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Derivado do grego ανήρ (aner, que significa homem) e γυνή (gyné, traduzido por “mulher”), o termo “androginia” aparece, pela primeira vez, como palavra composta, no Judaísmo Rabínico (Genesis Rabba 8.1; Leviticus Rabba 14.1), muito provavelmente como alternativa ao grego pagão “hermafrodita”. O significante dilui as fronteiras entre os dois sexos, configurando uma dialética, em que vigora a harmonia do que poderia ser paradoxal; retoricamente, será a androginia um oxímoro, que, segundo Carlos Manuel Serra, “consiste na combinação e expressão de vocábulos paradoxais. Aproxima-se da antítese, porém no oximoro ambos os termos se excluem, a fim de revelar que a conciliação de contrários é possível e, por vezes, indispensável para se exprimir a verdade (…)”. A androginia rima, então, com a coincidentia oppositorum (a reunião dos opostos, a conciliação dos contrários), de que já falavam os romanos. Em um fragmento nodal, de seu Mefistófeles e o andrógino, Mircea Eliade (1907-1986) faz esplêndida síntese da história e da natureza do mito do andrógino: “O que nos revelam todos esses mitos e esses símbolos, todos esses ritos e essas técnicas místicas, essas lendas e essas crenças que implicam, com maior ou menor clareza, a coincidentia oppositorum, reunião dos contrários, a totalização dos fragmentos? Antes de tudo, uma profunda insatisfação do homem com a sua situação atual, com aquilo que se chama condição humana. O homem sente-se dilacerado e separado. Nem sempre lhe é fácil tomar consciência perfeita da natureza dessa operação, pois às vezes ele se sente separado de ‘alguma coisa’ poderosa, outra coisa que não ele; outras vezes sente-se separado de um ‘estado’ indefinível, atemporal, do qual não guarda lembrança precisa, mas do qual se lembra no mais profundo de seu ser: um estado primordial de que usufruía antes do tempo, antes da História. Essa preparação constituiu-se como uma ruptura, nele e no Mundo. Foi uma ‘queda’, não necessariamente no sentido judaico-cristão do termo, todavia uma queda, já que traduzida por uma catástrofe fatal para o gênero humano e, ao mesmo tempo, por uma mudança ontológica na estrutura do Mundo. De certo ponto de vista, pode-se dizer que numerosas crenças que implicam a coincidentia oppositorum traem a nostalgia de um Paraíso perdido, a nostalgia de um estado paradoxal no qual os contrários coexistem sem confrontar-se e onde as multiplicidades compõem os aspectos de uma misteriosa Unidade. Afinal de contas, foi o desejo de recuperar essa Unidade perdida que obrigou o homem a conceber os opostos como aspectos complementares de uma realidade única. É a partir de tais experiências existenciais, desencadeadas pela necessidade de transcender os contrários, que se articularam as primeiras especulações teológicas e filosóficas. Antes de se tornarem conceitos filosóficos por excelência, o Um, a Unidade, a Totalidade constituíam nostalgias que se revelavam nos mitos e nas crenças e se enalteciam nos ritos e nas técnicas místicas. No nível do pensamento pré-sistemático, o mistério da totalidade traduz o esforço do homem para ter acesso a uma perspectiva na qual os contrários se anulem, o Espírito do Mal se revele incitador do Bem e os Demônios apareçam como o aspecto noturno dos Deuses. O fato de esses temas e esses motivos arcaicos sobreviverem ainda no folclore e surgirem continuamente nos mundos oníricos e imaginário prova que o mistério da totalidade faz parte integrante do drama humano. Ele volta com múltiplos aspectos e em todos os níveis da vida cultural, tanto na teologia mística e na filosofia quanto nas mitologias e nos folclores universais; tanto nos sonhos e nas fantasias dos modernos quanto nas criações artísticas.

Não foi por acaso que Goethe procurou, durante toda a vida, o verdadeiro lugar de Mefistófeles, a perspectiva na qual o Demônio que negava a Vida se mostrasse, paradoxalmente, seu mais precioso e incansável colaborador. Também não foi por acaso que Balzac, criador do romance realista moderno, retomou, em seu mais belo romance fantástico, um mito que obsedava a humanidade há vários milênios. Goethe e Balzac acreditavam na unidade da literatura européia e consideravam suas obras como pertencentes a essa literatura. Ficariam ainda mais orgulhosos se tivessem pressentido que a origem dessa literatura européia está além da Grécia e do Mediterrâneo, além do Oriente Próximo antigo e da Ásia; que os mitos reatualizados em Fausto e Serafita nos chegam de muito longe no espaço e no tempo; que eles nos chegam da pré-história” (p. 127-129).

A escritora portuguesa Yvette Centeno coincide, em sua análise da androginia, com a leitura de Eliade: “O andrógino é um arquétipo universalmente espalhado que aflora não só nas cosmogonias mais arcaicas, como também na literatura e na pintura modernas” (p. 63); elaborando uma conceituação que ultrapassa a mera questão de se considerar o andrógino como um paradoxo sexual, a ensaísta define a androginia como “(…) justaposição de contrários, desde sempre sonhada como primeira origem e derradeira meta dos seres, divinos e humanos, tidos como perfeitos” (ib.).

A palavra “androginia” conjuga, já em sua etimologia, aquilo que, na condição humana, Virginia Woolf (1882-1941) designou como “his form combined in one the stregth of a man and a woman’s Grace”, força e graça literariamente realizadas em seu romance Orlando, uma biografia (1928), paradigma andrógino da literatura moderna ocidental. Com efeito, esse original romance foi inspirado na vida (donde o aposto “biografia”) da poeta britânica Vita Sackville-West (1892-1962), a quem é dedicado. Mais um elo familiar expõe-se, pois, na edição que compulso (Grafton Books, de 1985), cuja capa apresenta a figura andrógina de uma pintura de 1637, atribuída a Cornelius Nule, de propriedade de Lorde Sackville, pai da musa de Virginia Woolf. A narrativa acompanha, por 350 anos, o protagonista, que nasce na Inglaterra medieval, durante o reinado de Elizabeth I, e que, durante sua estada na Turquia, acorda e verifica que se tornou mulher. A partir dessa metamorfose, a narração adota o ponto de vista da mulher, encarnada em um ser fascinantemente ambíguo, porque exemplar da androginia, “forma ideal” (p. 268), conforme a designa, em seu romance Il piacere (1889), o italiano Gabriele D’Annunzio (1863-1968).

Falar de androginia remete, de chofre, a Platão (429 a.C-347 a.C), verdadeiro fundador da filosofia ocidental, que, em O banquete (189c – 193e, falando da gênese da natureza humana, elucubra, na voz do comediógrafo Aristófanes: “Havia, a princípio, três espécies de homens e não duas, como atualmente: macho e fêmea. O terceiro gênero era formado dos dois primeiros. Extinta a espécie, só o nome lhe sobreviveu. Chamavam-se Andróginos, porque pelo aspecto e pelo nome lembravam o macho e a fêmea” (p. 39). Esses seres não são filhos do Sol, como os homens, tampouco da Terra, como o são as mulheres, mas filhos da Lua, que participa da natureza de ambos. Ao contrário do que ocorre nos contos de fada típicos, os andróginos, na versão platônica que fixou o mito literário, não foram felizes para sempre, uma vez que, escalando o Olimpo para fazerem guerra aos deuses, receberam de Zeus cruel castigo, amargando, através de um raio, uma separação irreversível dos corpos. A toda hybris corresponde, na mitologia grega, uma nemesis: o querer ser igual aos deuses acarreta um castigo exemplar; com os andróginos não poderia ser diferente. Também no livro bíblico Gênesis, narra-se que Eva, a primeira mulher, querendo saber mais e aliciando Adão, o primeiro homem, para saber a fruta proibida, foi, com seu parceiro, expulsa, definitivamente, do paraíso. Com a queda adâmica, o ser humano está, nos termos do Antigo Testamento, condenado a ser infeliz.

Conjugando o mito do andrógino em O banquete e aproximando-o da narrativa bíblica, Y. Centeno sentencia que “o homem primordial, feito à imagem da perfeição de Deus, é pois andrógino. A perda da androginia é o resultado da Queda; a separação que retira o elemento feminino do corpo uno e o automatiza é uma degradação na ordem cósmica, como na ordem física” (p. 66). Platonicamente falando, cada ser humano é apenas a metade, como uma folha dividida em duas.

Na leitura completa do mito do andrógino, segundo Platão, havia, na origem da Humanidade, três seres: Andros, Gynos e Androgynos, sendo Andros entidade masculina composta de oito membros e duas cabeças, ambas masculinas, Gynos entidade feminina, mas com características semelhantes, e Androgynos composto por metade masculina, metade feminina. Porque eram muito poderosos, os deuses resolveram separá-los: seccionado Andros, originaram-se dois homens, que, apesar de terem seus corpos agora separados, tinham suas almas ligadas, por isso ainda eram atraídos um por o outro. O mesmo ocorre com os outros dois. Andros deu origem aos homens homossexuais, Gynos, às lésbicas e Androgynos, aos heterossexuais. Segundo Aristófanes, seriam então divididos aos terços os heterossexuais e homossexuais. De acordo, portanto, com o mito platônico, a corriqueira expressão “buscar a outra metade da laranja” aplica-se tanto aos homens duplos, quanto às mulheres duplas e ao homem e à mulher, originariamente unificados: as mulheres que provêem da separação das mulheres primitivas inclinam-se para outras mulheres, ao passo que os homens, originários de outros homens, anseiam pela sua outra metade masculina. Se os homens, por exemplo, que se originam de outros homens, casam-se e constituem família, não é porque a natureza assim os direciona, mas porque são obrigados pela lei. Nossa sociedade, fortemente heterossexista, usa, muitas vezes, o mito do andrógino para dar validade às relações heterossexuais, condenando, com firmeza e, até, agressão, toda relação homossexual, quando, na verdade, o próprio Platão exaltava e praticava a homossexualidade. Em que categoria, ou origem, inserem-se os bissexuais? Serão eles a síntese revoltosa dos “andros”, “gynos” e “androgynos”?

Vê-se, então, que o mito dos andróginos vem sofrendo uma leitura reduzida, como no caso de Octavio Paz (1914-1998), em cujo livro La doble llama (1993) explica-se a necessidade de complementaridade que experimentam os casais, formados por um homem e uma mulher, esquecendo-se de que a mesma necessidade afeta os pares, constituídos por um homem e um homem, bem como por uma mulher e uma mulher. Alterando o sentido do texto original de Platão, esse tipo de leitura opera uma castração.

Em muitos dos mitos gregos, o traço andrógino pulsa fortemente, como, por exemplo, em Dioniso, que, sendo um dos mais antigos do Panteão, é, muitas vezes, representado de forma andrógina e, em muitos de seus emblemas, figura a pinha, fruto hermafrodita de espécie muito conhecida e difundida no Mediterrâneo; a pinha, aliás como a videira, faz parte da simbologia do Cristo. Também andrógino é Tirésias, o vidente da Odisséia, que se tornou cego, segundo o mito, por ter visto duas serpentes sagradas copularem: a serpente é dos mais antigos símbolos e, na forma de Ouroboros, representado na alquimia, é circular, como o andrógino. Outras divindades míticas gregas exibem, também uma forma andrógina, como representação da fecundidade, juventude eterna, como Cibele, Atis e Adônis, todos seres completos, através da autogenia e da monagenia.O poeta bahiano Gilberto Gil canta belamente: “Deus é menino e é menina”.

A persistência da narrativa platônica e sua intromissão em outras culturas, como a alquimia, reforçam o arquétipo do andrógino como coincidentia oppositorum : coincidência e superação. Em O arco e a lira, o ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998) fala da inserção, intersecção da poesia, “centro fixo e vibrante, onde se anulam e renascem sem trégua as contradições. Coração-manancial” (p. 309-310), que podemos traduzir como coincidentia oppositorum; no caso da androginia, eu traduziria por corpo-manacial. A potência do arquétipo continua a contaminar todos os sistemas mitológicos: as divindades podem mudar de nome, mas os signos circulam de uma a outra, articulando-as.

Há que se distinguir o andrógino do hermafrodita, na medida em que esse último é um termo técnico que, na zoologia e na botânica, indica a presença, em um mesmo indivíduo, de caracteres sexuais masculinos e femininos, como, por exemplo, no caso das minhocas e das ostras, quando ocorre o hermafroditismo e não a androginia. O termo “andrógino” não é usado no âmbito científico, não fazendo, jamais, referência à modalidade de reprodução nem à orientação sexual, já que não é sinônimo de bissexual. A androginia refere, sempre, a coexistência, em uma mesma pessoa, de aspectos exteriores próprios de ambos os sexos.

Na iconografia religiosa, a androginia marca-se profundamente em vários santos, como, v.g., em Santa Joana d’Arc (1412-1431), la pucelle de Domrémy, padroeira da França. Outra representação andrógina no martirológio romano, recebe-a São Sebastião (156-186) – aliás patrono da cidade do Rio de Janeiro e da comunidade gay internacional -, soldado do exército romano, na era do imperador Diocleciano. Tem também fascínio andrógino a pintura de São João Batista, feita por Leonardo da Vinci (1452-1519).

Em nossa conturbada pós-modernidade, o andrógino é um ser que não encontra lugar no esquema binário homem/mulher; fala-se, então, de “transgênero” (ou, até, “intergênero”), quando a pessoa não se enquadra nas duas etiquetas, e de “transexualismo”, se alguém se identifica com o gênero sexual oposto a seu sexo biológico. A moda, tão bem estudada por Roland Barthes (1915-1980), em seu livro básico de semiologia, Le système de la mode (1967), explicita, nos signos da indumentária, a androginia flâneuse; os movimentos gótico, visual kei, cosplay e glam rock, por exemplo, não levam, jamais, em conta, os códigos habituais da moda e exibem roupas que não pertencem a nenhum sexo determinado.

Por seu turno, o mundo das chamadas “celebridades” está povoado de artistas com aparência nitidamente andrógina, seja no vestir-se, seja em suas atitudes, que querem chamar a atenção e provocar, talvez épater les bourgeois, entre as quais citem-se alguns ícones: Sarah Bernhardt, Michael Jackson, Alice Cooper, Twiggy, Mika (cantor libanês atual), David Bowie, Boy George, Marilyn Manson, Marlene Dietrich, Greta Garbo, Mishima, Rita Pavone, e os brasileiros, tão amados, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Cazuza, Edson Cordeiro, Adriana Calcanhoto, estrelas todas de uma constelação que se estenderia ad nauseam. Note-se, ainda, que a coleção Inverno 2009/2110, do francês Jean-Paul Gaultier, reedita o tema da androginia, exibida por exuberantes modelos, flanando sobre passarelas pós-modernas.

No cinema contemporâneo, a androginia constitui , como em todas as eras, signo de fascinação: o cinema chinês apresentou, em 1993, o premiadíssimo filme Farewell, my Concubine (Adeus, minha concubina), de Kaige Chen, em que, tendo como pano de fundo as turbulências, na metade do século XX, inclusive com a Revolução Cultural, na China, dois atores da Ópera de Pequim vivem uma grande paixão, sendo que um deles se transveste de mulher, como, aliás, o faziam os atores na dramaturgia grega antiga. Adaptação de um romance de Lilian Lee, o filme tem um diálogo, quando o ator-mulher deve dizer: “Sou por natureza um rapaz, não uma moça”, ele se equivoca, cometendo um ato falho: “Sou por natureza um rapaz…”.

O cinema franco-belga-italiano imortalizou o mais famoso castrato do século XVIII: Farinelli (1705 – 1782), como era conhecido Carlo Maria Broschi, o mais popular e bem pago cantor de ópera da Europa, no século XVIII, e que foi castrado quando tinha apenas 10 anos de idade. Em 1994, foi lançado um filme sobre a vida de Farinelli, intitulado Farinelli – Il Castrato, dirigido por Gerard Corbiau e estrelado, por Stephano Dionisi (Farinelli), Enrico Lo Verso (Riccardo Broschi), Elsa Zylberstein e Jeroen Krabbé. A produção utiliza-se, como trilha sonora, de temas musicais de compositores barrocos como Riccardo Broschi, irmão de Farinelli, Johann Adolf Hasse, Georg Friedrich Händel, Giovanni Battista Pergoli e Nicola Antonio Porpora. O filme de Gérard Corbiau focaliza a vida do mítico cantor italiano Carlo Broschi , que iniciou sua carreira ao lado do irmão, o pianista Riccardo Broschi. Fora aluno de Nicola Porpora e ganhou muito prestígio em toda a Europa. Aparece como um galã, de olhar triste e solitário, que encerrou carreira como cantor exclusivo do rei Felipe V da Espanha, que o contratou porque seu canto era a única coisa que o tirava da depressão. Na longa-metragem, Farinelli vive um embate com o compositor Häendel, que quase vai à falência, quando o astro rouba o público de seu teatro para o do concorrente.

Semiramis-Satan, personagem representado por uma mulher, Rosalinda Celentano, no filme de Mel Gibs The Passion of the Christ (2004), apresenta-se como genderless (sem gênero definido), portanto androginimamente.. Por sua vez, o personagem Switch, do filme de ficção científica The Matrix (1999), de Larry e Andy Wachovski, é descrito como andrógino; comenta-se que ela era, originalmente, um homem que, seqüestrado em Matrix, recuperou seu verdadeiro sexo. Já, no filme 300 (2007), de Zack Snyder, o rei Xerxes, interpretado pelo ator brasileiro Rodrigo Santoro, é um sedutor andrógino, quase uma drag-queen. No cinema de Hollywood, cumpre citar, ainda, Yentl, de 1983, dirigido e estrelado por Barbra Sreisand, que, baseado na peça de teatro, escrita, em 1975, por Leah Napolin e Isaac Bashevis Singer, versa sobre uma garota que desafia as tradições discutindo as leis e a teologia judaicas; para tal, disfarça –se de homem para poder continuar estudando.

No âmbito do vigoroso cinema brasileiro, fulgem dois filmes com o mesmo corpus andrógino: Rainha Diaba e Madame Satã.

Rainha Diaba (1971) foi dirigida por Antônio Carlos Fontoura, com roteiro de Plínio Marcos (1935-1999). A história gira em torno de um homossexual (Diaba, protagonizado pelo extraordinário ator Milton Gonçalves) responsável pelo controle do narcotráfico na região. Ao saber que um de seus homens pode ser preso, ele usa um bode expiatório, Bereco (Stepan Nercessian), para ser preso no lugar. A partir daí, a trama toma outros rumos. Revoltados com o autoritarismo do chefe, os comandados de Diaba rebelam-se, liderados por Catitu (Nelson Xavier), e resolvem utilizar Bereco para atrair a atenção de Diaba a fim de liquidá-lo. Mais do que uma “ode ao homossexualismo marginal”, como denunciaram seus detratores, Rainha Diaba é uma obra-prima do cinema brasileiro – antecipando, com raro brilho, por exemplo, o cinema do espanhol Almodovar -, inspirada na vida real de João Francisco dos Santos (1900 – 1976), mais conhecido como Madame Satã, personagem emblemático da vida noturna e marginal do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. Na ficção cinematográfica, Madame Satã comanda, de um dos quartos de um bordel no bairro boêmio da Lapa carioca, uma quadrilha responsável pelo controle de vários “pontos” de venda de droga. Sabendo que um dos seus homens de confiança está para ser preso, Diaba “fabrica” um novo marginal, para depois entregá-lo à polícia. Ela encarrega Catitu, seu homem de confiança, de fazer isto. Catitu decide que o alvo será Bereco , um garotão cheio de si que é sustentado por Isa (Odete Lara), cantora de cabaré. Catitu atrai Bereco para um série de crimes e faz dele um “perigoso bandido”. Acontece que Bereco passa a acreditar nesta “fama”. Diaba começa a ter seu poder diminuído quando Bereco pretende controlar a venda das drogas e Catitu, por sua vez, deseja aumentar seu poder. Espécie de Jean Genet (1910-1986) nos Trópicos, o protagonista foi fichado, na ditadura Vargas, como “pederasta”, tinha gingado de capoeirista e voraz apetite sexual, estabelecendo, “relações maternais com o séquito de outras moçoilas, que a protegem como os aprendizes à mestra. Diaba é criminosa nata: aplica mão de ferro para garantir a qualidade dos serviços à população mas, por outro lado, preocupa-se em cozinhar quitutes para a marginália gay que o cerca, apavorado que estava com os traidores que tentavam acabar com sua autoridade empresarial”.

Já, em Madame Satã (2002), de Karim Ainouz, estrelado por Lázaro Ramos, Sacha Amback, Marcélia Cartaxo, Flavio Bauraqui, Felippe Marques, fica diluída a questão, contemporaneamente internacional, do tráfico de drogas, realçando-se a imagem controversa e apaixonante do protagonista Negão/Neguinha. Madame Satã retrata um personagem carnavalesco, que, reinventando-se a si mesmo, transgride e resiste para sobreviver como marginal. Luta para auto-afirmar-se, fugindo da clandestinidade e do silêncio, sendo capaz de, num piscar de olhos, passar da mais cruel violência à mais emocionante ternura: combina, assim, sua dupla personalidade, ao mesmo tempo feminina e delicada, masculina e violentamente destrutiva. Eis um espelho anamorfósico do herói ou, melhor dizendo, anti-herói, porque carrega os estigmas de ser analfabeto, negro, homossexual e pobre. Arlequim modernista, poliedro com muitas identidades, Proteu marginal, explora, segundo suas conveniências, sua faceta de gângster, pícaro orgulhoso, pai de sete filhos adotivos, estrela de cabaré, rainha do carnaval carioca, amante apaixonado ou assassino frio. Recriou, de maneira andrógina, o mito de Madame Satã, nome do personagem que o fascinava no filme homônimo (Madam Satan), de 1930 (época da boemia da Lapa), de Cecil B. De Mille 1881-1959). O apelido de João Francisco dos Santos surgiu em 1942, quando, brincando no bloco carnavalesco “Caçadores de Veados”, ele se inspirou, para fantasiar-se, no personagem do cineasta estadunidense. Frise-se que, no Brasil, “veado” é o termo pejorativo para homossexual, não se sabendo, ao certo, a origem desse insulto, que viria ou do animal, que corre muito, como os “veados” corriam da polícia, ou do adjetivo “des-viado”; configura, assim, um tremendo paradoxo o nome do bloco carnavalesco onde Madame Satã foi “batizado”.

Uma outra categoria sexual, aparentada à androginia, é a dos castrados ou, em termos eruditos, castrati, nome pelo qual eram conhecidos os cantores masculinos que, a fim de terem preservada, ainda na fase adulta, a tessitura vocal da infância (cuja extensão vocal é quase idêntica à das tessituras vocais femininas, sejam de soprano, de mezzo-soprano ou de contralto), eram submetidos a uma operação cirúrgica de corte dos canais provenientes dos testículos, obstruindo a chamada “mudança de voz”. A prática de castração de jovens cantores teve início no século XVI (tendo surgido a partir da necessidade de vozes agudas nos grupos corais das igrejas da Europa Ocidental, já que a Igreja Católica Apostólica Romana não aceitava mulheres no coro de suas igrejas), atingindo seu auge nos séculos XVII e XVIII; nas óperas do compositor barroco alemão Georg Friedrich Handel (1685-1759), por exemplo, o papel do herói era freqüentemente escrito para castrato. Muitos dos rapazes que eram submetidos à castração eram órfãos ou abandonados; em Nápoles, recebiam a sua instrução em conservatórios pertencentes à Igreja, onde lecionavam músicos de renome. Algumas fontes referem que muitas barbearias napolitanas tinham, à entrada, um dístico com a indicação “Qui si castrano ragazzi” (“Aqui se castram rapazes”). Na segunda metade do século XVIII, com a chegada do verismo na ópera, a popularidade dos castrati entrou em declínio, sendo substituídos por contratenores e sopranos.

No livro Cry to heaven (1982), Anne Rice descreve a vida de castrati italianos, cantores de ópera, na sociedade do século XVIII, rapazes que foram adulados por multidões, como hoje o são os ídolos pop, objetos de paixões de homens e mulheres, mas que não deixavam de ser considerados apenas como meios-homens (ou meio-humanos).

A imagem moderna do andrógino enquadra-se intensamente, por exemplo, nas figuras femininas dos Pré-Rafaelitas, irmandade fundada, no ano de 1848, por um grupo de jovens, ligados à Royal Academy de Londres – John Everett Millais (1829-1896), William Holman Hunt (1827-1910) e Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) – e na arte decadentista do austríaco Gustav Klimt (1862-1918).

Por obra e graça feliz do Acaso, o maior de todos os deuses, segundo Nietzsche (1844-1900), tomo conhecimento, enquanto elaboro, prazerosamente, este verbete, de La fécondité, mythe de l’androgyne – Mémoire pour le Diplôme National des Beaux Arts, redigido, em 1985, no Institut National des Arts, em Abidjan, pela ceramista brasileira Evelyn Kligerman, que declara: “Mes sculptures allient les forces des deux sexes – féminin et masculin – en même temps. Je cherche à donner la force que je sens dans ces symboles de vie, et aussi à faire une synthèse de ces symboles, en les mélangeant dans le même espace” (p. 2). Essa originalíssima monografia final de curso inaugura-se com o poema infra da também brasileira Roseana Murray, que emblema, em mínimas palavras, toda a mitologia do andrógino:

Fécondité

Nous sommes la lune et le soleil

Les énigmes des étoiles

Nous sommes le sel de la mer

Et la blancheur du sable

 

Nous sommes le crépuscule et les nuages

Les oiseaux qui habitent le vent

Et en même temps

Nous sommes la faim et la nourriture

Et la terre et ses entrailles

Nous sommes un homme et une femme.

Como a fecundidade da androginia, a Literatura de todos os tempos tem abordado, com felicidade, o tema do andrógino. Na literatura romântica, faz-se uma nova visitação do mito da androginia, sobretudo através de Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), que, em Fausto (1775), considera a androginia “como um modelo arquetípico da alma humana”, que busca, através da completude, a identificação com a perfeição, vale dizer, com a divindade.

A cultura finissecular também se deixou fascinar pelo mito do andrógino; o modelo decadentista acha-se no mestre de Baudelaire, Théophile Gautier (1811-1872), que, em Mademoiselle de Maupin (1835), traz ressonâncias de As you like it (1595-1601), de Shakespeare (1564-1616), peça, aliás, que estava sendo encenada quando, na narrativa do escritor-dândi francês, o enigma Théodore/Madeleine começava s se desvendar. A protagonista de Gautier faz o papel da Rosalinda do bardo inglês, causando espanto em d’Albert e em Rosette, que lhe faziam a corte, sem saberem sua real identidade sexual (p. 217). Emblema do Decadentismo, o andrógino figura na “bíblia” huysmaniana, quando o texto narra o episódio de Miss Urânia, “uma americana de corpo bem-feito, de pernas nervosas, músculos de aço, braços de ferro”, com que des Esseintes, o protagonista, deseja trocar de papel sexual numa relação amorosa, sonho frustrado, porque não existia, no corpo da parceira cobiçada às avessas, “a transmutação das idéias masculinas” (MUCCI, 1994, p. 136).

Quase um manual da androginia, S/Z, livro de Roland Barthes (1914-1980), trata, com acurada análise estrutural e semiológica, o conto Sarrasine (1830), de Balzac (1799-1850); se o andrógino emblema a completude do ser humano, o olhar do semiólogo francês recorta em cinco códigos, ou vozes (hermenêutico, sêmico, simbólico, proaierético e cultural), formando uma rede de significações, o texto balzaquiano; também é fragmentada em “lexias” a análise barthesiana. Ao paradoxo da análise estruturalisto-semiológica opõe-se o oxímoro que a androginia figura. Tomando o “eixo da castração”, Barthes retoma o fascínio do arquétipo do andrógino, encarnado em Zambinella, cantor de ópera castrado, por quem Sarrasine, escultor da beleza, se apaixonara. Num jogo semiológico entre as duas letras em fricção, “S” (de Sarrasine) e “Z” (de Zambinella), Barthes ilumina a questão do signo, ambíguo, invertido, à rebours, mas o mesmo, de que o andrógino é ícone privilegiado.

No campo úbere e solene da Poesia universal, a obra do lisboeta Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) vinca-se, para além de uma vertiginosa e fascinante sinestesia, por uma indefinição, uma indeterminação de gênero, “un no sé qué (barroco como a poesia de San Juan de la Cruz), fulgurantes na primeira e última estrofes do poema “Quase”:

Um pouco mais de sol – eu era brasa.

Um pouco mais de azul – eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

(…)

Um pouco mais de sol – e fora brasa,

um pouco mais de azul – e fora além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

(p. 182-183)

Travessões, reticências, tempos verbais imprecisos remetem à ambigüidade andrógina. Outro poema, belíssimo, joga o leitor na vertigem do espelho da androginia:

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro. (p. 196).

Amigo íntimo de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (1888-1935) lavrou, perenemente, em “Eros e Psique”, de 8-7-1933, a beleza da poesia, onde ocorre o enlace perpétuo entre Anima (a Princesa) e Animus (o Infante):

…E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. (Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.

Na literatura brasileira, texto instigante de um País vertiginosamente maneirista, a androginia não poderia, jamais, estar ausente. Tomemos como um primeiro exemplo a Cintura Fina, personagem do romance Hilda Furacão (1991), do mineiro Roberto Drummond (1933-2002); esse romance foi, em 1998, transformado, com imenso êxito, em minissérie de Rede Globo de Televisão.

Mas o signo por excelência da androginia literária, no quadro da literatura da Terra Brasilis, encontra-se no arrebatador personagem Diadorim, de Grande sertão: veredas (1956), do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967). Riobaldo, o protagonista, experimenta uma grande confusão mental face ao fato de sua súbita paixão por um outro homem; como um jagunço de seu jaez poderia sentir uma atração irresistível por um macho? O equívoco, a paixão dúbia, o desejo carnal, a angústia, a obsessão por um amor impossível torturam-lhe a alma rude. O ser rosiano – o sertão de Guimarães Rosa – é o locus non-amoenus de toda a angústia da condição humana, inclusive quanto ao “entre-lugar” dos sexos, que a figura sedutora de Diadorim, andrógino sertanejo, Joana d’Arc no sertão mineiro, alegoriza esplendidamente, remetendo, inclusive, à saudade da união e da totalidade, perdidas na noite dos tempos.

 

Bibliografia:

 

BARTHES, Roland. Le système de la mode (1967). BARTHES, Roland. S/Z (1970). CENTENO, Yvette. Literatura e alquimia (1987). D’ANNUNZIO, Gabriele. Il piacere (1984). DURST, Rogério. Madame Satã : com o diabo no corpo (2005). GAUTIER, Théophile. Mademoiselle de Maupin (1966). GOETHE, Johan Wolfgang. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. (1981). HUYSMANS, J-K. Às avessas. Trad. José Paulo Paes (1987). KLIGERMAN, Evelyn. La fécondité, mythe de l’androgyne (1985). MIRCEA, Eliade. Mefistófeles e o andrógino. Trad. Ivone Castilho Benedetti 1991). MUCCI, Latuf Isaias. A poética do Esteticismo (1993). MUCCI, Latuf Isaias. Ruína & simulacro decadentista: uma leitura de Il piacere,d e D’Annunzio (1994). PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. (1982) PAZ, Octavio. La doble llama (1993). PESSOA, Fernando. Obra poética (1983). PLATÃO. O banquete. Trad. Albertino Pinheiro (1975). RICE, Anne. Cry to heaven (1982). ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas 17.ed. (1984). SÁ-CARNEIRO. Obra poética completa (1991). WOOLF, Virginia. Orlando, a biography (1985).