Arte poética é expressão que remete, em primeiro lugar, para Aristóteles (384-322 a. C.) e para o seu conhecimento tratado sobre a poesia. Ao que se pensa e julga saber, este tratado, composto na parte final da vida ao autor, revela do carácer acromático de importante parte do corpo textual aristotélico. Recorre, contudo, a um texto anterior, produzido em contexto muito mais aberto, o diálogo Dos Poetas, onde alguns dos motivos estruturadores da arte poética aristotélica, como a “imitação” ou a “catarse”, tinham sido já, ao que parece, visto que o diálogo se perdeu e só muito posteriormente foi reconstituído, expostos e desenvolvidos.
A Arte Poética de Aristóteles era, na sua origem, constituída por dois livros e não apenas por aquele que hoje conhecemos e a tradição nos legou e que passa por ser o primeiro dos dois. Tanto as paráfrases árabes do texto, da autoria de Avicena (séc. XI) e de Averróis (séc. XII), como a versão siriáca em que ambas se inspiram (séc. VII), de que resta hoje um fragmento, desconheciam já a existência do segundo livro da Poética. O carácter acroamático do texto, muito mais destinado ao esclarecimento de discípulos que ao manuseamento do público, explica, pelo menos em parte, o desaparecimento do livro, que versaria, ao que se sabe, a comédia, como o primeiro versa a tragédia.
A Arte Poética de Aristóteles, tal como hoje a conhecemos, divide-se em duas partes. A primeira desenvolve um conceito de poesia como imitação de acções , que se afasta, ou mesmo contrapõe, ao de Platão, para quem a poesia era narração e não imitação (cf. Livro III, A República). A arte poética em Aristóteles requer operadores directos, agentes ou personagens, enquanto em Platão exige (apenas) recitadores. A imitação aristotélica, processando-se por meios, objectos e modos diferentes, não se confunde, porém, com cópia ou reprodução fiel da realidade, carreando antes, pela percepção do geral a que filosoficamente aspira, criação autónoma e transfiguração heterogénea. A segunda parte da Poética, a mais extensa, estuda a tragédia, uma das espécies ou géneros da poesia dramática, e faz a comparação da tragédia e da epopeia, um género da poesia narrativa ou não-dramática.
Seria, contudo, flagrante injustiça ver apenas no texto de Aristóteles um códice técnico de dois géneros poéticos, a tragédia e a epopeia, como aconteceu durante muitos e muitos anos, onde sobressaem os do Renascimento com as suas paráfrases normativas, ou um sistema de elaboradas regras, capaz de constituir um cânone compositivo, seguro e perfeito. A Arte Poética de Aristóteles aparece-nos hoje, depois do romantismo e dos modernismos, não só como exemplo de rigor e fundamento de estudos clássicos, o que nunca deixou de ser, mas, sobretudo, como o primeiro texto que tentou com êxito compreender e problematizar a singularidade do fenómeno poético. O livro do estagirita dedicado à poesia tem o enorme mérito de ser um estudo empírico e descritivo, que parte quase sempre dos fenómenos para as leis e não destas para aqueles, o que lhe assegura uma perenidade invejável. Trata-
-se de uma poética generativa, se assim podemos dizer, e não normativa, dos textos poéticos.
Neste sentido, a reflexão aristotélica não terminou ainda; a arte poética continua viva e de excelente saúde. Se, por um lado, a Poética continua a ser indispensável para aqueles que queriam conhecer o funcionamento não da tragédia enquanto género universalmente válido, o que foi o erro das poéticas latinas e renascentistas, de Horácio a Boilaeu, mas da tragédia circunscrita ao tempo de Aristóteles, oq ue leva a aceitar que sem o estagirita os trabalhos sobre a tragédia de Wilamowitz ou de Nietzsche dificilmente poderiam ter sido escritos, por outro, o livro do grego mostra-se, em termos de teoria da literatura, o primeiro elo de uma cadeia que, até aos seus mais recentes desenvolvimentos, de Jakobson a Todorov, nunca o dispensou, até quando contra ele pensa, o que, diga-se, poucas vezes tem acontecido.
Entre nós, António Telmo, na linha de um neo-aristotélico como Álvaro Ribeiro, deu recentemente à estampa um livro chamado Arte Póetica (1963; 1993), onde se percebe a actualização, em termos de modernidade literária portuguesa, de Pessoa a Cesariny, da matriz aristotélica, e isso mesmo quando o autor, que pretende passar de uma filosofia especulativa a uma filosofia operativa, de tipo dramática, conduzindo o pensamento à linguagem e detectando nesta uma energia activa, nos lembra, por subrepção, as concepções linguísticas do Crátilo de Platão.
Augustus W. von Schlegel, “Lectures on the Dramatic Art and Literature”, in The Theatre of the Greeks, 1836, pp. 291-480; Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa (Prefácio de Álvaro Ribeiro), 1944; G. Genette, “Frontières du Récit”, in Figures II, 1969; T. Todorov, Poétique de la Prose, 1971; R. Jakobson, Question de Poétique, 1973; Aristóteles, Poética (Tradução, prefácio, Introdução, Comentário e Apêndices de Eudoro), 2ª. ed. rev. aumentada, 1986; António Telmo, “Possessos (Teoria daTragédia)”, in Arte Poética (2ª. Rev. aumentada), 1993.
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