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Tudo o que se afasta do sistema de valores morais e sociais de uma comunidade ao ponto de ser repulsivo; tudo o que é degradação, envilecimento, aviltamento pessoal ou social. A moral ocidental considera abjectos certos aspectos como a droga, a blasfémia, o incesto, crimes de sangue, perversões sexuais, dejectos animais, o canibalismo, etc. Como observa Barbara Creed: “The place of the abject is where meaning collapses, the place where I am not. The abject threatens life, it must be radically excluded from the place of the living subject, propelled away from the body and deposited on the other side of an imaginary border which separates the self from that which threatens the self.” (Horror And The Monstrous Feminine: An Imaginary Abjection, Routledge, Londres, 1993, p.65).

Trata-se de um tema com uma tradição particularmente forte na literatura francesa contemporânea, de Baudelaire a Céline. Julia Kristeva dedicou-lhe um extenso ensaio, Pouvoirs de l´horreur: essai sur l´abjection (1980), onde identifica o momento primordial da abjecção com a separação da mãe, inspirada na psicanálise de Lacan, porque é essa a primeira vez que nos revoltamos com a nossa própria fonte de vida. A criança entra então no domínio do Simbólico, representado na autoridade paterna. Uma vez adultos, a abjecção surge-nos quer como fonte de receio quer como princípio de identificação. O processo de constituição do sujeito passa sempre pelo domínio do Imaginário, onde se aloja o abjecto, mesmo que o queiramos erradicar. A teoria de Kristeva parte das figuras que são capazes de nos transportar de novo para o domínio do abjecto e, dessa forma, ameaçando a formação da identidade. O sentimento da náusea é uma dessas figuras biológicas capazes de nos transportar rapidamente para o domínio do abjecto.

Trata-se, portanto, de um tema relacionado com a ideia de descentralização ou desenraizamento do sujeito em relação a uma norma ou padrão, recorrente em poetas que cultivaram a degenerescência pessoal e a decadência social, como o faz em vários momentos Fernando Pessoa: em “Considerações pós-revolucionárias”, comentando o efeito e as causas da revolução de 5 de Outubro de 1919, escreve: “Em situação social tão pavorosamente degradante, o mero facto de se poder fazer uma revolução, uma sublevação vitoriosa é de extraordinário alcance para o sociólogo. Porque na abjecção suprema, quando essa abjecção o é real e supremamente, não cabe nem na alma colectiva, nem em qualquer parcial (…) o poder revoltar-se eficazmente, dominadoramente. Quando numa situação em aparência abjecta ao último ponto se dá um movimento revolucionário vitorioso, o sociólogo conclui que a vitalidade nacional não está extinta ou senil, mas adormecida apenas.” (Da República (1910-1935), de Fernando Pessoa, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão, introdução e organização de Joel Serrão, Ática, Lisboa, 1979). Na poesia, Pessoa ortónimo compara a sua baixeza à de “Cristo”:

 

Como tu eu não fui nada,

E vales mais do que eu;

Nada eu.

………………………………….

Assim sou e em meu nome

Inda muitos o serão;

Um Deus – supremo renome,

E doido! – suma abjecção.

 

No poema “Dactilografia” (19-12-1933), Álvaro de Campos confessa o seu “tédio fundamental” – variante sensitiva da abjecção – que lhe produz uma náusea profunda – também íntima do sentimento de abjecção, sobretudo quando se trata de nausea vitae:

 

Que náusea da vida!

Que abjecção esta regularidade!

Que sono este ser assim!

 

O protagonista Roquentin do romance filosófico de Jean-Paul Sartre La Nausée (1938) podia ser este Álvaro de Campos. À procura de uma resposta para as contingências da vida, ambos experimentam essa náusea (ou abjecção, neste sentido) que é apreensão da consciência da sua própria essência como reveladora do ser. Quando esta essência se torna numa obrigação, quando o sujeito se interroga por que é, quando se prolonga indefinidamente a revelação do ser, tem lugar o sentimento da náusea ou abjecção da vida. “Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma.” é experimentada no momento em que a consciência compreende que não há escolha possível e que só tem um objectivo a atingir: transformar-se ela própria no objecto da aprendizagem da vida.

Bernardo Soares, em Diário Lúcido (s.d.), dá-nos a nota final de um abjecto predestinado: “De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém. Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjecção.”

Os poetas surrealistas portugueses cultivaram o abjeccionismo como forma de expressão anti-literária. Mário de Cesariny publicou uma antologia Surrealismo/Abjeccionismo (1963, reeditada em 1992).

 

Bibliografia:

 

Julia Kristeva: Pouvoirs de l´horreur: essai sur l´abjection (1980); Mário Cesariny de Vasconcelos: Surrealismo/Abjectionismo: Antologia das Obras em Português Seleccionadas por Mário de Cesariny de Vasconcelos de Acordo com o Propósito Inicial (1992); Samantha Pentony: “How Kristeva’s theory of abjection works in relation to the fairy tale and post-colonial novel: Angela Carter’s The Bloody Chamber, and Keri Hulme’s The Bone People“, Deep South, vol.2 nº 3 (1996).