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Termo-chave da medicina, cuja significação é aproveitada na literatura como metáfora para a dissecação de um texto para análise. Existe uma tradição crítica que aproveita a designação para títulos e projectos de obras de carácter examinador: Euphes: The Anatomy of Wit (1579), de John Lyly, Anatomie of Abuses (1583), de Philip Stubbes, Anatomie of Absurditie (1589) – uma resposta ao livro anterior -, de Thomas Nashe, Anatomy of Melancholy (1621), de Robert Burton, Anatomy of Inspiration (1940), de Rosamund Harding, e, a mais conhecida e influente das anatomias literárias, The Anatomy of Criticism (1957), de Northrop Frye.

O termo também é valido para as grandes narrativas que descem ao mais ínfimo pormenor para descrever e dissecar situações, costumes ou lugares, por exemplo, a atmosfera marítima quer no Moby Dick, de Melville, quer em Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Na teoria de Frye, que popularizou o termo na crítica literária, a anatomia ultrapassa a sua simples etimologia, representada na obra de Robert Burton, mas de significação mais ampla no contexto da crítica arquetípica (que Frye personificou): “The word ‘anatomy’ in Burton’s title means a dissection or analysis, and expresses very accurately the intellectualized approach of his form. We may as well adopt it as a convenient name to replace the cumbersome and in modern times rather misleading ‘Menippean satire’.” (The Anatomy of Criticism: Four Essays, Penguin, Harmondsworth, 1990, pp.311-312). Daqui parte o crítico canadiano para exemplos de anatomia, assumindo que se trata de um género nal (“When we examine fiction from the point of view of form, we can see four strands binding it together, novel, confession, anatomy, and romance.”, p.312). De alguma forma, se quisermos actualizar este conceito de anatomia, não está longe do que hoje se entende por metaficção. Veja-se o exemplo fornecido por Frye: “Tristram Shandy may be (…) a novel, but the digressing narrative, the catalogues, the stylizing of character along ‘humor’ lines, the marvellous journey of the great nose, the symposium discussions, and the constant ridicule of philosophers and pedantic critics are features that belong to the anatomy.”(id.). Esta descrição que Frye apresenta de Tristram Shandy, para muitos um proto-arquétipo do pós-modernismo, curiosamente serviria também qualquer definição do que seja a metaficção. Assim, todos os processos de auto-reflexividade que caracterizam as metaficções e as grandes narrativas viradas para a sua própria natalidade seriam processos análogos ao estudo anatómico. Mas há limites neste estudo que não são aceitáveis no estatuto que hoje se reconhece para a literatura e para o respectivo estudo: o carácter científico do estudo anatómico não é compatível com os traços nucleares da literatura pós-moderna: a instabilidade do sentido, a indeterminação, a ambiguidade, a indecidibilidade, etc.

O carácter científico da prática da anatomia da crítica que Frye perseguiu vê-se na sistematização de uma gramática de arquétipos literários e pode inclusive testemunhar-se em sistematizações mais particulares como a teoria dos modos nais ou a teoria dos símbolos, ou a teoria dos géneros. A argumentação de Frye é capaz de convencer o leitor circunstancial: “Evidence is examined scientifically; previous authorities are used scientifically; fields are investigated scientifically; texts are edited scientifically. Prosody is scientific in structure; so is phonetics; so is philology. Either literary criticism is scientific, or all these highly trained and intelligent scholars are wasting their time on some kind of pseudoscience like phrenology.” (p.8). Faltou dizer que, precisamente, o que não é científico é o estudo indutivo da literatura. É necessário ter em atenção o contexto histórico em que tal proposta surgiu: Frye lutava sobretudo contra as críticas impressionista, historicista e linguística que dominavam a cena americana. O projecto de uma prática crítica que se comporta como um estudo de anatomia é também dificilmente sustentável, porque o objectivo de Frye era o de estudar toda a literatura ocidental segundo um modelo de análise científica sem atender à especificidade de todos os textos que constituem essa literatura. O estruturalismo literário terá a mesma pretensão e crê-se que a obra de Frye terá preparado a crítica americana para a sua recepção. Ficam ainda de fora de qualquer anatomia, nesta tradição, o estudo do autor, perspectiva que é partilhada, regra geral, por todo o New Criticism americano, e o problema da originalidade artística, que tanto pré-ocupou, por exemplo, os românticos que Frye tão afincadamente estudou.

 

Bibliografia:

 

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