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Questão central na abordagem que Iuri M. Lotman enceta da estrutura do texto artístico, a modelização define?se como o processo pelo qual o texto reproduz, através de mecanismos semióticos vários (como a transcodificação interna e a externa), um determinado modelo do mundo. A matéria é debatida no âmbito do problema da significação do texto: trata?se de determinar o modo como, através de certos sistemas semióticos, se estabelecem as ligações semânticas com os “fenómenos que lhe são externos” (Lotman, 1978: 76). Considera haver dois tipos distintos de modelização, que correspondem a uma distribuição hierárquica dos sistemas semióticos: no caso do texto literário, é a língua natural a operar a modelização dita “primária”; por seu turno, a “secundária” emerge dos restantes sistemas semióticos e define especificidade genérica desse mesmo texto.

Lotman, que foi um dos responsáveis, juntamente com V. N. Toporov, V. Ivanov e B. Uspenski, pela reavaliação e recuperação da herança formalista na União Soviética da década de sessenta, equacionará ainda a questão da modelização com a da composição daquilo que define como quadro, i. e., os limites ou fronteiras do texto para além das quais nada mais existe integrável na sua estrutura interna de significação. Se o texto exclui à partida o não texto—e com tal exclusão se procura igualmente eliminar a interferência extra?sistémica ou a?sistémica na produção de sentidos—, isso não obsta a que a própria língua, em articulação com as convenções da linguagem literária, tente reproduzir, através desse mesmo texto, a realidade do mundo exterior. Assim, a obra artística apresenta também ela uma realidade: não deve esta porém ser entendida como uma simples cópia do original; é, antes de mais, o resultado de um trabalho de “tradução”, ou seja, de “reprodução de uma realidade noutra” (Lotman, 1978: 349). O real artístico é, pois, forçosamente diferente do que lhe é exterior, sendo que os seus contornos se delineiam dentro de uma certa moldura configurável por preocupações de índole estética ou ideológica. A obra de arte em geral e o texto literário em particular têm entrelaçado no seu complexo tecido semiótico um sistema modelizante que dita as regras com que se traçam esses contornos, quer em termos espaciais, quer em termos temporais.

Subjacente à modelização está o princípio sinedóquico de que “sendo espacialmente limitada, a obra de arte representa o modelo de um mundo ilimitado”(Lotman, 1978: 349), que o mesmo é dizer que o leitor entenderá o universo contido na obra como sendo infinitamente mais vasto do que aquele entrevisto nas suas palavras.

Outro princípio de que este representante da Escola de Tartu parte é o de que “cada texto separado modela simultaneamente um objecto particular e um objecto universal” (Lotman, 1978: 350). Daí que que a leitura de qualquer obra decorra sempre em dois planos distintos: o do episódico, que Lotman qualifica de fabuloso, e o do universal, ou mitológico. Assim, numa tragédia, o destino do herói confundir?se?á com o destino de qualquer homem (ou de qualquer mulher) sujeito(a) às mesmas circunstâncias, não obstante os aspectos particulares ou idiossincráticos da sua existência. O trágico que espreita o indivíduo é o mesmo trágico que pende sobre toda a humanidade. O todo, a completude do universo, que o texto tenta reproduzir nas suas linhas, surge?nos por via de “essências puras” ou “mitos”, mesmo quando a obra reivindica um estatuto realista ou naturalista. Pelo contrário, a insistência no fabuloso, no contigencial, tende a destruir o quadro, ou seja, a afastar?se do que é tido por universal ou mítico. Lotman considera que aquilo que caracteriza as obras contemporâneas é justamente a tensão que reside entre estes dois pólos: entre aquele que constrói o quadro e o que o destrói; entre aquele que estabelece uma ordem—geralmente em termos cíclicos—e aqueloutro que insiste no primado do caos (Lotman, 1973: 9?41).

Lotman considera ainda duas coordenadas fundamentais na modelização no texto artístico: a do espaço e a do tempo. Afirmará que o primeiro pode servir de suporte para a arrumação de conceitos não espaciais. Por exemplo, noções como as da morte, do mal e da perdição surgem muitas vezes associadas a um espaço inferior ou a um movimento descendente, enquanto os de redenção e conhecimento implicam um movimento oposto. Por outro lado, a nível temporal, distinguirá ainda duas categorias que balizam todo o texto, a saber, as de princípio e de fim. Defende, então, que certos textos insistem na primeira categoria como fronteira fundamental: trata?se, por exemplo, de afirmar a génese de um povo ou de uma nação e consequentemente de legitimar a sua existência. A categoria do princípio modaliza desse forma o texto em função da causa, sendo que nele o próprio fim se encontra, muitas vezes, excluído (e nesse caso estaremos perante uma composição “aberta”). Pelo contrário, os textos marcados pela categoria do fim não privilegiam a causa mas sim o objectivo: é o que se verifica com narrativas escatológicas e utópicas. Nestes casos, é o final o principal portador da significação.

 

{bibliografia}

R. Faccani e U. Eco: I sistemi di segni e lo strutturalismo sovietico (1969); Iuri Lotman: A Estrutura do Texto Artístico (1978, 1970; idem: “The Origin of Plot in the Light of Typology, in Stati po tipologii kultury, 2 (1973).