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A gênese da retórica se explica usualmente por uma circunstância histórica bem precisa, de ordem sócio-política. Na Sicília do século V a. C. dois tiranos — Gelon e Hieron —, visando a povoar Siracusa, transferem populações, expropriam e redistribuem terras; depostos numa rebelião, abrem-se processos para a devolução das propriedades aos antigos donos, mobilizando-se assim grandes júris populares. Convinha então às partes em litígio a maior eficácia possível no uso do discurso, para persuadir de suas razões os julgadores; com a utilidade desse modo posta em voga, os recursos da eloqüência começam logo a ser sistematizados, tornando-se objeto de uma arte, no sentido antigo deste termo. Ainda no mesmo século V a. C. a retórica seria introduzida na Ática, onde se desenvolveria favorecida por uma situação social e política semelhante à da Sicília, marcada pela livre reivindicação de direitos por via judiciária (cf. Barthes, em Cohen et alii 1975, p. 151).

Mas é provável que não sejam assim tão simples os fatores implicados na origem da disciplina; se tudo se reduzisse à mera determinação por uma conjuntura histórica particularíssima, como seria possível explicar a permanência não só das técnicas retóricas, mas de verdadeira mentalidade de conformação retórica ao longo de toda a história ocidental, portanto muito para além da extinção completa da circunstância que a teria gerado? Como não cabe aqui o aprofundamento dessa questão, deixamos apenas apontado que o problema é mais complexo: sem negar a ação pontual dos fatores político-sociais referidos, é preciso reconhecer que a retórica tem raízes mais fundas, como indiciam, por exemplo, a valorização da linguagem na poesia homérica — seus heróis são pródigos em discursos longos e pomposos, e a narrativa com freqüência se refere às próprias palavras e noções conexas — , bem como sua transformação em tema filosófico privilegiado desde as cogitações de pensadores anteclássicos.

Voltemos, no entanto, ao terreno historiográfico, ainda que, no caso que nos ocupa, os “fatos” quase se diluam na lenda, precariamente reconstituídas que são a partir de relatos de escritores antigos.

Estabelecida na Sicília no século V a. C., a retórica terá como primeiros cultores a Empédocles, Córax e Tísias. Já nesse momento nebuloso de suas origens, a disciplina conheceria duas linhagens: 1ª- uma demonstração técnica e racional do verossímil; 2ª- uma psicagogia (literalmente, “condução da alma”), isto é, exploração do potencial de sedução da palavra, aquém ou além de sua inteligibilidade. A primeira linhagem aspira a tornar mais potente o discurso válido de uma perspectiva lógica, tendo como fontes Córax, Tísias e Protágoras; a segunda, mergulhada em princípios pitagóricos — magia, medicina e música como terapias — e parmenídicos — distinção entre a via da verdade e a da opinião —, pretende trabalhar o fascínio enganador a que se presta a palavra, originando-se no pensamento de Empédocles, para daí passar a Górgias e depois a Isócrates (cf. Plebe, 1968, p. 3-6, passim).

A partir de fins do século V a. C. a retórica entra num período que ficou melhor documentado, podendo-se dizer, contudo, que a controvérsia já referida, entre a arte da palavra como embalagem do raciocínio ou como encantamento e ilusionismo, se transforma em verdadeiro mote do debate filosófico que atravessaria os séculos. Desse período, são de se destacar as obras de Platão — que em geral reagiu contra a retórica enquanto hipertrofia da linguagem como forma sedutora, ou então a avaliou positivamente, desde que identificada com a dialética — e de Aristóteles — que lhe dedicou um tratado específico destinado a ampla influência, concebendo-a como técnica rigorosa de argumentação e como arte do estilo, além de estudá-la sob os pontos de vista do ethos do orador e do pathos dos ouvintes.

No âmbito grego a retórica seguiria sua carreira: teve muita importância entre os estóicos (século IV – III a. C.), floresceu na época de Augusto (século I a. C. – I d. C.) e conheceu o ocaso com a chamada segunda sofística, entre os séculos II e IV d. C. (cf. Plebe, 1968, cap. IV a VI).

A partir do século I a. C. torna-se também latina: Cícero (século II – I a. C.) desenvolve a prática da retórica aristotélica e sustenta o caráter intercomplementar de retórica e filosofia; o tratado de autoria anônima Rhetorica ad Herennium (século I a. C.) divulga e populariza as fontes gregas, firmando a terminologia retórica em latim; Quintiliano (século I – II d. C.) estabelece a pedagogia da retórica aristotélica.

Nessa altura, através de sucessivas retomadas, a arte de bem dizer — definição proposta por Quintiliano (“… rhetoricen esse bene dicendi scientiam […]” [s.d., p. 254.]) — já se apresenta sob a forma de uma unidade, verdadeira superinstituição ocidental, cujo poder de modelização, extrapolando a circunscrição originária constituída pelos discursos públicos orais em geral, alcança a conversação e os diversos tipos de composições escritas. Nessa vasta rede de conceitos e preceitos tornaram-se consensuais algumas distinções.

Inicialmente, existe a diferenciação entre os grandes gêneros da eloqüência, segundo a categoria dos destinatários e a situação da causa em referência ao tempo: o judiciário, próprio dos tribunais, cujos ouvintes se pronunciam em veredicto sobre certos fatos situados no passado; o deliberativo, das assembléias populares e políticas, em que a audiência se manifesta sobre os rumos futuros a observar na vida civil; o epidítico ou demonstrativo, inerente às cerimônias públicas e aos rituais, atento a uma situação presente que induz o louvor ou a censura por parte de quem fala, cabendo aos ouvintes o papel de espectadores das habilidades do orador.

Há também a distinção entre as partes da retórica, que visa a dar conta das fases percorridas na elaboração e execução de um discurso, nomeadas com os seguintes termos tradicionais gregos e latinos: eresis ou inventio (invenção; achar o que dizer); taxis ou dispositio (disposição; pôr em certa ordem o que se tem a dizer); lexis ou elocutio (elocução; colocar os ornamentos do discurso); hypocrisis ou pronuntiatio (pronunciação; proferir o discurso, tendo em vista a dicção e a gesticulação adequadas); mneme ou memoria (memória; confiar o discurso à memória).

Mas, conquanto a retórica tenha efetivamente assumido essa feição de unidade, sobretudo em suas versões mais didáticas, é preciso ter em conta o caráter apenas aparente dessa unidade, ou de construção a posteriori: “…falamos hoje de ‘a Retórica’, mas é bastante seguro dizer que a prática retórica efetiva nunca teve, enquanto prática datada e situada, a generalidade formal pressuposta na expressão” (Hansen, 1994, p. 9).

Retomemos agora o percurso histórico da retórica, com base na cronologia estabelecida por Roland Barthes (op. cit., p. 223-4).

No século IV d. C. e no século V, respectivamente Ausônio e Sidônio Apolinário transmitem à idade média a chamada neo-retórica, elaborada durante o período da segunda sofística; Santo Agostinho (séculos IV-V) e Cassiodoro (séculos V-VI) põem a retórica a serviço do pensamento e proselitismo cristãos, e Beda (séculos VII-VIII) a aplica à Bíblia; Marciano Capela (século V) a inclui entre as sete artes liberais (com gramática, dialética, geometria, aritmética, astrologia e música), e Alcuíno (século XI), na sua reforma das escolas que introduz o septennium, conserva-lhe um lugar no trivium (junto com gramática e dialética), no que seguia o sistema que já tinha precedentes em Boécio (séculos V-VI) e Santo Isidoro de Sevilha (séculos VI-VII); Boécio é ainda o responsável pelo primeiro retorno a Aristóteles nos tempos medievais (estudo da lógica restrita), a que se seguiriam a tradução árabe do século IX e sua segunda retomada, processada no século XII pelo estudo da lógica integral.

Tais são alguns dos nomes e eventos que promovem a continuidade da retórica por toda a idade média. Seus reveses, porém, já então têm início: o lugar de preeminência que conservou no trivium entre os séculos V e VII passa a ser ocupado primeiro pela gramática — século VIII a X — e depois pela dialética — século XI a XV (cf. Barthes, em Cohen et alii, p. 167); por fim, no limiar dos tempos modernos, Petrus Ramus (século XVI) propõe uma redução do seu campo, argumentando que a inventio e a dispositio na verdade pertenciam à dialética, cabendo à retórica apenas a elocutio, a pronuntiatio e a memoria (cf. Dixon, 1971, p. 46). Assim, a partir da difusão das idéias ramistas, a retórica vai tendo a influência reduzida, podendo-se dizer que sua posição de relevo não ultrapassa o século XVIII. Vejamos as causas e estágios desse processo de esvaziamento.

O sentido depreciativo da palavra retórica já se acha bem fixado no início do século XVII; a disciplina sucumbe a um ataque simultaneamente moral e estético, que tem no Górgias de Platão referência fundamental (cf. Dixon, 1971, p. 64). Contribuíram ainda para o descrédito da retórica: o contraste entre “pensamento real” e “ornamento insubstancial”, a que se vincula a já mencionada proposição de Petrus Ramus; a crítica rejeicionista de Montaigne e Bacon, defendendo a precedência de res sobre verba; a disseminação do espírito científico, valorizando a pesquisa e a descoberta, contra a autoridade e a imitação, e erigindo a clareza, entendida como eliminação de ornamentos, em novo padrão do estilo da prosa, especialmente adequado aos relatórios científicos e discussões, segundo proposta da Royal Society of London no século XVII; o empenho de Locke em defender o caráter essencialmente comunicativo da linguagem, cuja clareza se veria prejudicada pela obscuridade das figuras; a combinação de gêneros — que a retórica pretendia puros — promovida pela tragédia burguesa e a comédia sentimental; a mudança do conceito de poesia operada pelo romantismo, segundo a qual esta deixa de ser uma arte pública sujeita a julgamento por critérios externos de ordem moral para tornar-se privada, sem nenhum fim ulterior e moralmente autônoma; a oposição proposta por Mill entre retórica e poesia; o pensamento de Croce, condenando a classificação por gêneros e exaltando a indivisibilidade da arte e a intuição; os “esquemas de caráter” impostos pelo treinamento retórico, que teriam conduzido a uma visão dos seres humanos segundo estereótipos, refratários portanto a qualquer complexidade psicológica e ética; a impugnação das formas retóricas por sua inadaptabilidade ao debate e à controvérsia, já que reduziriam os argumentos a oposições polares, donde a decidida opção contemporânea por expressões como diálogo e diálogo contínuo, que nomeiam práticas mais aptas para a acomodação dos pontos de vista conflitantes do que as disputações retóricas; a perda de confiança na eficácia do próprio ensinamento flagrante nos manuais de retórica do século XIX, que se tornam por isso prudentes e repetitivos (cf. Dixon, 1971, p. 65-70).

Nesse desabamento generalizado, salvam-se porém alguns compartimentos do grandioso edifício da retórica. Das cinco operações que a princípio comportava, com o abandono daquelas de natureza não essencialmente lingüística — inventio, dispositio, pronunciatio e memoria — , acaba sobrando apenas a elocutio, como uma “…teoria de afastamento, desvio ou rupturas discursivas, que passam a fazer parte dos manuais de gramática com o nome geral de ‘Tropos e figuras’ ou ‘Figuras de estilo’” (Hansen, 1994, p. 37). Também sobrevive uma das virtudes da elocução capituladas pela retórica — a clareza — , absorvida pela mentalidade científica como antídoto contra o ornato, outra virtude do mesmo preceituário retórico. Assim, como um treinamento apropriado para a obtenção de clareza e ordem nos escritos, a retórica continuará sendo básica na educação secundária e universitária, pelo menos até o final do século XVIII. No entanto, a partir do século XIX sua presença se retrai de modo drástico; perdendo posição no sistema de ensino e sendo expulsa da literatura com o triunfo das idéias românticas de expressão e subjetividade, ela parece reverter a dimensões anteriores à absolutização do seu espaço: “Começa a parecer que a retórica refluiu de uma vez por todas aos domínios originais ou a seus equivalentes modernos: o púlpito e os tribunais, a tribuna política e o salão de conferências” (Dixon, 1971, p. 70).

Mesmo o departamento retórico da elocução, contudo, sofreria ainda reduções, como assinala Gérard Genette em suas considerações sobre o que chama “o grande naufrágio da retórica” (em Cohen et alii,1975, p. 139): confina-se já nos séculos XVIII e XIX aos tropos e figuras — ou, mais rigorosamente, à fusão dessas categorias sob a égide da primeira — (ibid., p. 131-2); e no século XX, com os formalistas Eikhenbaum e Jakobson, chega-se ao par metáfora/metonímia (ibid., p. 133), enquanto outras teorias poéticas, indo mais fundo na redução e supervalorizando a idéia de analogia, preservam apenas a metáfora como último resíduo da retórica, apresentando-a como essência final da linguagem poética e até da linguagem em geral (ibid., p. 139), o que teria conduzido a um emprego abusivo e conceitualmente esvaziado das noções de imagem e de símbolo (ibid., p. 143-5).

Mas ainda que virtualmente extinta enquanto o conjunto de práticas referidas por Roland Barthes (op. cit., p. 148-9) — uma arte (no sentido clássico do termo), um ensino, uma ciência, uma moral, uma instituição social, uma atividade lúdica —, a retórica, ou, mais precisamente, alguns de seus fragmentos sobrevivem, sob a forma de objeto ou motivação de certos empreendimentos intelectuais do século XX bastante heterogêneos. Vejamos alguns, que recolhemos em indicações de Barthes (op. cit.), Lacoste e Gunthner (em Cohen et alii, 1975) e Hansen (1994): a estilística; o formalismo eslavo; o new criticism anglo-americano; o estruturalismo e a semiologia dos anos 60; a psicanálise; o pensamento dito pós-estruturalista de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard; a pedagogia da redação; a filosofia analítica; a teoria da argumentação.

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