Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Originário do grego  rhapsodía, significando “canção costurada” (em  latim, rhapsodia; em  alemão, Rapsodie;  em espanhol,  rapsodia; em francês: rapsodie; em  inglês,  rhapsody; em italiano, rapsodia ), o termo “rapsódia” designa, desde a Grécia arcaica, tanto cada um dos livros de Homero (século VIII a.C)  quanto os poemas épicos cantados por alguém que não fosse o criador dos poemas, como o aedo o era. Rapsodo (em grego clássico ραψῳδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando poemas, principalmente epopéias. Diferia-se do aedo, que compunha os próprios poemas e os cantava, acompanhado de um instrumento (lira ou fórminx). O rapsodo não se fazia acompanhar de nenhum instrumento e, durante a declamação, ficava geralmente em pé e segurava um ramo de loureiro, símbolo de Apolo. Platão, no seu tratado de poesia Íon, explica a Sócrates a apresentação de uma rapsódia.

Segundo The Oxford companion to music, a introdução da rapsódia deve-se a Liszt com suas quinze “Hungarian rhapsodies (1853-1854), but, as a matter of precision, the Bohemian composer Tomaschek published at Prague just half a century earlier six rhapsodies for piano (p. 795).  Percy A. Sholes, autor desse dicionário, cita o exemplo das “Slavonic Rhapsodies of Dvorák”. Já, conforme o Diccionario de la  música Labor,  “ hoy em día se entiende por rapsodia una obra musical de forma libre compuesta de fragmentos de las melodias de una nación. Originalmente fué uma forma vocal y desde el tiempo del Romanticismo tambíén una forma instrumental. Se cita a J. Tomaschek (1774-1850) como uno de los primeros que adoptaron esta denominación para sus fantasías sobre aires nacionales (1813, en 3 cuadernos). A pesar de esto, fué Liszt el que creó verdaderamente este género en sus célebres rapsodias húngaras” (p. 1834).No código musical, “rapsódia” nomeia, portanto, toda fantasia instrumental que utiliza temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, de que são exemplos as rapsódias húngaras de Franz Liszt (1811-1886). Justaposição de escassa unidade formal de melodias populares ou folclóricas e de temas conhecidos, extraídos com freqüência de óperas e operetas, as rapsódias caracterizam-se por terem apenas um movimento, mas podem integrar fortes variações de tema, intensidade, tonalidade, sem necessidade, todavia, de seguir uma estrutura pré-definida. Com uma forma   mais livre que as variações, uma vez que não há necessidade de se repetirem os temas, podem-se, ao sabor da inspiração, criar novos temas, como no caso das variações de Sergei Rachmaninoff (1873-1943) sobre um tema de Niccolò Paganini (1782-1840), cuja estrutura apresenta-se tão livremente  que o próprio compositor russo intitulou-as “Rapsódia sobre um tema de Paganini” (1934).

Os compositores românticos,  eclodidos no século XIX,  tiveram um interesse especial pela rapsódia, sobretudo por não ter ela uma estrutura fixa. A cena de loucura da heroína na ópera Lucia di Lammermoor (1839) de Gaetano  Donizetti (1797-1848) está escrita de forma rapsódica, demonstrando, assim, que também a ópera tem raízes populares.

No repertório musical, citem-se ainda, estas rapsódias, que testemunham da perenidade do gênero: Johannes Brahms (1833-1897), “Rapsódias para pianoforte solo”, “Segunda Rapsódia” (1880); Claude Debussy (1862-1918), Première Rhapsodie(1910); Maurice Ravel (1875-1937), “Rapsódia espanhola” (1907); George Gershwin (1898-1937), Rhapsody in Blue (1924) e a “Segunda Rapsódia” (1931) e Béla Bartók (1881-1945), “Rapsódia para piano e orquestra” (1905), “Rapsódia para violino nº 2” (1929) .

Tampouco a canção popular se privou do privilégio da rapsódia, como Bohemian rhapsody (1975), de  Freddie Mercury (1946-1991), gravada no álbum A night at the opera, da  banda britânica Queen.  Numa pesquisa, realizada, em 2008, com 10 mil pessoas no Reino Unido, Bohemian Rhapsody, considerada rock progessivo,  foi eleita a melhor canção pop de todos os tempos. Gozando de sucesso e prestígio, o tenor italiano Andrea Bocelli gravou uma popularíssima canção, chamada “Rapsódia”.

No cinema, arte popular por excelência e talvez, ao lado da literatura, a mais rapsódica linguagem artística,   o verbo “rapsódia” vem, por seu turno, encontrando uma rica fortuna, na medida em que há vários filmes que o ostentam no título, como “Rapsódia” (1954), de Charles Vidor, “Rapsódia em agosto” (1991), de  Akira Kurosawa, “Uma rapsódia americana”, 2001, de Eva Gardos…

Originário da poesia, na medida em que são rapsódicos os poemas homéricos, o signo “rapsódia” instalou-se no código da música, daí migrando para a literatura e para o cinema. É rapsódico o próprio trajeto do signo, que faz, portanto, não só a travessia das linguagens da arte como abole a fronteira entre o popular e o erudito. Será a cultura uma rapsódia, de que a cultura brasileira, com sua tríplice origem – indígena, portuguesa e africana -, é emblema, enriquecido com as contribuições de outros imigrantes,  europeus e asiáticos.

De migração semântica dá-se como singular exemplo o caso de Mário de Andrade (1893-1945), que, no “momento épico” do modernismo brasileiro, por ele protagonizado, e não sabendo como classificar um texto que escrevera, durante uma semana, em 1928, deitado numa rede, no sítio de seu “Tio” (na realidade era seu primo) Pio,  batizou  de “rapsódia” seu livro Macunaíma, o herói sem nenhum caráter , usando o mesmo estratagema de musicista com que intitulara um texto anterior – “Amar, verbo intransitivo, de 1927, romance por ele designado “Idílio”. Principal romance do movimento modernista nacional, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter emblema a cultura que retrata: colcha de retalhos, miscelânea, mosaico, puzzle de cores, etnias, sons, vezes e vozes.

Em 2006, Branca Braga de Macedo publicou o romance Rapsódia alentejana, que “remete, ao longo do livro, para andamentos musicais (scherzo, andante, etc.), certamente apontamentos/melodias ou, talvez aquarelas, incisivas da vida cotidiana de outros tempos da localidade alentejana. São lembranças de vultos, com as suas qualidades e vícios, de pequenos fatos próprios de uma comunidade bem característica não só do Alto Alentejo, como também de um Portugal em vias de extinção. Com referências à primeira metade do século XX, e mais concretamente aos anos sessenta e oitenta, esses textos retratam tipos sociais, profissões”, numa mistura rapsódica.

Deixando o campo da “alta literatura”, ainda que radicada na mais genuína cultura popular, aponte-se outro exemplo de mistura de linguagens dentro da própria linguagem da literatura. No carnaval carioca, o ano de 1969 apresentou o samba-enredo da Escola Unidos de Lucas, pleonástica e hiperbolicamente intitulado “Rapsódia folclórica”, em que se ouvem, ”Num cenário espetacular  Lendas, flores, lindas fantasias Contos que o poeta vem cantar”, unindo o Brasil – país-continente – pelos laços do folclore.

Anagrama de “diáspora” e “paradiso” (“paraíso”, em italiano), a rapsódia configura, no concerto das artes, algumas rupturas que podem, sob a égide do artista, harmonizarem-se.

No filme de Akira Kurosawa, que trata do holocausto nuclear, a primeira cena é constituída pelos teclados de um órgão que necessita de reparos, pois está emitindo notas que soam em desarmonia. Necessita-se de uma rapsódia, em agosto em ou qualquer outra época do ano, porque, como mostra a cena final, quando o órgão é consertado, vê-se que a reconciliação é possível.

{bibliografia}

Diccionario de la música Labor. Barcelona: Labor, 1954. MACEDO, Branca Braga de. Rapsódia alentejana. Lisboa: Bertrand, 2006. SCHOLE, Percy A. The Oxfod companion to music. 7.ed. London: Oxford University Press, 1947.

Ver também: Rapsódia de Agosto (Hachi-gatsu no kyôshikyoku / Rhapsody in August