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O romance de aventuras britânico de oitocentos, protagonizado por nomes como os de F. Marryat, R. L. Stevenson, H. Rider Haggard e Rudyard Kipling, entre muitos outros, encontrara, sobretudo a partir do último quartel, um público fiel junto da pequena burguesia e, com a universalização da educação, do proletariado. Referindo se ao peso exercido por esse subgénero na construção e consolidação do imaginário do Império, Martin Green chamar lhe ia, justamente, «the energizing myth of English Imperialism».

Os temas da exaltação do Império, da missão civilizadora do homem branco, da busca da fortuna e do acto heróico abnegado perpassavam as obras daqueles autores, apontando para determinadas balizas axiológicas que acabariam por traçar sobre o pano de fundo de uma Grã Bretanha idealizada o modelo do cidadão imperial.

Fruto de uma nação que parecia ter encontrado no grandiloquente projecto desenhado por Disraeli — que em 1876, no decorrer do seu segundo mandato, coroaria a rainha Victoria com o título de Imperatriz da Índia — o seu ponto de equilíbrio emocional e ideológico, o romance de aventuras não só cumpria um importante papel enquanto instrumento de doutrinação política das camadas mais jovens, como também permitia, através da localização da acção em espaços ultramarinos e em cenários embebidos num exotismo estereotipado, um confortável distanciamento da dura realidade da urbe industrial, afogueada por tensões fruto de gritantes assimetrias sociais. A demanda da aventura surgia então como uma forma de apologia do empreendimento humano, em que a superação dos obstáculos simbolizaria a capacidade de se auto exceder e de se afirmar num mundo de atritos e contrariedades.

A auto confiança proporcionada pelo estatuto hegemónico da Grã Bretanha nos domínios económico, político e militar ao longo do século XIX acabaria por criar uma imagem de si própria em que orgulho nacionalista e arrogância jingoísta, sentido de inexpugnabilidade e desejo de afirmação no plano internacional se misturavam numa combinação temperada ainda pelo sentimento de superioridade rácica.

Contudo, à medida que o novo século se aproximava, esse estatuto resistia cada vez menos à contestação que, em várias frentes, lhe era dirigida por diversos países do continente.

De facto, para além de se ir tornando manifesta a perda de competitividade do país face a outras economias em rápido crescimento, a disputa territorial à escala global provocada pela cupidez imperialista, o jogo de alianças e de pactos entre as potências militares continentais, o retorno do velho fantasma da invasão da ilha de John Bull pelo novo inimigo teutónico e as sucessivas corridas navais instigadas pelos acólitos do imperador alemão, Guilherme II, delapidavam impiedosamente as pretensões hegemónicas da Grã Bretanha.

Um sentimento de transição e de crise marcou, consequentemente, os derradeiros anos do reinado de Victoria e todo o período eduardiano. Como aponta Frank Kermode, a sociedade britânica tornara se mais autocrítica (F. Kermode, 1983: 33 34), formulando agora juízos sobre o estado da nação, questionando ainda as convenções sociais, a perenidade do Império e a eficiência do exército e da marinha. A expectativa de uma guerra na Europa — que, a acontecer, poderia ser uma reedição do desastre militar da Guerra Boer — adensava receios, fomentava atitudes xenófobas e gerava uma atmosfera de suspeição que atravessava perpendicularmente todo o tecido social. A half penny press, liderada por homens da direita como Alfred Harmsworth — proprietário, entre outros, do Daily Mail, diário de maior tiragem em Inglaterra —, amplificava tais fobias estendendo as até às massas e encorajava a histeria colectiva através de artigos inflamados ou de invasion scare novels (publicadas em série) que colocavam o inimigo a cada esquina, sabotando vias de comunicação e instalações militares. A ameaça anarquista, subterrânea e invisível, parodizada por Chesterton em The Man who was Thursday (1908), também contribuiria para aumentar a sensação de insegurança nas ruas de Londres. A Grã Bretanha retraíra se gradualmente para uma postura defensiva.

A literatura — em particular a dita “popular”, porque particularmente receptiva às variações ideológicas proporcionadas pelas condições instáveis da política internacional — acompanhou este movimento. Assim, o romance de aventuras, a que aludimos de início, começava a perder terreno para um novo subgénero narrativo que, ao longo de practicamente todo o séc. XX, iria encontrar um solo fértil na rivalidade que caracterizou as relações entre Estados demandando a supremacia incontestada no palco das grandes questões mundiais. Não tardou que a aventura ultramarina, distante e exótica, fosse preterida à aventura em solo pátrio. A literatura de espionagem teve, portanto, origem em circunstâncias históricas bem definidas e a sua aceitação por parte da maioria do público leitor masculino manteve se elevada enquanto o jogo de correlação de forças entre as potências mundiais se ia perpetuando num contexto de guerra fria (e não: «da Guerra Fria» — note¬¬ se que o termo foi usado pela primeira vez pelo socialista alemão Eduard Bernstein em 1893 para se referir à corrida armamentista que a Alemanha impunha aos países vizinhos).

O facto de o spy thriller ter ganho rápida popularidade em detrimento, até certo ponto, da adventure novel enquadra se, afinal, dentro de uma sintomatologia própria de tal morbidez social: tratava se da tentativa ficcional de resolver o sentimento de crise e de instabilidade junto do imaginário das massas. Uma sondagem sobre autores populares levada a cabo em 1907 demonstraria que as preferências literárias de grande parte da população britânica recaíam em nomes como os de William Le Queux e Philip Oppenheim, ficcionistas de nomeada no domínio da literatura de espionagem (v. D. Hudson, 1964: 311).

O espaço privilegiado dessas narrativas inaugurais circunscrevia se àquele ditado pelas fronteiras políticas do seu próprio país (vejam se os casos de The Secret Agent (1907) de Joseph Conrad e de The Thirty nine Steps (1915) de John Buchan), muito embora a que foi considerada a primeira spy novel digna desse nome, publicada em 1903 e que estabeleceu as fundações de muitos dos estereotipos do subgénero, não se localizasse em Inglaterra mas sim na paisagem inconstante e fluída das ilhas frísias, que orlam a costa setentrional da Alemanha.     Em The Riddle of the Sands, de Erskine Childers, dois voluntariosos jovens britânicos cruzam se casualmente com os planos para uma invasão do seu país pelas tropas do Kaiser. Apesar da sua declarada inexperiência no métier da espionagem, não só conseguem levar para Londres o terrível segredo, como ainda iludem a apertada segurança montada em torno do projecto, expõem um agente duplo e humilham pessoalmente o próprio Guilherme II.

Aqui vamos encontrar os ingredientes que se tornariam a quintessência dos romances posteriores. A representação do «outro», por exemplo, é alvo de investimentos por vezes contraditórios, o que atesta da dificuldade da ideologia dominante em conciliar os muitos discursos sobre ‘o alemão’ — que mais não eram, afinal, do que os negativos da própria imagem nacional.

A imoralidade e o arrojo políticos do inimigo, a todos os títulos condenáveis, choca com o espírito de appeasement do Foreign Office. O avanço tecnológico da marinha e do exército alemães, e ainda a sua capacidade logística e estratégica contrastam com o imobilismo burocrático e a desorganização das forças terrestres britânicas (algo que não soi encontrar se na adventure novel, em que as populações indígenas padecem de um considerável atraso civilizacional).

À instrumentalização e harmonização ideológica do povo alemão (ou, nas narrativas mais recentes, do povo russo) contrapõe se o pluralismo de opinião que caracteriza a vida política do outro lado do Canal (para certos ficcionistas, ecoando as longínquas posições de Edmund Burke, a democracia seria sinónima de incapacidade de decisão e, portanto, de falência das intituições de poder).

O Chefe de Estado inimigo (ou um seu qualquer mandatário) revela se inflexível, temerário, determinado e possui um controle quase absoluto das circunstâncias e da imensa máquina de guerra que lhe pende dos dedos. Aparentemente nada lhe está vedado: a informação, o espaço, os meios, tudo orbita em volta de uma vontade de contornos nietzscheanos. Por oposição, o governo d’aquém luta com dificuldades várias impostas pela opinião pública, pelos periódicos, pelos lobbies económicos e militares, pelo imperial overstretching; encontra se, por isso, indeciso, titubeante, despojado de objectivos políticos concretos.

A juntar a isto uma população inerte, hebetada, alheada dos perigos que espreitam o país a cada instante, submersa na labuta imposta pelo quotidiano industrial. Estão assim reunidas as condições para que da nação (em romances posteriores, a dita «nação» dará lugar ao chamado «mundo livre») transpareça uma imagem vitimária, senão mesmo sacrificial.
O «outro», não obstante as irreconciliáveis diferenças, está racicamente mais próximo do britânico do que qualquer dos aborícolas do romance de aventuras e é, pela sua genialidade e capacidade de visão, um worthy oponent — um adversário à altura para disputar a posição dominante no panteão das grandes potências mundiais: ideia que se encaixa, afinal, numa das teses do darwinismo social sobre a sobrevivência das nações e que legitimaria o advento da Grande Guerra.

Não é apenas na figura do adversário, todavia, que o trabalho de composição se revela mais elaborado. Também o herói surge cuidadosamente estilizado. Ele não se impõe ao leitor, tal como sugere Freud em «Creative Writers and Day Dreaming» (1908), unicamente enquanto encarnação literária de um Ego que age liberto do Princípio de Realidade. O agente secreto (designação politicamente correcta e inócua — o termo espião acarreta conotações extremamente negativas não coadunáveis com o estatuto de gentleman  com que a maioria dos  heróis se apresenta ao leitor) é obrigado, outrossim, a uma atitude de sacrifício, quando não mesmo de auto negação, perante a grande ameaça externa.
De si a nação exige nada menos do que o martírio. Por vezes, o empenhamento psicológico do protagonista pode ir tão longe quanto o esvaziar total da sua identidade e a assunção de uma nova personalidade. Este adquirir de diferentes máscaras permite lhe superar obstáculos aparentemente intransponíveis, enfrentar uma potência mundial ou organização secreta socorrendo se tão só dos seus limitados meios, tentando a cada segundo a própria morte. Usufruíndo de uma adaptabilidade invulgar, o herói mergulha num mundo outro, de contornos indefinidos, quando não mesmo labirínticos, e entra num jogo («the Great Game», como se lhe referira Kipling em Kim) com a suas próprias regras, ainda que sem moral subjacente, no centro do qual se encontra ‘a verdade’ — objecto de desejo dissimulado, encoberto, codificado.

A constante pressão do inimigo ao longo desse jogo de vida ou de morte, que se manifesta em termos narrativos numa aceleração do ritmo da narração e termos figurativos através da metáfora venatória, conduz a uma gradual exaustão do espaço: os adversários aproximam se como que puxados por uma força centrípeta que os coloca num mesmo plano isotópico — o do confronto. É nesse locus último que se definirá não só a sua sorte, mas também o destino das nações que cada qual metonimicamente representa.

Forma dissimulada de voyerismo institucional, a espionagem situou se sempre no lado escuro das relações entre Estados. A amoralidade a ela inerente tornava a altamente censurável aos olhos da opinião pública.

Como explicar então a popularidade destas narrativas?

Qualquer perspectivação ética teria que se sujeitar a uma consciência histórica. O acto tomado isoladamente poderia ser em si criminoso (o assassínio, a traição, o roubo, a mentira), mas no grande quadro da História, em permanente construção, definia um rumo que poderia salvar a humanidade da guerra e da perdição. Eis porque o perigo do fim, do fechamento da História, está sempre presente nestes textos.

Na realidade, desde Le Queux a Le Carré, passando por Philip Oppenheim, John Buchan, Graham Greene e Ian Fleming, todas as manifestações deste subgénero literário adoptam uma leitura apocalíptica da história humana: os eventos parecem precipita se inexoravelmente para um fim catastrófico, desvelando se a fragilidade e a vulnerabilidade da condição humana.

Bibliografia: J. Atkins: The British Spy Novel: Styles in Treachery (1984); J. Cawelti: Adventure, Mystery and Romance: Formula Stories as Art and Popular Culture (1976); M. Denning: Cover Stories: Narrative and Ideology in the British Spy Thriller (1987); S. Freud: «Creative Writers and Day Dreaming», in 20th¬ Century Literary Criticism, ed. por D. Lodge (1972); M. Green: Dreams of Adventure, Deeds of Empire (1980); R. Harper: The World of the Thriller (1969); D. Hudson: «Reading», in Edwardian England, 1901 1914, ed. por S. Nowell Smith (1964); F. Kermode: Essays in Fiction (1983); D. MacCormick: Who’s who in Spy Fiction: The A Z of Espionage Thriller and Their Creators (1977); B. Merry: Anatomy of the Spy Thriller (1977); W. Nash: Language in Popular Fiction (1990); D. A. Stafford: «Spies and Gentlemen: The Birth of the British Spy Novel», Victorian Studies, vol. 24, nº 4 (1981).