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A pragmática não é propriamente uma disciplina científica, no sentido estrito do termo, visto não ter um objecto claramente delimitado nem uma metodologia específica; é um domínio constituído por questões que se situam nas fronteiras e nos interstícios das disciplinas que procuram dar conta da emergência do sentido, tais como a hermenêutica, a linguística, a semiótica, a lógica, a sociologia, a psicologia, a teoria literária. É, por conseguinte, dos resíduos das disciplinas formalmente constituídas que se alimenta o seu domínio de estudo. Duas questões decorrem directamente desta situação intersticial dos seus objectos de estudo: como delimitar rigorosamente as suas fronteiras? Qual a natureza das suas relações com as outras disciplinas? A resposta a estas questões depende obviamente da perspectiva adoptada.

As diferentes perspectivas da pragmática oscilam entre uma concepção restrita e uma concepção alargada dos seus limites. Para a concepção restrita, a pragmática apenas se ocupa de assuntos que se situam fora do âmbito das outras disciplinas, dos aspectos que se prendem nomeadamente com a referencialidade e a indexicalidade, questões que têm a ver com a relação das unidades linguísticas com o mundo e com a situação enunciativa. Para a concepção alargada, pelo contrário, a pragmática abarca o conjunto dos fenómenos de emergência da significação, considerando que as unidades da linguagem não possuem significação autónoma da situação enunciativa ou, como alguns autores preferem dizer, independente do processo de discursivização.

A relação da pragmática com as outras disciplinas varia consoante se adoptar a delimitação restrita ou a delimitação alargada do seu âmbito. Assim, se adoptarmos uma delimitação restrita, a pragmática estabelece com as outras disciplinas uma relação complementar, reservando para o seu domínio apenas as questões da referencialidade e da indexicalidade. Mas se adoptarmos a definição alargada, o domínio da pragmática dilui-se, constituindo aspectos inseridos nas questões das disciplinas que têm como função dar conta da emergência do sentido. Neste último sentido, fala-se mais de pragmatização das outras disciplinas, de perspectivação pragmática dos fenómenos semânticos e sintácticos.

O termo pragmática foi proposto, em 1938, por Charles Morris para designar, dentro de uma perspectiva behaviorista, uma das três dimensões do signo, da dimensão a que Charles Sanders Peirce dava o nome de retórica pura: «Sintaxe é o estudo das relações sintácticas dos signos uns com os outros, abstracção feita das relações dos signos com os objectos e com os intérpretes… a semântica trata das relações dos signos com os designata e assim com os objectos que podem denotar ou denotam e a pragmática é designada a ciência da relação dos signos com os seus intérpretes.»[1] Esta definição de Morris, apesar de parecer confundir signo com unidade linguística e intérprete com interpretante, teve o mérito de chamar a atenção para a importância das relações extra-linguísticas na constituição da significação.

Mas a generalização dos estudos de pragmática só viria a ocorrer a partir dos anos 70, numa altura em que se tornavam cada vez mais óbvios os impasses decorrentes das limitações tanto dos saberes disciplinares formais como das abordagens semântica e sintáctica da linguagem. Apesar de procurarem dar conta rigorosamente dos aspectos gerais da linguagem, as disciplinas formalmente constituídas revelaram-se demasiado abstractas e, por isso, incapazes de explicar e de compreender a emergência do sentido da prática discursiva concreta, de dar conta da sua fluidez, da complexidade e da proliferação.

Para Ferdinand de Saussure, a significação dependeria da estrutura da língua, constituída por um sistema de relações combinatórias ou paradigmáticas e articulatórias ous sintagmáticas. Segundo esta concepção imanentista da significação, os aspectos extra-linguísticos que acompanham a prática discursiva, quer os que têm a ver com a relação das unidades da linguagem com o mundo a que se referem, quer os que têm a ver com a relação do discurso com a situação enunciativa não são pertinentes para a determinação do sentido; intervêm nos processos extra-linguísticos da referência e da apropriação do sistema da língua por parte dos falantes. É bem conhecida a distinção atribuída a Ferdinand de Saussure entre a língua, sistema diferencial de signos, e a fala, apropriação individual do sistema linguístico.[2]

Noam Chomsky proporia uma visão idêntica, ao fazer a distinção entre competência e performance.[3] Os falantes são dotados de competência linguística, na medida em que a sua prática discursiva obedece às regras que determinam a codificação e a decodificação das unidades da linguagem, que ditam aos falantes as escolhas das combinações apropriadas dos signos em cada situação enunciativa.

Segundo estas teorias imanentistas da linguagem, dominantes até aos meados dos anos 70, a significação é imposta aos falantes pelo sistema da língua ou pelo conjunto de regras que constituem a sua competência como falantes. Os falantes obedecem portanto tanto às regras semânticas e sintácticas, como às regras que determinam o seu uso, não se vendo como explicar a sua interferência, enquanto autênticos sujeitos de discurso.

Ao considerarem que a relação das unidades linguísticas com o mundo e com a situação enunciativa não intervém na constituição da significação, estas teorias têm da pragmática uma concepção extrinsecalista e tendem a definir o seu âmbito de maneira restrita. É por isso que os estruturalistas, de maneira algo provocatória, costumavam anunciar a «morte do homem» e afirmavam que somos mais falados pelo sistema do que falamos.

Estas teorias têm-se, no entanto, revelado de maneira cada vez mais evidente incapazes de dar conta de muitos fenómenos da linguagem, uma vez que as significações concretas do discurso dependem, pelo menos em alguns casos, da intervenção dos saberes extra-linguísticos que integram a situação enunciativa e os processos de interlocução. É o que vamos tentar mostrar com a ajuda de alguns exemplos simples.

Suponhamos, por exemplo, que A diz a B:

«Ela está doente»

Será difícil para B averiguar a quem o locutor se refere e se este enunciado é verdadeiro, a não ser que saiba a quem se refere o pronome pessoal “ela”. As condições de verdade de enunciados deste tipo não são ditadas pelo conhecimento do sistema da língua nem pela competência linguística dos falantes. Exigem que B saiba a quem A se está a referir ao empregar o pronome pessoal feminino do singular, isto é, o determinativo definido “ela”. Saber a quem o locutor se refere, pelo menos em casos como este, exige a interferência de saberes contextuais que intervêm na situação enunciativa, tais como o facto de os interlocutores se recordarem de quem têm estado a falar, o facto de o enunciado de A ser uma resposta a uma pergunta de B do tipo: «Como está a Helena?», o facto de A e B terem visto passar diante deles a pessoa a que o locutor se refere e inúmeras outras situações enunciativas ou interlocutivas exteriores ao sistema da língua ou à competência linguística dos falantes. Da competência linguística os interlocutores apenas retiram um saber formal que lhes diz que “ela” é um pronome pessoal feminino singular que desempenha, no exemplo referido, o papel de determinativo definido.

No enunciado «Vou ter contigo daqui a uma hora», o alocutário precisa de saber quem o enuncia, quando o enuncia e que o enuncia num lugar distante do lugar em que ele se encontra para poder entender o que o locutor lhe pretende dizer. Veja-se o efeito irónico do enunciado «Fiado só amanhã» escrito no letreito de uma loja, sem indicação do dia em que foi escrito, do qual portanto o locutor omitiu elementos da situação enunciativa indispensáveis à compreensão do sentido literal do enunciado.

Suponhamos agora que A diz a B:

«Estarei em casa quando chegares»

Além de B ter de fazer intervir, tal como no caso precedente, a situação enunciativa para a averiguação da referência da primeira pessoa do singular e, por conseguinte, do lugar em que A estará quando B chegar, este enunciado pode querer dizer inúmeras coisas distintas, consoante seja entendido como uma declaração, uma informação, uma promessa, uma ameaça ou uma previsão. Para entender o que A pretende dizer com este enunciado, A terá de o situar num contexto enunciativo e, mais uma vez, independentemente do sistema da lingua ou da competência linguística dos falantes.

Vejamos agora o seguinte diálogo:

A: – «Que horas são?»

B: – «Vou já.»

A resposta de B poderá ser perfeitamente compreensível, em determinadas circunstâncias, apesar de não parecer corresponder àquilo que seria de esperar na sequência da pergunta de A. Aquilo que a torna compreensível é o facto de o enunciado de A apelar para um conjunto de saberes contextuais que os interlocutores associam à sua compreensão, dando a entender indirectamente uma coisa diferente da pergunta que formula directamente. Apesar de o locutor perguntar explicitamente que horas são, o alocutário responde a um enunciado implicitado por essa pergunta e que poderia ser explicitado com o seguinte enunciado: «Já é tarde. Despacha-te!» Este sentido implicitado pela pergunta do locutor resulta da intervenção de saberes contextuais manifestos para os interlocutores e que são inerentes à relação interlocutiva.

Os exemplos dados são suficientes para compreender a natureza das questões que a pragmática estuda. Por razões didácticas, podemos agrupá-las em três grandes domínios: o da indexicalidade, o dos actos de linguagem e o dos processos de inferência.

O domínio da indexicalidade abarca as questões da referência e procura dar conta dos processos que os interlocutores utilizam para designarem o mundo, real ou imaginário, e a própria situação enunciativa.

O domínio dos actos de linguagem procura dar conta das acções que os interlocutores realizam ao dizerem aquilo que dizem e pelo facto de o dizerem.

O domínio dos processos de inferência estuda as diferentes maneiras pelas quais os interlocutores são levados a pressupor, a implicitar e a dar a entender sentidos diferentes daqueles que os enunciados significam explicitamente.

{bibliografia}

Asa Kasher (ed.) Pragmatics: Critical Concepts, 6 vols. (1997); Armengaud, F. – La Pragmatique, col. Que sais-je?, Paris, PUF, 1985; Austin, L.L. – How to Do Things with Words, Oxford Univ. Press, 1962 (tradução francesa: Quand Dire c’est Faire, Paris, ed. du Seuil, 1970); Benveniste, E. – Problèmes de Linguistique Générale, 2 vol., Paris, ed. Gallimard, 1985; Chomsky, N. – Aspectos da Teoria da Sintaxe, Coimbra, Arménio Amado Ed., 1975; Davis, S. (ed.) – Pragmatics. A Reader, Oxford univ. Press, 1991; Escandell Vidal, M.V. – Introducción a la Pragmatica, Barcelona, Editorial Ariel, 1996; Fonseca, J. – Pragmática Linguística, Porto Editora, 1994; Latraverse, F. – La Pragmatique, Bruxelas, ed. Pierre Mardaga; Levinson, S.C. – Pragmatics, Cambridge Univ. Press, 1983; Morris, Ch.W. – Foundations of the Theory os Signs, in Writings on the General Theory of Signs, The Hague, Mouton, 1971, 17-74; Rodrigues. A.D. – Dimensões Pragmáticas do Sentido, Lisboa, ed. Cosmos, 1996; Saussure, F. de – Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1978; Searle, J.R. – Speech Acts, Cambridge Univ. Press, 1969 (tradução francesa: Les Actes de Langage, Paris, ed. Hermann, 1972); Sperber, D. e Wilson, D. – Relevance. Communication and Cognition, Oxford, Blackwell, 1986 (tradução francesa: La Pertinence. Communication et Cognition, Paaris, ed. de Minuit, 1989).