Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Como qualquer tendência que contém na sua designação o prefixo “neo”, o neovitorianismo visa redescobrir e recuperar os valores preconizados pelo conceito que está na sua génese, numa dimensão que se pretende “nova”. Tal sucede, e para citar apenas alguns exemplos, com tendências artísticas e estéticas como o neoclassicismo, o neogótico, o neo-romantismo, o neo-realismo e o neo-impressionismo, bem como com tendências políticas e económicas como o neocolonialismo, o neonazismo, o neoconservadorismo e o neoliberalismo, e com tendências sociológicas e científicas como o neomalthusianismo, o neopositivismo e o neodarwinismo. A designação “neovitorianismo” para uma área de estudos interdisciplinares foi adoptada no meio académico em detrimento de “pós-vitorianismo” e de “retro-vitorianismo”, não só por questionar as implicações de historicismo e de nostalgia, mas também por recontextualizar as reescritas em diferentes discursos ideológicos (Kirchknopf 59, 62-66).

 

O neovitorianismo aplica-se tanto ao domínio da literatura como da cultura. No âmbito literário, destacam-se romances como Possession (1990), de A. S. Byatt, The Prestige (1995), de Christopher Priest, Affinity (1999), de Sarah Waters, The Crimson Petal and the White (2002), de Michel Faber, The Ghost Writer (2004), de John Harwood, Arthur and George (2006), de Julian Barnes, The Observations (2006), de Jane Harris, The Meaning of Night (2006), de Michael Cox, The Sealed Letter (2008), de Emma Donoghue, Florence & Giles (2010), de John Harding, e The Convictions of John Delahunt (2015), de Andrew Hughes, entre muitos outros. The French Lieutenant’s Woman (1969), de John Fowles, é consensualmente considerado um romance histórico pós-modermo, sendo igualmente identificado como precursor das narrativas neovitorianas. A articulação da realidade e da ficção e o recurso a inúmeras referências intertextuais e interculturais, bem como a aproximação ao pastiche, fazem do romance neovitoriano um projecto pós-moderno, como observa Banerjee (2013). Na verdade, “the postmodern-Victorian mode both reifies a lost era of high culture and popularizes its imitations” (Kucich e Sadoff xi).

 

O periódico online intitulado Neo-Victorian Studies, publicado a partir de 2008, tem contribuído para a divulgação, quer do conceito, quer do aparato teórico que caracteriza o seu objecto de estudo, desde os primeiros debates – que questionaram o “neovitoriano” como termo, género, nova disciplina, manifestação cultural, crítica socio-política, consciência histórica, estudo da memória e interface crítica entre o presente e o passado – até às controvérsias mais recentes sobre o alcance global do neovitorianismo na era digital (Kohlke 1-14, Primorac e Pietrzak-Franger 1-13). É ponto assente que a ficção neovitoriana procura dar voz a quem não se fazia ouvir na literatura vitoriana, a fim de valorizar atitudes menos convencionais no tocante a temáticas relacionadas, por exemplo, com género, sexo, erotismo, raça e classe. Ao denunciar e desafiar os preconceitos do passado, visa facultar uma perspectiva complexa e alternativa do século XIX ao público do século XXI, incentivando a reflexão sobre o nosso próprio modo de vida. Daí que a proposta de designação para todo este processo interventivo de crítica criativa seja “critical f(r)iction” (Llewellyn 170, 180). Mais do que ficção histórica centrada no contexto oitocentista, os textos neovitorianos – sejam literários, fílmicos ou audiovisuais – apresentam-se como “self-consciously engaged with the act of (re)interpretation, (re)discovery and (re)vision concerning the Victorians” (Heilmann e Llewellyn 4, ênfase utilizada no original).

 

Pode, assim, dizer-se que as criações, as adaptações e as apropriações neovitorianas se distinguem por recriarem o passado de modo a remeterem sempre para o presente e, por conseguinte, suscitarem uma auto-análise crítica no estudo e na investigação em torno de parâmetros estéticos, éticos, meta-históricos, metatextuais e metaculturais contemporâneos. Caracterizam-se, igualmente, por desconstruírem estereótipos e permitirem um estudo inovador da literatura e cultura vitorianas. É de notar que os clichés pretensamente indispensáveis num romance vitoriano podem ser utilizados, mesmo que como objecto de uma abordagem satírica, para distinguir a ficção histórica da neo-vitoriana, como se pode verificar na listagem compilada por Burstein (2006).

 

Com efeito, o neovitorianismo recorre com frequência à metáfora do espelho para ilustrar o modo como a literatura e a cultura contemporâneas revisitam o século XIX. Pressupõe-se, assim, que as imagens reflectidas num espelho nunca são reais. Dado que não vivemos no passado, é inevitável aceder aos vitorianos por intermédio de imagens que acarretam ilusão e distorção, tal como sucede quando se utiliza um espelho retrovisor, no acto paradoxal de olhar para a frente a fim de se conseguir olhar para trás (Joyce 4). Outro topos incontornável é o espectro, na medida em que se procura ressuscitar algo que efectivamente já não está entre nós, reconhecendo-se a incapacidade de captar a verdadeira era vitoriana: “Texts themselves become shadows, spectres and written ghosts that never quite materialize into substantive presences but instead remain simulations of the ‘real'” (Heilmann e Llewellyn 145). Importa salientar que a constatação de diferentes dimensões de existência exerceu um grande fascínio nos vitorianos, tanto por meio da ciência como da espiritualidade, com especial ênfase nas manifestações religiosas mas também mediúnicas – o que revela, em nossa opinião, um exercício de poder ambivalente, ao oscilar entre a posse e a possessão. Tanto no século XIX como nos nossos dias, o estabelecimento de pontes entre o passado e o presente propicia o desejo de respostas para a resolução de antinomias em torno da presença, do corpóreo e do material, por um lado, e da ausência, do incorpóreo e do espiritual, por outro (Arias e Pulham xix-xx, Kohlke 9-10). No contexto oitocentista, as potencialidades de manipulação do tempo e do espaço faziam-se sentir, igualmente, na popularidade dos espectáculos de magia, estando os tópicos do espelho, do espectro e da magia presentes em muitos dos textos neovitorianos, quer literários, quer analíticos.

 

A nível geral, o neovitorianismo relaciona-se também com tendências culturais revivalistas. A era vitoriana tem sido recriada pela cultura popular sobretudo no tocante a aspectos estéticos, sintomáticos de uma apropriação pouco problematizante, patente na roupa e nos adereços, com destaque para a utilização de corpetes, paletós, chapéus altos, relógios de algibeira e leques. Também o interesse pelos objectos vitorianos, sobretudo no tocante ao design e à decoração de interiores, manifesta ligações a tendências vintage. Porventura repercutindo “the afterlife of the nineteenth century in the cultural imaginary” (Kohlke 1), o grande público tem igualmente assistido, no cinema e na televisão, a enredos que recuperam temáticas vitorianas, com um maior ou um menor pendor neovitoriano. É o caso dos filmes de Guy Ritchie sobre Sherlock Holmes (2009, 2011) e das séries Whitechapel (2009), Sherlock (2010), Elementary (2012) e Ripper Street (2012), além de Downton Abbey (2010), The Paradise (2012) e Mr. Selfridge (2013), por exemplo.

 

O reconhecimento da modernidade da era vitoriana, pautada pelo avanço científico e tecnológico, é contudo um elemento indispensável nas diversas manifestações neovitorianas. Nessa medida, o neovitorianismo reflecte-se na tendência steampunk e, em simultâneo, beneficia da popularidade que esta tem conhecido. Naturalmente, por vezes são ténues as linhas que demarcam ambas as tendências.

 

{bibliografia}

Rosario Arias e Patricia Pulham (eds.), Haunting and Spectrality in Neo-Victorian Fiction: Possessing the Past (2010); Jacqueline Banerjee, “Neo-Victorianism: An Introduction” (2013), Victorian Web, http://www.victorianweb.org/neovictorian/introduction.html; Miriam Burstein, “Rules for Writing Neo-Victorian Novels” (March 15, 2006), The Little Professor: Things Victorian and Academic, http://littleprofessor.typepad.com/the_little_professor/2006/03/rules_for_writi.html; Penny Gay, Judith Johnston e Catherine Waters (eds.), Victorian Turns, Neo-Victorian Returns: Essays on Fiction and Culture (2008); Louisa Hadley, Neo-Victorian Fiction and Historical Narrative: The Victorians and Us (2010); Ann Heilmann e Mark Llewellyn, Neo-Victorianism: The Victorians in the Twenty-First Century, 1999-2009 (2010); Simon Joyce, The Victorians in the Rearview Mirror (2007); Andrea Kirchknopf, “(Re)Workings of Nineteenth-Century Fiction: Definitions, Terminology, Contexts”, Neo-Victorian Studies 1.1 (2008), pp. 53-80, http//www.neovictorianstudies.com; Marie-Luise Kohlke, “Introduction: Speculations in and on the Neo-Victorian Encounter”, Neo-Victorian Studies 1.1 (2008), pp. 1-18, http//www.neovictorianstudies.com; John Kucich e Dianne F. Sadoff (eds.), Victorian Afterlife: Postmodern Culture Rewrites the Nineteenth Century (2000); Mark Llewellyn, “What Is Neo-Victorian Studies?”, Neo-Victorian Studies 1.1 (2008), pp. 164-185, http//www.neovictorianstudies.com; Antonija Primorac e Monika Pietrzak-Franger, “Introduction: What is Global Neo-Victorianism?”, Neo-Victorian Studies 8.1 (2015), pp. 1-16, http//www.neovictorianstudies.com; Michelle J. Smith, “Neo-Victorianism: An Introduction”, Australasian Journal of Victorian Studies 18.3 (2013), pp. 1-3, http://www.nla.gov.au/ojs/index.php/AJVS/article/viewFile/3200/3736.