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Primeiro o sufixo: a partícula que se pospõe ao termo “textual” em “textualidade” sugere que se trata de uma noção que se reporta à qualidade de um objecto de análise em relação à significação do textu, ou “tecido”, pelo que textualidade aponta para aquela qualidade do que está conforme o texto. A raiz: o termo em si não resolve o problema da significação de texto, mas tão só aponta para o que se pode relacionar com ele. Também porque tem sido utilizado, sobretudo pela crítica pós-estruturalista, para abranger as investigações metódicas das leis que fundamentam o texto enquanto tal, nelas se incluindo o conhecimento racional sobre a natureza e condições de produção de texto, a textualidade aborda teoricamente a natureza e significado do texto. Nela se discutem as leis de uma hipotética ciência do texto ou textologia, termo que, sem aparecer enunciado, está na base do trabalho de estruturalistas como Riffaterre, Todorov, Greimas e Barthes (este numa primeira fase estruturalista).

Durante os anos 60, os estruturalistas tentaram elevar os seus estudos sobre o texto à condição de uma ciência. Precisamente porque da textualidade enquanto abordagem teórica se servem linguistas, filósofos, gramáticos, teóricos da literatura, semanticistas e lógicos, o termo textologia devia ser privilegiado para melhor corresponder à descrição correcta da actividade desses indivíduos. Se quisermos identificar a textualidade como uma variante inconsequente da textologia, então a crítica de Richard Rorty, filósofo pragmatista americano, é aceitável sem restrições. No ensaio “Nineteenth-Century Idealism and Twentieth-Century Textualism”, Rorty compara o idealismo filosófico do século XIX ao “textualismo” crítico do séc.XX, que identifica sobretudo com a desconstrução da Escola de Yale e outros pensadores como Michel Foucault. A primeira aproximação que faz entre ambos consiste no facto de se unirem na rejeição do conhecimento científico. A crítica literária deixa de ser uma actividade científica no momento em que, ao criar uma nova terminologia científica, não se preocupa em fazê-la acompanhar de argumentação. Ora, se quiséssemos encontrar uma forma de cumprir a exigência de Rorty de argumentação científica para validar o que chama “textualismo”, podíamos facilmente ressuscitar a poética estruturalista, que pretendia governar, por uma série de princípios gerais, todo o exercício de crítica literária. Valerá hoje a pena ressuscitar este fantasma? Não está já arrumada a questão da insustentabilidade de uma ciência da literatura regida por um conjunto de princípios gerais que podem servir a qualquer texto literário criado e/ou lido?      

Continuamos a jogar com as palavras e as terminologias. A variação semântica entre “textualismo”, “textologia” e “textualidade” possibilita (e continuará a possibilitar) as mais diversas especulações. Se hoje existe uma prática científica ou paracientífica do texto, que inclui a crítica textual ou ecdótica (como arte de descobrir e corrigir os erros de um texto transmitido, preparando-lhe a edição que se diz “edição crítica”); se hoje existe uma outra prática científica que se pode reconhecer no conceito de uma textologia ou ciência do texto, de que é exemplo futurista a recente tentativa de fazer convergir a teoria crítica com a tecnologia, produzindo o que se designa por “hipertexto”, isto é, um texto electrónico que não tem uma existência material e que só existe para o leitor depois que o computador o re-criou, constituindo cada acto de leitura computacional um novo acto de re-criação, segundo princípios científicos, segundo um método próprio, segundo leis específicas das quais depende inexoravelmente a genealogia quer da crítica quer do próprio texto em si. Se o conceito rortiano de “textualismo” se pode aplicar às formas de produção e análise de hipertextos, por exemplo, tal como se aplicaria a qualquer leitura crítica de um ponto de vista estruturalista, o mesmo não me parece poder servir a genealogia da crítica sobre a natureza e significado do texto literário, sobre todas as formas possíveis de interpretação desse texto sem recorrer a instrumentos de análise universais e inquestionáveis em si mesmos.

Se à teoria da literatura tem interessado o trabalho de filósofos contemporâneos como Foucault ou Derrida, não tem o mesmo significado a interacção neste campo entre a literatura e a lógica e a gramática, por exemplo, pelo que o conceito de textualidade serve melhor a preocupação do teórico da literatura que tem como objectivo descortinar como é que o fenómeno literário pode ser realizado no fenómeno textual. A textualidade não inclui a procura de uma terminologia nova e exequível, mas nova e renovável e que faça da sua exequibilidade um motivo de reflexão, isto é, em vez de se perguntar: “Onde é que posso aplicar este novo conceito? Como é que posso reconhecer no texto tal conceito?”, deve caminhar para uma especulação do tipo: “Este texto resiste à aplicação deste conceito? Este conceito ameaçará as convicções do texto?”.

Neste ponto, a textualidade afasta-se ou vai mais além da preocupação do linguista, pois inclui um projecto auto-reflexivo que só é possível concretizar filosoficamente. Ao contrário de Rorty, acredito que a textualidade enquanto disciplina crítica pós-estruturalista, não toma a filosofia como um subgénero literário nem pretende ser gratuitamente filosófica esquecendo-se de oferecer os argumentos das suas teses. Se pensarmos na desconstrução, que não é um método científico de análise textual, conforme Derrida se tem cansado de esclarecer, se pensarmos na crítica feminista, marxista, fenomenológica ou na reader-response criticism, onde é que podemos descortinar qualquer pretensão de instituir um método ou o desejo de encontrar um consenso de interpretação (ou observação científica, se se quiser), quando a prática geral obedece ao jeu derridiano, isto é, ao jogo aberto da interpretação textual? Aceitar tal jogo é incompatível com qualquer método científico. Nesse caminho paralelo à textualidade crítica e teórica, está na verdade a textualidade linguística, essa sim “textualista” num sentido mais específico. A Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus et alii, chama textualidade “ao conjunto de propriedades que uma manifestação da linguagem humana deve possuir para ser um texto (discurso).” (p.134). Tais propriedades são a “conectividade”, a “intencionalidade”, a “aceitabilidade”, a “situacionalidade”, a “intertextualidade” e a “informatividade”. A primeira diferença entre a abordagem linguística e a abordagem crítica é precisamente a dependência de definições em que a primeira vive. Sem definir estes conceitos, a textualidade linguística torna-se inoperacional. Pelo contrário, a textualidade crítica é um jogo que coloca no centro da competição precisamente tais conceitos, com a particularidade de não exigir resultados observáveis macroscopicamente. Em segundo lugar, a abordagem linguística centra-se sobretudo na superfície do texto, excluindo as razões da sua produção, do autor que o materializou e da relação que este mantém com o texto produzido, do leitor que há-de utilizar o texto no exercício do seu dever de leitor e das formas que a crítica do texto pode assumir ao tomá-lo de assalto – tudo isto é que é a tarefa da textualidade crítica. Ao linguista importa, antes, não tanto a relação interpessoal de “locutor” e “alocutário”, para utilizar a sua terminologia, mas preferencialmente a posição à superfície de cada entidade num discurso produzido. O objectivo da prática linguística é distinguir quais os “textos” que pertencem a uma específica linguagem natural humana e aqueles fenómenos verbais que não entram na qualificação de “textos”. Para o linguista, a textualidade é então apenas o resultado dos diferentes processos cognitivos que envolvem regras gramaticais e lógicas. Para o “textualista” crítico, deve ser o estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão do texto, no sentido de apreendê-lo na sua totalidade. As perguntas que faz a si próprio serão necessariamente diferentes: não: “O que é um texto?”, mas: “Qual é a razão de ser deste texto?”; não: “Como é que podemos (re)conhecer o texto?”, mas: “Qual é o conhecimento que o texto ensina?”; não: “Quais as causas, fundamentos, leis ou princípios do texto?”, mas: “Como é que o texto respeita as causas, fundamentos, leis ou princípios que constituem as suas crenças?” Porque vejo nestas interrogações maiores um trabalho de natureza participativamente filosófica, porque lhe acrescentaria não sem pudor um pouco do desafio iluminista à tradição e à autoridade e o incentivo à liberdade de pensamento, não parece ser desajustado acreditar na textualidade crítica menos como uma forma de nos servirmos da filosofia fugindo à argumentação, mas, mais precisamente, como uma forma de argumentação que exige o refúgio na caverna dos filósofos.

Alguns filósofos, lógicos, gramáticos e semanticistas têm feito da textualidade o tratamento de problemas como a concepção das frases como unidades gramaticais, o fio do discurso, a progressão temática, as cadeias de inferência e outros tópicos semelhantes. A todos estes utilizadores do conceito de textualidade havia que acrescentar os psicólogos da linguagem, neurolinguistas, teólogos, sociólogos, antropologistas, etc., que recentemente se têm envolvido em abordagens multidisciplinares sobre o fenómeno do texto, reforçando a ideia de que estamos perante uma investigação metódica a que melhor conviria, portanto, chamar textologia, guardando o conceito de textualidade para os teóricos da literatura que interpretam sobretudo a interacção do leitor com o texto em termos de produtividade, isto é, da produção de uma multiplicidade de efeitos significantes. O texto é então produzido num espaço específico entre o leitor e a escrita, que é o lugar da produtividade, a écriture ou escritura.

{bibliografia} Carlos Ceia: Textualidade – Uma Introdução (1995); Hugh J. Silverman: Textualities: Between Hermeneutics and Deconstruction (1994); Jerome J MacGann: The Textual Condition (1991); Robert Scholes: English After the Fall: From Literature to Textuality (2011)