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Em entrevista ao jornal carioca O Globo, em 5 de agosto
de 2006, no Caderno “Prosa e verso”, o escritor português Mário
de Carvalho, respondendo, sobre seu romance Um deus passeando
pela brisa da tarde
, – livro  lançado,  na quarta edição da
“Festa Internacional do Livro de Paraty”, ocorrida de 9 a 13 de
agosto de 2006, na cidade fluminense de Paraty –  à pergunta  da
jornalista Cristina Zarur “ A linguagem concisa do livro foge do
rebuscamento estilístico. Porém, descritiva e rica, explora
detalhes e vocabulário. Como você define sua dicção literária?”,
declara: “ Tenho um grande respeito pelos velhos preceitos
horacianos de adequação e decoro. Me esforço para que a
linguagem esteja conforme ao assunto. Neste livro talvez alguns
reconheçam a toada latina. Procuro estar atento a todos estes

jogos de linguagem (grifo nosso) e manter um propósito de
verossimilhança e necessidade que torne forma e fundo
inseparáveis”. Ilustrando a observação do romancista,
inscrevemos  três  poemas, dois dos quais do poeta curitibano
contemporâneo Paulo Leminski e um soneto do italiano Guido
Cavalcanti (circa 1259-1300),
 o mais significativo expoente do stil nuovo, poemas que
urdem instigantes jogos de linguagem e confirmam a presença
insofismável, em todas as épocas e estéticas, desses jogos :

 

“Uma poesia ártica,
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,

três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,

reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)

Sim, inverno, estamos vivos”.

 

“Lápide
epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas”.

 

"Avete ‘n vo’ li fior’ e la verdura
e ciò che luce od è bello a vedere;
risplende più che sol vostra figura:

 chi vo’ non vede, ma’ non pò valere.

In questo mondo non ha creatura
sì piena di bieltà né di piacere;
e chi d’amor si teme, lu’ assicura
 vostro bel vis’ a tanto ‘n sé volere.

Le donne che vi fanno compagnia
assa’ mi piaccion per lo vostro amore;
 ed i’ le prego per lor cortesia.

che qual più può più vi faccia onore
ed aggia cara vostra segnoria,

 perché di tutte siete la migliore."

 

            Até aqui, operamos, com os exemplos citados, um
recorte no sintagma “jogos de linguagem”, sintagma esse
recortado, igualmente, do signo mais amplo “jogo”, que, desde
sempre, tem perpassado  teorias nos vários campos do saber
humano. Com efeito, o conceito de jogo assume importância apical
no pensamento de Johan Huizinga, que tudo estuda sub specie
ludi
(sob a égide do jogo) e exibe o homo ludens ( o
homem que brinca, joga), contraposto ao homo sapiens e ao
homo faber: a civilização é um jogo, a cultura é um jogo,
a sociedade é um jogo, tudo se resolve em jogo, não apenas no
que concerne às práticas humanas; o jogo constitui uma atividade
de todo ser vivo,  o próprio Universo define-se como jogo.
Segundo a teoria lúdica de Huizinga, um Ariel invisível e
poderoso está sempre jogando com um selvagem Calibã. A esta
altura, podemos intertextualizar o homo ludens do
historiador holandês com o Deus ludens  de Leibniz, que
enuncia: “Cum Deus calculat fit mundus” (“Enquanto Deus
calcula, o mundo faz-se”); parafraseando o filósofo das mônadas, 
dizemos: Cum Deus ludet mundus fit (Enquanto Deus brinca,
o mundo faz-se), enunciado que promove o jogo como atividade
eterna, in fieri, confirmando o universo como obra
aberta, in progress ou in process.  O jogo assume,
portanto, uma natureza, que elide qualquer noção de
irresponsabilidade e descomprometimento, significando uma
essência lúdica, criativa, livre, que encontra, na expressão
estética, sua melhor tradução, representação, reapresentação.
Aliás, Schiller  em suas Cartas sobre a educação estética do
homem
, (mais especificamente na “Carta 15”),  afirma ser o
impulso lúdico o fundamento do impulso artístico.  Por seu
turno, o poeta mexicano Octavio Paz, analisando o fantástico
jogo da heteronímia de Fernando Pessoa, afirma que a arte é um
jogo e outras coisas. Mas, sem esse jogo, não há arte.

            Gozando de seminal fortuna crítica, a ontologia do
jogo, também estudada por,  entre outros filósofos eminentes,   Eugen
Fink, pelo “último Heidegger”, por  Hegel e por Hans-Georg
Gadamer, assume valor fulcral  em Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), nomeadamente no “último Wittgenstein” , que trata
dos “jogos de linguagem” ou “jogos lingüísticos”. De acordo com
o filósofo austríaco, os jogos, todos os jogos, inclusive os
jogos de linguagem, têm “um ar de família”, na medida em que
todo jogo obedece a regras, sejam regras formais, sejam regras
estratégicas, que são criadas no curso do próprio jogo.  No que
tange aos jogos de linguagem, o autor do Tractatus
logico-philosophicus
  postula que o mais importante, na
linguagem, não é a significação, mas o uso. Nesta altura, somos 
remetidos  ao “papa” da comunicação mediática, o canadense
MacLuhan, segundo o qual, para além de “a mensagem ser o meio”,
  “the meaning is the use”. Portanto, para se entender
uma linguagem, mister se faz, primeiro, compreender como ela
funciona., o que reenvia ao pensamento do lingüista
norte-americano Noam Chomsky, para quem “é errado pensar que é
uma característica da utilização da linguagem humana o desejo ou
o fato de transmitir informação”. Abre-se, então, a célebre
rubrica, tão bem estudada por Roman Jakobson, das funções da
linguagem.  Haverá tantas linguagens quanto jogos de linguagem,
caracterizando-se a linguagem como um jogo, o jogo, que varia
segundo o seu uso. Não haverá, destarte, dicotomia entre o
locutor e sua vida, que se insere no jogo da linguagem que ele
usa. Mais do que uma trama de significações, a linguagem
constitui-se, a partir de seu uso, uma trama vital,   que vai
engendrar significações. Pode soar paradoxal a teoria dos “jogos
de linguagem” da filosofia wittgensteiniana, quando se entende
que o uso precede a significação. No entanto, o próprio uso da
linguagem possui uma significação, que, num determinado jogo de
linguagem, vai tramando outros jogos com a própria linguagem e
com outras linguagens.

            Mãe de todas as artes, arquétipo de toda linguagem
de arte, matrix et motrix studiorum, a Literatura
configura o lugar onde se pensam e melhor se praticam os jogos
de linguagem, pulsantes, sobretudo, a partir da modernidade,
continuada, transgredida, relida em nossa conturbada
contemporaneidade.

           

Analisando a filosofia de Foucault, o filósofo português
Vergílio Ferreira pondera que “(…) justamente a grande
novidade do saber do nosso tempo é a radical reflexão da língua
sobre si própria. O discurso é retomado em si mesmo ao modo do
século XVI. Com a diferença, porém, de que ele não remete para
nenhum outro discurso oculto, mas se fecha nos seus próprios
limites. E daí a conclusão singular de que pela primeira vez o
ser do homem e da linguagem tenderão a reunir-se num só todo – o
que jamais aconteceu. A palavra é agora uma entidade por si.
Assim, pela primeira vez surge a ‘Literatura’, anunciada nos
fins do século XIX num Nietzsche e num Mallarmé, isto é, a arte
da palavra que vive da própria palavra, a põe a ela em questão,
a força à transparência de si mesma, a força a dizer o que está
nela, sendo o que está nela é só o que está nela e não o que
está para além”. Portanto, a linguagem joga consigo mesma,
reflete-se e refrata-se no espelho indubitável do texto,
figurando caleidoscópica mise en abyme. No fundo das
águas da linguagem, Narciso brinca.

            Mais do que jogo, tudo,
no Universo, e na linguagem que o representa e reapresenta, é
mistério, mistério que o haicai da premiada poetisa carioca
Roseana Murray nos apresenta belamente:

 

                                    Amor é o mistério maior

                                    O jogo mágico que se joga

                                    Com pedras sagradas.  

 

            Quando, paradoxal e quase sagradamente, o próprio
Wittgenstein estabelece, com um jogo de linguagem entre  a
palavra e o silêncio, que o que não se pode dizer é mais
importante do que o que se pode dizer, significando uma
necessária  delimitação do dizível, podemos inferir que o
“indizível” ou, em linguagem de Derrida, o “indecidible”,

 identifica-se com o ético, que promoveria a liberdade do
ser humano

{bibliografia}

Mário de Carvalho, O Globo, 5 de agosto de 2006. Johan Huizinga, Homo ludens (1940). Latuf Isaias Mucci, Da educação estética (1994). Michel Foucault, “Questionação a Foucault e a algum estruturalismo”. As palavras e as coisas, p. 33 (1988). Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (1953). Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (1922).