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Qualquer forma de oposição ou hostilidade para com o teatro, seja parcial ou por inteiro.

Sentimentos de anti-teatralidade são quase tão antigos quanto o teatro em si. O primeiro registo de um comentário anti-teatral é escrito por Platão em A República, que recusa qualquer arte de caráter mimético, afirmando que “todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição de inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza” (p. 449).

A imitação em si é vista como uma característica redundante, exemplificada com a profissão de médico em que o conhecimento da verdade é útil, enquanto saber imitar a linguagem de um médico, como fazem os poetas, é inútil. Este mesmo argumento é parcialmente aproveitado mais tarde pela Igreja que assume a falsificação de identidade por parte dos atores como um pecado. Para além disso, a interpretação de papéis de seres corruptos (vilões ou personagens imorais ou com falta de ética) são vistos também como porta de entrada para a corrupção do próprio ser.

Do ponto de vista religioso, é importante realçar o transformismo, que prevaleceu como prática comum no teatro até o século XVII, como uma afronta a Deus por duas razões, a primeira sendo a tentativa de melhor a Sua criação, a segunda encontrada na bíblia sob a forma do seguinte versículo: “A mulher não usará roupas de homem, e o homem não usará roupas de mulher, pois o Senhor, o seu Deus, tem aversão por todo aquele que assim procede.” (Deuteronómio 22:5)

Mais tarde, na Comédia de Restauração, que surge no fim do século XVII na Inglaterra, as mulheres passam a poder pisar o palco, e o pecado do transformismo é substituído pela imoralidade, já que a sua presença é acompanhada de uma exibição corporal mais explícita. Para além disso, dado a já fraca reputação do setor performativo na altura, essa imoralidade era acrescida para as atrizes que se viam obrigadas a trabalhar também como cortesãs para se sustentarem.

Do ponto de vista religioso, resta realçar que, embora apresente argumento anti-teatrais como supramencionado, a Igreja era mais complacente relativo a peça de teatro que representam episódios bíblicos, de tal forma que a representação teatral é um costume nas cerimónias religiosas da Idade Média. Embora sejam retiradas desse meio no início da Idade Moderna, a Igreja mantém a sua posição, apoiando as representações de episódios bíblicos e condenando quaisquer outras peças.

Quanto ao público, os anti-teatralistas das épocas discursam sobre a imoralidade proveniente do prazer, prazer esse que se transforma em vício. Existe também uma preocupação da influência que uma peça de teatro pode ter no público, julgando que se o público assiste a violência, então irão querer praticar essa violência. Este tipo de discurso deriva de um ponto de vista psicológico sobre a representação teatral muito presente ao longo de toda a história do cinema e da televisão, especialmente em reflexões sobre as consequências de expor crianças e jovens a cenários de violência.

Na sua obra, The Antitheatrical Prejudice, Jonas Barish individualiza os pontos de vista anti-teatralistas em pensadores, filósofos e críticos (por exemplo Stephen Gosson, Phillip Strubbes e William Prynne), mas Kent Lehnhof relembra que a ideologia anti-teatral não pertence apenas a indivíduos. A anti-teatralidade é representativa de uma ideologia cultural da sua era.

 

(…) o que separa um participante de um não participante não é um conjunto de ideologias diferentes, mas sim avaliações variáveis dos prazeres e benefícios da atividade em comparação com os seus riscos. Não acho que os espectadores do início da Idade Moderna imaginavam que estavam protegidos do perigo – apenas que os riscos que corriam eram aceitáveis e/ou controláveis. Nesse sentido, o que diferencia o anti-teatralista é uma abundância de cautela, não uma ausência de razão. (Lehnhof, p. 245, minha tradução)

 

Em suma, argumentos anti-teatralistas podem assumir cariz filosófico, religioso, moral, psicológico, cultural, político, estético, etc., e refletem o jogo de poder social, cultural e político do seu tempo, localizando-se por vezes no epicentro de movimentos e conflitos culturais, como exemplificado por Lisa Freeman no seu artigo sobre a receção crítica da peça Douglas (1756) escrita por John Home.

 

Bibliografia

John Barish. (1985). The Antitheatrical Prejudice. University of California Press; Kent R. Lehnhof. (2016). “Antitheatricality and Irrationality: An Alternative View”, Criticism, 58(2), 231-250; Lisa A. Freeman. (2002). “The Cultural Politics of Antitheatricality: The Case of John Home’s Douglas”, The Eighteenth Century, 43(3), 210-235; Platão. (2001). A República (9ª ed.). Trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian.