Duarte: Língua Portuguesa. Instrumentos de Análise (2000); J. Morais Barbosa et al. (orgs.): Gramática e Ensino das Línguas (1999).