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Relato, geralmente breve, com o objectivo de motivar o riso. Por ser uma forma de expressão oral por excelência, o êxito de uma anedota depende também em muitos casos dos dotes oratórios do seu intéprete, já que a entoação investida no relato deverá ser tanto quanto possível original e até teatralizada. Caso contrário, quer a entoação seja insípida quer a matéria seja pouco original, a anedota dificilmente cumprirá o objectivo de provocar o riso. É o caso dos textos muito conhecidos, como: “O que é que diz o fósforo para a caixa?” – “Quando me roço por ti, perco a cabeça.”. Esta relação do relato da anedota com a sua recepção foi estudada por Freud, em Witz und seine Beziehung zum Unbewussten (1905), onde observa que, porque ninguém ri de uma anedota contada por si próprio, somos impelidos a contá-la a um interlocutor, cujo riso nos convencerá de termos apresentado uma boa anedota. O riso do interlocutor completa o prazer do relator que, de alguma forma, se encontra dependente dessa relação para poder ser libertado. A teoria freudiana sobre as anetodas prescreve que a técnica que assiste à sua construção e o seu próprio conteúdo assemelham-se à actividade que tem lugar nos sonhos: a anedota e o sonho re-presentariam um desejo inconsciente ou reprimido.

A matriz discursiva de uma anedota está sempre sujeita a grandes variações, dependendo dos grupos por onde circula e da imaginação criativa dos seus intépretes. Talvez em mais nenhum outro tipo de texto seja tão pertinente falar de estética da recepção como no caso da anedota, pois, sem o leitor, sem a adesão (silenciosa ou em sonoras gargalhadas) do interlocutor, uma anedota não se actualiza. Porque em muitos casos é a memória colectiva ou individual que funciona como autora dos textos anedóticos, torna-se difícil falar de copyright neste campo de expressão literária, até porque a etimologia da palavra anedota (do gr. anékdota) nos remete para o não publicado, para o privado (mesmo entre os latinos, a fórmula utilizada – fábula – tem a mesma condição de “coisa não publicada”). Conforme o nível de língua utilizado, assim se classifica uma anedota como “picante” ou “séria”. No primeiro caso, a anedota trata quase sempre de matéria sexual e pode incluir o calão mais característico. A aceitação de um ou outro tipo depende invariavelmente do grau de convivência ou intimidade com quem se partilha o relato.

A anedota adapta-se rapidamente aos principais acontecimentos sociais de uma comunidade, actualizando os seus factos mais relevantes, sobretudo quando se destacam pela negativa: um insucesso desportivo, um deslize político grave, a revelação de um facto íntimo relacionado com uma figura pública, etc.

Em termos estilísticos, uma anedota não dispensa certas figuras de pensamento e de construção que se baseiam no exagero e no paradoxo, mas sobretudo nas várias formas de ambiguidade.

Embora uma anedota não exclua estratos sociais, atingindo todos de igual maneira, em muitas civilizações, certos indivíduos e certas comunidades possuem um anedotário característico que tem a ver com o conjunto de preconceitos interiorizados pelo grupo. No primeiro caso, indivíduos podem ser alvo de uma falsa autoria e protagonismo para que não contribuíram directamente, como acontece com as anedotas “de Bocage” ou “de Samora Machel”. No segundo caso, grupos como os alentejanos em Portugal e os baianos no Brasil, são exemplos bem conhecidos. Em relação aos primeiros, o perfil tradicionalmente atribuído aos alentejanos – cujos principais traços psicológicos serão, alegadamente, a indolência e a estupidez – tem motivado um anedotário bastante rico: “O que é que faz um alentejano debaixo de uma macieira, com uma maça na boca?” – “Espera que caia outra maçã, para empurrar aquela para dentro.”. Não raro, estes grupos que são alvo de um grande protagonismo no anedotário nacional, desenvolvem um outro anedotário de contra-reposta, por exemplo: “O que é que fazem sete alentejanos em frente de um lisboeta?” – “Uma pega.”. Esta estrutura de pergunta/resposta que é característica de muitas anedotas é partilhada por esta forma de expressão com a adivinha.

 

Bibliografia:

 

A. Machado Guerreiro: Anedotas: Contribuição para um Estudo (1986), Livro de Anedotas: Da Inocente à Indecente (1995); António Sala: Dicionário de Anedotas (7ªed., 1987); Arthur Asa Berger: “What’s in a Joke? – A Micro-Analysis”, Elementa, 1:3 (1994); Barbara C. Bowen: “Two Literary Genres: The Emblem and the Joke”, Journal of Medieval and Renaissance Studies (Durham), 15:1 (1985); Carl Hill: The Soul of Wit: Joke Theory from Grimm to Freund (1993); Christopher Lund: Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista (1980); Herman José: As Anedotas do Herman (2ªed., 1987); Hervé Nègre: Dictionnaire des Histoires Drôles (1973); João Fontalva: Anedotas e Ditos de Espírito de Toda a Gente (7ª ed., 1993); Luis Aguirre Prado: Antología de Anécdotas (1967); Lutz Rohrich: “Joke and Modern Society”; Pack Carnes: “The Dynamics of the Joke as a Conversational Genre”, in Storytelling in Contemporary Societies, ed. por Lutz Rohrich e Sabine Wienker Piepho (1990); Rachel Giora: “On the Cognitive Aspects of the Joke”, Journal of Pragmatics (Amsterdão), 16:5 (1991); Sigmund Freud: Witz und seine Beziehung zum Unbewussten (1905) / Os Chistes e a sua Relação com o Inconsciente (1977).