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1 – Aquilo que nada contém ou, em última instância, contém apenas ar (Dicionário Michaelis), ausência de conteúdo (Dicionário Aurélio), o vazio se instaura também na produção artística: está na pausa da música, no silêncio prolongado de um diálogo teatral; no caráter ambíguo e polissêmico de todas as artes, sobretudo na literatura como forma de vazio textual, isto é, aquilo que o estudioso alemão Wolfgang Iser (1978), em seu “Teoria do efeito estético”, vê como uma não resolução para determinado confronto: “o vazio como condição para a comunicação, pois ele aciona a interação entre texto/leitor e até certo nível, a regula” (1979, p.106).

Dessa forma, diante do vazio textual o leitor busca pistas, rastros, que o estimulem a contruir interpretações ou significações. Iser, que também trabalha brilhantemente as noções de imagem e efeito, espera que os pontos indeterminados sejam preenchidos pelo leitor através da “significação”; o crítico literário brasileiro Luiz Costa Lima (1976), caminhando por vias semelhantes, pede um “sentido”; Tzvetan Todorov (1979), filósofo e linguista búlgaro, por sua vez, fala em “interpretação”. Sabemos que na Poética de Aristóteles (XXV, 1461b 11) a mimesis aristotélica foi entendida ao longo dos tempos mais como processo criativo de ideias do que reprodução da realidade; partindo dessa noção, Iser configura o discurso ficcional como dimensão imagística (ou imagética), no qual o leitor assume papel importante de completar ou preencher as lacunas textuais.

O vazio, assim concebido, não é defeito da incapacibilidade do autor de resolver suas próprias querelas, mas, pelo contrário, serve como mecanismo estético, ferramenta artistíca, recurso típico de uma obra aberta, ou mera provocação em que se incute nos limites da narrativa – ou mesmo em toda sua confecção – lacunas angustiantes, corrosivas, mas ainda assim atraentes e sedutoras, pelas quais o leitor terá de se aventurar e reagir. Esta é, no entanto, uma tarefa árdua, que dependerá de vários fatores, como a dimensão sócio-cultural do leitor, de seu posicionamento e opiniões diante da obra, etc. No verbete sobre Interpretação deste dicionário virtual, Gustavo Bernardo nos passa algumas sugestões: “Um projeto inteligente de interpretação recua diante da interpretação final, sob pena de negar seus próprios termos. Mesmo que o ato de escrever tente preencher um vazio, ele não pode se comprometer com projeto de acabar com o vazio — o enigma que o motiva precisa de proteção e salvaguardas.” Carlos Ceia, ao discorrer no verbete Indecidibilidade, caminha por vias parecidas ao escrever: “Quanto maior for o grau de indecidibilidade de um texto maior será a abertura à desconstrução do seu sentido, mais facilmente se revelará a impossibilidade de fixar esse sentido e com mais vigor se demonstrará que um texto nunca está totalmente escrito nem totalmente vazio.”

De qualquer forma, é nesta fenomenologia da leitura que o vazio adquire papel importante no texto artístico ao potencializar projeções interpretativas e criar conectabilidade textual, conforme explica Iser, dessa vez em “A Interação do Texto com o Leitor” (1979). Neste ensaio, é exposto o vazio informacional, apresentado através da pluralidade e heterogenia natural do texto, o vazio de negação, propiciado pelos elementos sócio-culturais e preconceitos do leitor a respeito de como deveria ser a narrativa, e o vazio físico, aquele no qual estariam as estéticas tipográficas e os espaçamentos, sejam as linhas de um poema ou os espaços entre os capítulos; em qualquer um destes – e é importante ressaltar que num mesmo texto os vazios podem ser complementares um do outro – é a parcela cognitiva do leitor que irá ocupar aquilo que o sistema textual não preencheu, ou, segundo o próprio Iser, conectar os segmentos textuais a fim de se encontrar alguma significação. Uma vez que o texto é produto perspectivístico, ele “exige que suas perspectivas de representação sejam constantemente inter-relacionadas”, segundo escreve Iser, que também conclui: “À medida que os vazios indicam uma relação potencial, liberam o espaço das posições denotadas pelo texto para os atos de projeção do leitor. Assim quando tal relação se realiza, os vazios desaparecem.” No entanto, é preciso um adendo nesta conclusão: como vimos anteriormente, o vazio precisa ser resguardado, as interpretações decisivas são perigosas – não se esquecer que o homem de letras italiano Umberto Eco (1932-) já alertou sobre a importância da polissemia na ficção (1985, p. 168) – e às vezes, dependendo da índole da obra, tudo o que nos resta são contundentes questionamentos.

Questionamentos esses presentes em instigante dissertação por Jaqueline da Silva Brito (2007) que, ao se debruçar em alguns contos do livro Laços de Família (1960), escreve sobre o vazio textual na escritora Clarice Lispector (1920-1977). Encontra embates vividos pelas personagens que não se solucionam “no nível do enunciado”: as estruturas de conflito arquitetadas pela autora ao longo da escritura pairam no ar e não findam, como tradicionalmente se espera de uma narração romancesca com começo, meio e fim, deixando o leitor em companhia de complexos e angustiantes personagens sem questões resolvidas. “Podemos afirmar que Ana, após soprar a chama, será a mesma no dia seguinte?”, pergunta-se Jaqueline da Silva Brito diante do final do conto “Amor”, ao perceber que o vazio em Lispector é detonador de reflexão, de compreensão dramática sobre a condição de suas personagens.

O vazio textual não se encontra necessariamente apenas nos movimentos de enredo, ações narrativas, mas também no plano do próprio discurso; é notável os vazios propostos por Machado de Assis em Dom Casmurro (1900), onde não se sabe com muita certeza se o narrador Bento Santiago está a escrever verdades sobre si mesmo e, principalmente, sobre a personagem que ama ou diz amar, Capitu: ultrapassada a data de publicação da obra, em que todos os leitores e contemporâneos de Machado acreditavam nos dizeres do narrador-autor,(ELLIS, 1965, p.76-81) numerosos estudiosos do mundo inteiro se debruçaram sobre o tema do adultério com dúvidas e desconfianças e levantaram hipóteses instigantes ou certezas dispersas, com destaque para a leitura feminista de Helen Caldwell e as interpretações sociológicas de John Gledson (1945-).

Estes exemplos dos dois escritores brasileiros apresentam os elementos básicos do que seria o vazio textual, presente de maneira semelhante em muitas outras literaturas. É importante ressaltar, por fim, como forma de crítica ou subversão da tradição ocidental exposta durante todo o transcorrer deste verbete, que na estética oriental o vazio não é algo a ser interpretado, significado, preenchido, mas, conforme escreve Julio Plaza (2003, p.13), grifo nosso, “algo que seria a Gestalt (ou unidade de percepção), manancial preche de potência onde, pela dança da energia, nascem todas as formas”. A única conclusão que se permite fazer sobre tamanha ambivalência cultural é que, diante de um texto, o leitor, seja ele sujeito médio ou crítico literário, ocidental ou oriental, dificilmente sairá da leitura indiferente: pelo contrário, uma vez entregue a este labirinto infinito, intricado, imbuído de diversas brechas que transcendem sua imanência, é sugado para dentro dos abismos e vãos do texto permeado de “vir a ser”.

2 – Em sentindo figurado, vazio é estado avançado de angústia, privação, ausência, é nada, é o não-ser, é o vazio existencial ou sociológico a rondar a escritura de praticamente todos os grandes escritores; para citar alguns que, curiosamente, também recaem no vazio textual de Iser: Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Franz Kafka (1883-1924), Graciliano Ramos (1892-1953), Samuel Beckett (1906-1989), José Saramago (1922-2010), Hilda Hilst (1930-2004), e Fernando Pessoa (1888-1935), ao escrever, ainda que com certa ironia, através do heterônimo Álvaro de Campos:

Estou vazio como um poço seco

Não tenho verdadeiramente realidade nenhuma

Tampa no esforço imaginativo!

{bibliografia}

Aristotéles, Poética. Porto Alegre, Editora Globo, 1966.

Jaqueline da Silva Brito, “Clarice Lispector: a tematização da mulher em Laços de família e alguns aspectos da vida de uma escritora do século xx”.  Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras. Rio de Janeiro, 2007.

Julio Plaza, Arte e interatividade: autor-obra-recepção. In: ARS – Revista do departamento de Artes Plásticas ECA/USP Ano1, n° 2. São Paulo, ECA/USP, 2003. p. 09-29.

Keith Ellis, “Technique and ambiguity in Dom Casmurro”. In Hispania 45, 1965.

Luiz Costa Lima, A Perversão do trapezistaromance de Cornélio Penna. São Paulo: Imago, 1976.

Tzvetan Todorov, Poética da prosa. Tradução: Maria de Santa Cruz. Lisboa. Edições 70, 1979.

Umberto Eco, Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1985.

Wolfgang Iser, The act of reading: a theory of aesthetic response. London, Henley: Routledge & Kegan Paul, 1978.

_________, O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996 (vol 1)

_________, O ato de leitura  uma teoria do efeito estético. Rio de Janeiro: duerj 1999 (vol 2).

_________, “A Interação do Texto com o Leitor”. Disponível em https://literaturaponto.files.wordpress.com/2011/03/iser-wolfgang-a-interac3a7c3a3o-do-texto-com-o-leitor.pdf Acessado em: 24 de abril de 2015.

__________, idem. In: COSTA LIMA, Luis. (Coord.). A literatura e o leitor; textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.