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Na narrativa literária ou cinematográfica, diz-se de todo o facto que, pertencendo ao passado, é trazido para o presente da história relatada. Trata-se, portanto, de um fenómeno de anacronia, a que também se chama flash-back, cutback ou switchback. A noção que se lhe opõe é a de prolepse. Gérard Genette distingue duas espécies: a analepse interna, que não ultrapassa o momento em que a história narrada se iniciou, e a analepse externa, que pode ultrapassar esse limiar. Na teoria de Genette, uma analepse distingue-se ainda pelo seu alcance, ou limite retrospectivo, e amplitude, ou extensão de tempo coberta pela retrospecção.

Como recurso literário, a analepse é de uso frequente não só na narrativa em prosa como em textos poéticos de carácter narrativo como os poemas épicos e os dramáticos. Nestes últimos casos, todos os textos que fazem uso da regra clássica de começo de uma história in medias res (como em Os Lusíadas) podem aproximar-se do conceito de analepse. A sua utilidade para a economia da narrativa deve-se ao facto de existirem momentos em que é necessário explicar as vicissitudes do presente por confronto com factos passados, cuja recuperação é fundamental para a compreensão da história narrada. O cinema e o romance pós-moderno em particular têm explorado muito esta técnica, por exemplo, nos argumentos e filmes de Quentin Tarrentino (Pulp Fiction, Reservoir Dogs) os nos romances mais recentes de Vergílio Ferreira e António Lobo Antunes, onde abundam os movimentos retrospectivos. Por esta via, a analepse literária assemelha-se ao processo analítico da anamnese. No caso português, Miguel Torga chamou a atenção para esse movimento psicanalítico da anamnese (recordação do que se simula esquecido) – “Há um lance no exercício da profissão que sempre me apaixonou: a anamnese. O relato dos padecimentos feitos pelo doente à cordialidade inquisidora do médico.” (Diário X, Coimbra, 1968).

Um escritor como Mário de Carvalho pode até parodiar o uso formal desta figura discursiva: “Abra-se aqui uma analepse, que é a figura de estilo mais antiga da literatura, vastamente utilizada pelo bom do Homero, quando não dormia, e não sei mesmo se pelo autor do Gilgamesh. Logo verei, com mais vagar. Os cineastas – deslembrados de Homero ou Camões – estão candidamente convencidos de que foi o cinema que inventou a analepse, a que chamam flash-back. E até há alguns que manifestam animadversão contra os flash-backs, e nisto fazem lembrar uma escritora que tinha tanta repulsa aos diálogos, como os monges medievais ao grego e Mafoma ao toucinho (…). Não me ocorre agora nenhum escritor que abomine as analepses, mas deve haver algum. (…) E vem a tal analepse para contar o que se passou momentos antes (mais exactamente, quatro minutos e meio) quando, apreensivo, Joel Strosse, avisado por um contínuo, penetrou no gabinete de Vaz Alves (…)” (Era Bom Que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto, 1995).

 

Bibliografia:

 

Gérard Genette: Figures III (1972); Gerald Prince: A Dictionary of Narratology (1988); Millicent Bell: ”Narrative Gaps/Narrative Meaning”, Raritan: A Quarterly Review, 6,1 (1986); Pierre Hebert: “Vers une typologie des analepses”, Voix et Images: Litterature Quebecoise, 8,1 (Montreal, 1982).