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Termos de uma oposição central que toma como referência as divindades superiores da Antiguidade grega: Apolo e Diónisos.

Os órficos foram os primeiros a ensinar que todos os deuses se resumiam a um só, embora existisse uma dupla crença em duas entidades universais: por um lado, Diónisos, aquele que apagava toda a mancha de pecado; por outro lado, Apolo, aquele que libertava do corpo, uma vez que todo o corpo é um túmulo. Em A Origem da Tragédia (1872), Nietzsche retoma esta dualidade, demonstrando que o apolíneo e o dionisíaco são conceitos antitéticos, mas de uma espécie dialéctica necessária à existência de todos os homens: “a evolução progressiva da arte resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera a vida no meio de lutas que são perpétuas e por aproximações que são periódicas.” (A Origem da Tragédia, 5ªed., trad. de Álvaro Ribeiro, Guimarães Ed., Lisboa, 1988, p.35).

Nietzsche tentou mostrar que a transcendência extática dionisíaca foi tão necessária aos helénicos como o melífluo culto apolíneo. Chega inclusive a retratar Diónisos como o mais impressionante símbolo do génio humano, sempre aspirando à transmutação, no que se opõe à auto-capitulação eternamente sofredora dos cristãos em sinal de mesura servil para com a divindade em troca de segurança e protecção.

Apolo e Diónisos são os dois deuses superiores da epifania principal celebrada em Delfos. Parece terem formado uma aliança de soberania já que ambos são idolatrados, surgindo na vida extraordinária dos antigos gregos como o eterno conflito entre a noite e o dia, o claro e o escuro, a água e a terra, o ar e o fogo. Como forças contrárias, equivalem de certa forma à oposição Yin/Yang, se ao apolíneo fizermos corresponder o princípio Yang, sobretudo nas suas qualidades de celeste, penetrante, quente e luminoso; e ao dionisíaco o princípio Yin, como absorvente, frio e obscuro. No pensamento oriental, as duas forças ou princípios complementares abrangem todos os aspectos e fenómenos da vida tal como acontece no pensamento helénico com o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco. Mas tais forças não são hoje, para a crítica pós-freudiana, tidas por meras oposições: Apolo não foi simplesmente o Yang de Diónisos, mas antes um estado superiormente desenvolvido do estado dionisíaco. Nietzsche trata a dualidade do espírito grego apenas no campo conceptual, nunca em termos de experiência efectiva.

Exemplo de poeta apolíneo é a portuguesa Sophia de Mello Braeyner Andresen, cuja poesia preserva e louva o mar, o Sol, as ruas, os caminhos, a música. Sophia segue Apolo porque este é o deus da luz, segundo a herança egípcia, pelo que a claridade imagética se tornou um símbolo da essência apolínea. Contudo, a divindade da luz por excelência também governava o mundo interior da imaginação. A função de Apolo era a de conceder forma e limite a este mundo, onde, por toda a parte, devia receber homenagem enquanto chefe das musas, tal como é introduzido por Sophia em “Apolo Musageta” (Poesia I): “Eras o primeiro dia inteiro e puro / Banhando os horizontes de louvor” (Obra Poética I, Cículo de Leitores, Lisboa, 1992).

Além disso, Apolo assegura a harmonia ou “medida suprema” do kosmos, que é afinal a sua mais importante característica, conforme viu Nietzsche: “à imagem de Apolo não deve faltar essa linha delicada, aquela que a visão apercebida no sonho não poderá transpor sem que o seu efeito se torne patológico, porque então a aparência nos dará a ilusão de uma realidade grosseira: quero dizer, essa ponderação, essa livre serenidade nas emoções mais violentas, essa serena sabedoria do deus da forma.” (Ibid., p.38).

Portanto, a ordem apolínea e o refreamento emocional constituem, no poema de Sophia: “… o cânon eterno / Erguido puro, perfeito e harmonioso / No coração da vida e para além da vida”. Fica garantida a inteireza da individualidade humana no meio do caos e do terror que nos assaltam durante a vida. Apolo dirá sempre respeito ao poder criativo do homem para produzir imagens, tal como nos sonhos ou nas artes visuais. Ele é, por este motivo, a imagem divina do que Nietzsche chama, retomando as palavras de Schopenhauer, principium individuationis: “… poder-se-ia também reconhecer em Apolo a imagem divina e esplêndida do princípio de individuação, cujos gestos e olhares nos falam de toda a sabedoria e de toda a alegria da ‘aparência’, ao mesmo tempo que nos falam da sua beleza.” (ibid., pp.38-39).

O ímpeto dionisíaco nascerá da violação deste princípio de individuação, provocando o terror e o êxtase. Uma vez dilacerado o kánon harmonioso, o mundo onde o homem supera os obstáculos entre ele e a sua própria natureza toma a forma da unidade primordial. O estado psicológico primário da personalidade dionisíaca consiste fundamentalmente em: um princípio violento chamado sparagmos (“fúria”, “convulsão espamódica”), que nos cultos a Diónisos era essencialmente um êxtase de excitação sexual e afirmação da virilidade humana; e um objectivo último chamado ekstasis (literalmente, um “estar-fora-de-si”; “êxtase”, “delírio místico”), um estado de embriaguez total que conduz ao esquecimento de si próprio. A ekstasis (ou esse estar-fora-de-si-próprio) também é conhecida na religião dionisíaca como mania, sempre suplicada e gozada. A arrebatação dionisíaca era fundamentalmente patológica e tem sido definida como um estado de alucinação e alienação (alienatio mentis). A mania era o mais importante aspecto da religião dionisíaca e passa a significar a elevação do devoto a um estado superior de arrebatamento tal a que convinha o nome de divina loucura, que Platão, no Fedro, se encarregou de dividir em quatro tipos: profética (Apolo), ritual (Diónisos), poética (Musas) e erótica (Eros e Afrodite). No tipo de loucura divina ritual, o indivíduo era sublevado pela divindade, ultrapassando o limiar da realidade por um momento de embriaguez metafísica. Diónisos é essencialmente um deus da hilaridade, mas de uma espécie de hilaridade que é acessível a todos os veneradores, incluindo os escravos. Daí chamar-se-lhe o Libertador, o deus que permite sair de nós mesmos e conquistar a liberdade. É verdadeiramente um deus popular ou um deus das multidões populares. No fim, o arrebatamento e a embriaguez colectiva proporcionará a sensação de se ter participado da própria natureza do deus. A alma estava em ekstasis, fora do corpo, e o possesso estava preenchido pelo deus, em enthousiasmos, um estado de última inspiração divina, que fazia do devoto um entheos (“cheio do deus”).

A expressão do enthousiasmos frenético, os rituais de alucinações, a excitação mental colectiva, a dança da inquietude, o comportamento furioso e histérico do entheos, tudo isto pode ser encontrado em poetas dionisíacos como o Camões aventureiro ou o Bocage espirituoso, como o decadentista Baudelaire ou o boémio Dylan Thomas, como o dada André Breton ou o futurista Almada Negreiros. A estética de Álvaro de Campos, por exemplo, contém os ingredientes mais refinados do espírito dionisíaco, desde o “sentir tudo de todas as maneiras” até ao que podemos chamar a ekstasis dionisíaca do Eu, como neste passo da “Ode Marítima”: “Estar convosco na carnagem, na pilhagem! / Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques! / Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós! / Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas, / Ser-vos as vítimas – homens, mulheres, crianças, navios -, / Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse, / Não era só ser concretamente vosso acto abstracto de orgia, / Não era só isto que eu queria ser – era mais que isto o Deus-isto! / Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrá­rio, / Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue, / Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa, /   Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade / Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias! (Fernando Pessoa, Obra Poética, vol.2, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987, p.172).

Isto é rigorosamente essa ekstasis que significa “estar-fora-de-si-mesmo”. A ekstasis atinge-se pelo desejo de querer ser “mais que isto o Deus-isto!”, que exige um deslocamento da mente extática para um nível de não-existência, que se pode até aproximar da esquizoidia. O “Deus dum culto ao contrário / Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue” pode funcionar como um retrato fiel de Diónisos. E todas as impressões anotadas no poema revelam um espírito ardentemente dionisíaco que se devota a imagens de cruelty and lust, de uma “fúria imaginativa” capaz de realizar os “desejos de identidade” do Poeta. Ao comentar a “Ode à Alegria” de Schiller, onde encontrou idêntica magnificação dionisíaca, Jung observou que se trata de “intoxicação no mais alto sentido da palavra” (“The Apollonian and the Dionysian”, in Psycho­logical Types, The Collected Works, vol.6, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1991, p.144), o que se pode aplicar na perfeição aos versos de Álvaro de Campos.

O caso de Pessoa serve ainda para ilustrar um  tipo híbrido de poeta dionisíaco-apolíneo, pois Pessoa, para além do dionisíaco Álvaro de Campos, contém ainda um exemplo acabado de poeta apolíneo que dá pelo nome de Ricardo Reis: “Pudesse eu suspender, inda que em sonho, / O Apolíneo curso, e conhecer-me, / Inda que louco, gémeo / De uma hora imperecível! (Obra Poética, vol.2, ed.cit., p.107).

 

Bibliografia:

 

C. G. Jung: “The Apollonian and the Dionysian”, in Psycho­logical Types, The Collected Works, vol.6 (1991); Camille Paglia: Sexual Personae – Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson (1991); Carlos Ceia: “Apolo que floresce e Diónisos que passa: O espírito grego na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen”, Dedalus, 5 (1995); Charles Segal: Dionysiac Poetics and Euripides’ «Bacchae» (1982); E. R. Dodds:Os Gregos e o Irracional (Lisboa, 1988); F. Nietzsche: A Origem da Tragédia (5ªed., Lisboa, 1988); H. Jeanmarie: Dionysos – Histoire du Culte de Bacchus (1978); Jane Ellen Harrison: Themis – A Study of the Social Origins of Greek Religions (1962; 1ªed., 1912); Karl Kerényi:Os Deuses Gregos (São Paulo, 1993); Maria Daraki: Dionysos (1985); Walter Burkert, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica (Lisboa, 1993).