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Expressão latina que designa a paisagem ideal, sempre presente na poesia amorosa em geral e, com maior incidência, na poesia bucólica. Desde a Antiguidade Clássica que o termo locus amoenus nos remete para a descrição da Natureza e para um conjunto de elementos específicos: o campo fresco e verdejante, com um vasto arvoredo e flores coloridas, cujo doce odor se espalha com a brisa. A vegetação é densa mas constantemente renovada, dada a grande fertilidade do terreno e a passagem do tempo não conduz à destruição da paisagem, o que, de acordo com Lanciani e Tavani (1993) é metafórico da infância que nunca se perde. Ouve-se o suave som da água do riacho a saltar nas pedras ou a brotar de uma fonte, onde os animais vão beber. Há borboletas policromáticas esvoaçando, assim como aves diversas (normalmente rouxinóis ou pardais), que abrilhantam o céu azul. Esta natureza mágica é conducente ao amor, ao encantamento sensorial e espiritual do Homem, que se integra na perfeição em tal plenitude, marcada pela harmonia e homogeneidade. Enfim, estamos perante um paraíso terrestre, onde se enquadra o ser humano que busca a satisfação pela simplicidade.

O tópico teve origem na literatura clássica, com Homero (sécs. IX e VIII a.C.), mas começou a ser empregue com mais frequência na poesia bucólica, com Teócrito (séc. III a.C.) e Virgílio (séc. I a.C.). O termo percorre ainda o renascimento, o maneirismo, o barroco e o romantismo.

Para o Homem do mundo grego, a natureza ocupava uma posição cimeira. De facto, tal cosmovisão conferia especial ênfase aos elementos naturais, profundamente sentidos e assimilados, constituindo uma unidade perfeita onde o ser humano se inseria enquanto presença viva e operante. Este, ao assumir uma posição central, manifestava um interesse bastante acentuado por tudo aquilo que o rodeava.

Desde sempre que os poetas cristãos tentaram transpor o locus amoenus pagão para uma ambiência terrestre paradisíaca. No Cântico dos Cânticos é-nos já apresentada uma tradição bíblica que apresenta os já referidos elementos: um jardim na Primavera, com vinhas em flor, doces odores a especiarias, cantos de aves e até uma fonte. Na mesma óptica, também o Génesis descreve o Éden como um local perfeito onde, através da acção de Deus, podemos encontrar uma enorme variedade de árvores de frutos saborosos e um rio que corre ao sabor da brisa amena. Assim sendo, verifica-se a adequação do tópico literário ao paraíso cristão.

Também na literatura pastoril o locus amoenus marca presença. Habitualmente produzidas por cortesãos como forma de expor o seu descontentamento perante o mundo e a vida urbana que conheciam, as obras deste género constituem uma crítica social à artificialidade das relações comunitárias, deixando transparecer uma certa nostalgia que se relaciona com a perda da inocência. É à luz destes aspectos fundamentais que podemos compreender a exaltação da tranquilidade da vida campestre: há uma forte ânsia por regressar à Idade Dourada, em que tudo era perfeito e o Homem podia viver em completa harmonia e comunhão com a natureza, sem que a passagem do tempo deixasse marcas destrutivas (v. Utopia, Thomas More e As Metamorfoses, Ovídio).

Da mesma forma, o bucolismo legitima a vida despreocupada no campo, em detrimento da artificialidade das cidades. O ideal de Homem heróico, rústico e selvagem (por influência de Rousseau -1712-1778), representa a oposição aos governantes e membros do Clero que constantemente abusavam do poder inerente às suas funções sociais. Curtius acrescentou ainda a esta natureza fértil as ninfas, personagens mitológicas que em nada perturbam a paz e a tranquilidade do espaço e cuja presença se justifica pela extrema perfeição do lugar, longe dos males da sociedade. Tal como a água, as ninfas simbolizam a fertilidade e, no seu conjunto, esta moldura ideológica, sagrada e até mágica, serve de cenário ao Amor e à sua concretização. No entanto, é preciso não esquecer que tal sublimação da vida simples e pastoril em que se enquadra o locus amoenus não é mais do que um desejo e um estado de espírito, já que todos os poetas da Arcádia fixavam a sua residência na cidade.

De facto, a plenitude que caracteriza o presente tópico literário assenta em ideais opostos à complexidade das relações interpessoais mantidas nas cortes europeias, assim como se distancia por completo do bulício da vida citadina. Deste ponto de vista, podemos considerar que o mundo pastoril idílico, quer seja o Éden ou a Arcádia, é tanto a celebração da Natureza como pode também ser interpretado à luz dos desejos humanistas de alcançar a harmonia total.

Na lírica trovadoresca, a partir do século XII, encontramos algumas referências ao locus amoenus, tópico que é habitualmente empregue no exórdio, embora os trovadores provençais não optem por descrições pormenorizadas da paisagem. É nas cantigas de amigo galego-portuguesas que adquire uma maior importância, dado que os elementos naturais da paisagem– a fonte, as árvores, as flores e os animais, com especial destaque para o cervo – carregam uma forte carga simbólica e são coadjuvantes na relação amorosa entre a amiga e o seu par. É neste enquadramento idílico que os dois se encontram, o que a rapariga lamenta a ausência do homem que ama.

Durante o século XVII, a literatura romanesca é caracterizada por uma certa oscilação entre dois modelos retóricos antagónicos: o já descrito locus amoenus e o seu oposto, o locus horribilis. Assim, em contraste com o primeiro, encontramos agora uma concepção totalmente divergente – uma ambiência selvagem e imprevisível, onde a tempestade e a escuridão remetem para uma idealização trágico-dinâmica (v. Ilíada de Homero) e para a literatura do Fantástico, em que a cenografia compõe uma atmosfera fortemente artística. Nesta expressão latina da literatura romântica, deparamo-nos com a floresta escura ou com a selva impossível de penetrar, montanhas escarpadas e cobertas de vegetação árida, onde habitam criaturas monstruosas. Na sua globalidade, o locus horribilis é um cenário altamente assustador, inóspito, de acentuada devastação e calamidade. Neste ambiente, verificamos ainda uma acentuada clivagem entre o ser humano e a natureza, sendo que o primeiro aparece sempre subordinado às condições impostas pelo outro.

No espaço literário português, no que diz respeito à poesia de inspiração bucólica, encontramos Sá de Miranda (1481-1558) e Diogo Bernardes (1520-1605) que, influenciados pelos clássicos greco-latinos, como Teócrito e Virgílio, por outros seus contemporâneos, como é o caso de Petrarca (1304-1374), e ainda pelo lirismo galaico-português, apresentam na sua produção literária o ideal da comunhão com a natureza, que assume o papel de confidente (como, aliás, acontecia já no lirismo galaico-português).

Bernardes glorifica a beleza do mundo natural e a felicidade do Homem ao viver em tal ambiente de perfeição. A sua poesia apresenta-nos as águas límpidas do rio Lima, rodeado de campos floridos e verdejantes, onde aqui e ali se vislumbra uma aldeia típica. O Minho é, assim, uma nova Arcádia, idílica e perfeita. O próprio autor revê-se na figura do pastor, inserido no cenário campestre, pleno de virtuosidade. Inspirando-se na herança clássica, Diogo Bernardes celebra ainda a vida contemplativa, ociosa e prazenteira – estamos perante um lirismo altamente bucólico.

Também Camões (1524-1580), que prima pela descrição pormenorizada da paisagem amena, deixa transparecer nas suas obras a preferência pelo tópico (v. sonetos como “A fermosura desta fresca serra” ou “Alegres campos, verdes arvoredos”, in Rimas), o que se verifica na sua idealização de mulher, que aparece intrinsecamente relacionada com o locus amoenus (v. “Um mover de olhos brando e piedoso”).

Na globalidade, podemos referir como exemplos onde o presente tópico literário se encontra em evidência obras como Eneida de Virgílio, Odisseia de Homero, Divina Comédia de Dante Alighieri, Orlando Furioso de Ariosto, alguns trabalhos de Chaucer e Coleridge, entre outras. No âmbito da literatura portuguesa, tomemos como exemplo a descrição da charneca do Ribatejo por Garrett em Viagens na Minha Terra, ou ainda Eça com A Cidade e as Serras.

{bibliografia}

Brotéria, nº 144 (1997); Bulletin of the Cervantes Society of America , nº 17.2 (1997); Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani: Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa (1993). ; Robert Scanlan: « Locus Amoenus », Harvard Review, 10 (1996).

http://www.arts.monash.edu.au/spanish/lit_theory/bem.html

http://www.artehistoria.com/historia/personajes/4314.htm

http://www.estado.estadao.com.br/edicao/pano/99/11/20/ca2739.html

http://cla.calpoly.edu/~smaex/Publications/YouthAge/Introd.html

http://digilander.iol.it/ostraca/Petrarca_e_Dante.htm

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http://gilda.it/gandalf/italiano/lab_lett_su_tolkien/mini_saggi/natura/locus.htm

http://graudez.com.br/literatura/estilos/arcadismo.htm

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