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Interpelação, geralmente exclamativa, a um interlocutor em particular, vivo ou morto, presente ou ausente, real ou fantástico. Muito próxima da ênfase, distingue-se desta pela necessidade de um interlocutor sem o qual não tem significado. Também não deve ser confundida com a invocação, embora a possa integrar, porque é mais breve. O destinatário da apóstrofe pode aparecer no princípio ou no fim da frase, dependendo da ênfase procurada, não sendo obrigatório que o discurso seja interrompido, como erroneamente algumas definições prevêem para esta figura. A situação mais comum é a que remete a apóstrofe para um destinatário ausente que se invoca directamente. Apóstrofe clássica é a invocação das Tágides n’Os Lusíadas: “E vós, Tágides minhas, pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente” (I, 4). A suposta entidade ausente (“Tágides”) é convocada para uma situação que a traz para a presença do Poeta. Esta acção de presentificação caracteriza apóstrofe, como viu Barbara Johnson, trata-se de “a form of ventriloquism through which the speaker throws voice, life, and human form into the addressee, turning its silence into mute responsiveness.” (“Apostrophe, Animation, and Abortion”, in Contemporary Literary Criticism: Literary and Cultural Studies, ed. por R. Con Davis e R. Schleifer, 3ª ed., Longman, Nova Iorque e Londres, 1994, p.216). Barbara Johnson analisa dois poemas apostróficos exemplares: “Moesta et Errabunda”, de Baudelaire, e “Ode to the West Wind”, de Shelley, para demonstrar que este mecanismo retórico manipula a relação eu/tu ao ponto de proceder à animização de seres inanimados, que são convocados para uma presença e, em muitos casos, antropomorfizados. Se etimologicamente, apóstrofe designa um “afastamento” ou “desvio”, na prática, quando aplicada e dirigida, ela realiza uma aproximação necessária. (Na retórica antiga, a noção de “desvio” era válida, porque ao orador era permitido “desviar” a destinação do seu discurso do juiz para uma interpelação directa do adversário. Assim o faz Cícero na Oratio catalinaria, que, aliás, ficou como modelo de apóstrofe violenta e incisiva.) A animização/ antropomorfização para onde a apóstrofe é levada ficou como imagem de marca de certas épocas, por exemplo, nas apóstrofes medievais das cantigas de amigo (“Ai flores, ai flores do verde pino”, de D. Dinis) e na poesia romântica (“Ó rosa vermelha, / Bem me podes acudir”, “Rosa sem espinhos”, in Folhas Caídas, de Almeida Garrett).

Na oratória barroca, o recurso é amplamente explorado, não apenas segundo as regras da reverência clássica, mas também de acordo com as estratégias de persuasão que obrigam ao despertar constante da atenção dos interlocutores. Deus e o leitor são talvez as duas entidades mais apostrofadas na literatura e, quase sempre para cumprir uma estratégia discursiva. Embora o interlocutor privilegiado nas apóstrofes do Padre António Vieira seja o próprio Deus – “Mas pois vós, Senhor, o que quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido.” (Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda, Obras Escolhidas, vol.1, Sá da Costa, 2ª ed., Lisboa, 1996, p.60) -, podemos considerar estas interpelações como meramente estratégicas, pois o que importa ao orador é impressionar o público e é a este que tem que dirigir as mais sentidas palavras: exemplos não faltam na sermonística de Vieira, desde apóstrofes ao rei (“Divina e humana Majestade, Rei dos reis, Senhor dos exércitos!”, Sermão pelo Bom Sucesso das Nossas Armas, idib., p.224 – de notar que estas são as primeiras palavras do sermão, pelo que não faz sentido definir a apóstrofe como uma “interrupção” obrigatória do discurso), até a simples interpelações aos seus ouvintes (“Estas são, Senhores meus, as minas de que Cristo hoje subiu tão rico do centro da terra”, in Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa, 1954, p.289). Na retórica clássica, a presença desta figura completa-se geralmente com os recursos amplificantes da interrogação e da exclamação.

Para além das exigências clássicas da epopeia e da utilização normalizada na oratória e na poesia clássica, a apóstrofe pode suportar um efeito humorístico, como no Auto da Barca do Motor Fora da Borda (1966), onde vemos o arrais vicentino dirigir-se ao ausente Gil Vicente, não tendo reconhecido o cenário da acção: “Ah mestre, que não te conheço a barca!”. A poesia modernista introduziu novas possibilidades para o uso da apóstrofe, permitindo utilizá-la quer com efeito parodístico, anulando toda a eloquência, quer com efeito de empolgamento do discurso, da euforia do progresso, por exemplo, como na abertura da “Ode triunfal” de Álvaro de Campos: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!”.

 

Bibliografia:

 

Adrian Room: “Axing the Apostrophe”, English Today, 5, 3 (1989); Barbara Johnson: “Apostrophe, Animation, and Abortion”, Diacritics, 16, 1 (1986); Irene Kancades: Narrative Apostrophe: Case Studies in Second Person Fiction (1991); Günter Starke: “Apostrophshwierigkeiten”, Sprachpflege und Sprachkultur, 40, 1 (1991); Jacques Migozzi: “La theatralisation de l’apostrophe dans Le Bachelier”, Revue d’Études Vallesiennes, 16 (1993); James D. Fernandez: Apology to Apostrophe: Autobiography and the Rhetoric of Self-Representation in Spain (1992); Jonathan Culler: “Apostrophe”, in The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction (1981); J. Douglas Kneale: “Romantic Aversions: Apostrophe Reconsidered”, in The Mind in Creation: Essays on English Romantic Literature in Hounor of Ross G. Woodman (1992).