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“Não pode haver nenhuma regra de gosto objectiva, que determine por meio de conceitos o que seja belo. Pois todo juízo proveniente desta fonte é estético; isto é, o sentimento do sujeito e não o conceito de um objecto é o seu fundamento determinante. Procurar um princípio de gosto, que fornecesse o critério universal do belo através de conceitos determinados, é um esforço infrutífero, porque o que é procurado é impossível e em si mesmo contraditório.” (Crítica da Faculdade do Juízo, I, 17). Kant refere-se assim à tentativa de definição do belo (Das Schöne), categoria estética ou expressão maior da estética, tradicionalmente tomada por “ciência do belo”. Por ser um conceito com enorme carga subjectiva e de aplicação universal, a sua definição é problemática desde a origem da reflexão estética. O primeiro texto especulativo sobre o belo (kalos), o Hípias Maior, atribuído a Platão, termina com a confirmação do provérbio “o que é belo é difícil”, pois os dois interlocutores, Sócrates e Hípias, não conseguiram chegar a uma definição satisfatória. Da mesma forma que termos como o amor, a justiça, o jogo, o bem e o mal, por exemplo, são indefiníveis no sentido em que não é possível determinar um critério de aplicação imediata, assim acontece com o conceito de belo. Kant, o primeiro filósofo a tratar da questão do belo de forma sistemática, contudo sem propor um método de reconhecimento, chama estética à parte da Crítica da Razão Pura que trata da sensibilidade, mas estuda o belo na Crítica da Faculdade o Juízo. Depois de Alexander Baumgarten (1714-1762), autor de Aesthetica, o que prevalece é uma elementar definição da estética como ciência do belo (da mesma forma simplista que se aceita a lógica como ciência da verdade e a moral como ciência do bem).

Na Antiguidade, o belo é tratado por Platão, Aristóteles e Plotino. O Hípias Maior é o diálogo que mais demoradamente se ocupa da definição do belo em si (auto to kalon), um traço que seja comum a todos os objectos supostamente belos. No Simpósio e no Fedro, o problema do belo concorre com o do amor. O Simpósio é em grande parte a procura de uma solução para a questão: “Eros é o amor do belo?”(204d). O amor é sempre um delírio (mania) que nos conduz à visão do belo sensível (“Somente a Beleza tem a ventura de ser mais perceptível e cativante!”, Fedro, 250d). Neste diálogo, Sócrates pergunta a Agatão: “Não achas que o belo é simultaneamente bom?” (201c). O diálogo não chega a ser conclusivo. Aristóteles, na Metafísica, chama já a atenção para a diferença entre o belo e o bem: o bem implica sempre acção e o belo pode ser encontrado nas coisas imóveis (1078a1). Aristóteles considera depois três formas superiores do belo: a ordem, a simetria e o limite, formas que a matemática demonstra especialmente. Como a simetria diga respeito fundamentalmente às artes plásticas, Aristóteles não a menciona na Retórica, onde volta ao assunto. A ordem encontra-se na estrutura formal da tragédia; a limitação diz respeito à extensão da tragédia. Estes princípios filosóficos são aplicados à literatura na Poética: “o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto, um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (…); e também não seria belo, grandíssimo.” (1450b). Não se encontra em Aristóteles, contudo, uma especulação sistemática sobre o belo. Em as Enéadas, Plotino também discorre brevemente sobre o assunto, pondo em causa a ideia de que o belo possa ser medido pela grandeza e pela ordem. Plotino segue ainda Platão e conclui que tais critérios apenas servem a beleza física, ignorando a beleza moral.

O conceito de belo entra na crítica da obra de arte de parceria com as noções de gosto, de equilíbrio, de harmonia, de perfeição – efeitos que se produzem no sujeito apreciador. Parece ser condição necessária ao despontar do sentimento do belo a sensação de prazer e/ou de simpatia. As duas principais conceituações clássicas do belo apresentam-no como “o que é agradável à vista e ao ouvido” (Platão, Hípias Maior, e S. Tomás de Aquino). Kant demonstra que o belo não pode ser só o agradável, porque o prazer estético pode neutralizar o prazer sensível e vice versa. O agradável provoca o desejo e está sujeito à predisposição do sujeito. O belo é sempre sensação subjectiva e desinteressada, não sendo determinado por nenhuma predisposição particular do sujeito. Kant dirá a propósito que o juízo sobre o agradável pressupõe o prazer provocado pelo objecto, enquanto o juízo sobre o belo é anterior ao prazer e condiciona-o.

Hípias propôs a Sócrates que o belo fosse o útil. Mas sabemos que são coisas distintas, porque as coisas úteis não são necessriamente belas e vice versa. O útil está circunscrito a uma situação particular e relativa; o belo é independente de qualquer condição. O belo julga-se por si mesmo, ao passo que o útil deseja-se em função de um propósito. Como observou Kant, o belo “agrada sem conceito”, porém só podemos dizer de algo que é útil quando o sujeitamos à experiência ou à ponderação.

O sublime não é apenas o belo elevado ao seu mais alto grau. Da mesam forma, por analogia, o bonito não é simplesmente o belo reduzido à sua expressão mais comum. O sublime exige a condição de ilimitado: é sublime o que se nos escapa no juízo imediato do belo. O sublime é aquilo que a imaginação não consegue deter; o belo é detível pela imaginação e encontra-se num objecto finito. O bonito (e todas as variantes de menoridade do belo como o gracioso, o lindo, o encantador, etc.) é o belo sem grandeza de espécie limitada. A avaliação de um objecto em termos de sublime, belo ou bonito é a mais subjectiva das actividades judicativas do homem. Trazida tal avaliação para a literatura, não se aceita hoje que tais atributos possam ser determinados objectivamente para a leitura crítica do texto literário. A crítica impressionista que dominou o século XIX pode reclamar o contrário, mas todas as correntes críticas do século XX tendem a não considerar os juízos meramente subjectivos como aceitáveis na apreciação das obras de arte literária.

Não é possível dissociar o belo do seu antónimo: o feio. O adágio “Quem o feio ama bonito lhe parece.” mostra que os juízos sobre o belo e o feio são potencialmente arbitrários. Se um objecto é considerado feio é porque não possui aquilo que se julga ser belo, mas como tal consideração é sempre subjectiva, o que é feio para uns pode ser até sublime para outros e vice versa. Nem o cómico pode servir de meio de apuramento do belo e do feio, porque tanto podemos rir de uma coisa bela como de uma feia, embora seja esta última, quando associada sobretudo ao ridículo, que provoca mais vezes o riso.

O belo só faz sentido para o homem, por isso tem que ser uma categoria que está presente no Ser do homem. Mas o belo não é determinante do Ser de todas as coisas para que se dirige. Daquilo que dizemos ser belo, extrai-se um juízo de valor que afecta a existência em si do objecto analisado. Como defende Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar (I, 2), uma coisa é bela em função de uma simples observação subjectiva, não se colocando em causa a existência que a coisa tem em si mesma. Kant distingue o belo do bom (o que agrada por meio da razão) e do agradável (o que exige a aceitação dos sentidos). O belo resulta de uma reflexão subjectiva sobre um objecto, sem haver necessidade de saber que coisa deva ser esse objecto (a não ser que queiramos determinar se ele é bom), ou seja, uma coisa bela não pede um conceito sobre a coisa em si. Uma flor pode ser considerada bela sem produzirmos um conceito sobre a sua realidade como flor. (Em termos estéticos, pensamos que a avaliação da beleza de uma obra de arte se faz de forma algo diferente da dos objectos comuns: dizer que uma obra é bela é criticamente redutor se não acrescentarmos algo sobre a natureza e o perfil dessa obra.) Como o juízo do belo é meramente contemplativo (por isso tem um alcance crítico limitado na apreciação de uma obra de arte) e sem qualquer interesse, não pode ser um juízo do conhecimento. Quer dizer, o belo não está alicerçado em conceitos nem tem por fim chegar até eles. A definição kantiana é então enunciada nestes termos: “O belo é o que é representado sem conceitos como objecto de um comprazimento universal.” (I, 6).

Desta definição parte Kant para uma importante distinção: “Há duas espécies de beleza: a beleza livre (pulchritudo vaga) e a beleza simplesmente aderente (pulchritudo adhaerens). A primeira não pressupõe nenhum conceito do que o objecto deva ser; a segunda pressupõe um tal conceito e a perfeição do objecto segundo o mesmo. (…) Flores são belezas naturais livres. (…) No entanto, a beleza de um ser humano (…) pressupõe um conceito do fim que determina o que a coisa deve ser, por conseguinte um conceito da sua perfeição, e é portanto beleza simplesmente aderente.” (I, 16). Os comentadores posteriores do belo parecem concordar com a existência de duas espécies de belo. Hegel começa a sua Estética distinguindo desde logo o belo artístico do belo natural. Este segundo tipo de belo (que equivale ao “belo livre” de Kant) fica de fora da estética que se deve ocupar apenas do belo criado pela arte. É a única forma de trazermos o conceito do belo para a teoria literária: o belo do texto literário é, invariavelmente, um belo artístico, conquanto a literatura seja uma obra de arte. Nenhum texto literário pode ter uma beleza como a do Sol, que é absoluta e não é um produto do génio.

Depois de concordar com a tese de Kant sobre a insustentabilidade da definição clássica do belo como unicamente o que agrada, convencido de que qualquer reflexão sobre o belo não pode limitar-se ao domínio do sentimento, Hegel defende o belo artístico como o único com interesse estético. O belo artístico é um produto do espírito, por isso só o podemos encontrar nos seres humanos e nas obras que eles produzem. Segundo Hegel, a Ideia do bem, da verdade e do belo completam-se, porque, em suma, só há uma Ideia. Tudo o que existe contém a Ideia. A estética ocupa-se em primeiro lugar da Ideia do belo artístico como ideal. O romantismo de Schiller, Goethe e Schelling definira o belo como o infinito no finito. Hegel completará este aforismo com uma reflexão especulativa mais ambiciosa: o belo, que do objecto aparece no sujeito, é “em si mesmo infinito e livre”.

A estética hegeliana foi desprezada no século XIX, vencida pelo psicologismo dominante. Em Itália, Francesco de Sanctis preservou a lição de Hegel e o seu sucessor, Benedetto Croce, com a Estética come scienza dell’espressione e linguistica generale (1902), redescobre a visão idealista do belo. Propondo a a abolição das fronteiras entre todas as artes e entre todos os géneros literários, Croce defende todo o acto artístico como expressão, origem do “lirismo”. Conquanto as obras de arte sejam formas de lirismo, serão sempre arte com valor estético. No marxismo, a estética de Hegel também encontrou defensores. Se os fundadores do marxismo apenas dedicaram ao problema do belo breves comentários, autores contemporâneos como Lukács e Brecht empenharam-se na definição do belo artístico como expressão do homem social, trabalhador e criador. Visando a unidade do verdadeiro, do bom e do belo, a estética marxista-leninista vai mais além da obra de arte na procura do significado do belo. Toda a obra de arte é um reflexo da consciência social. O belo não é uma realidade absoluta e intocável pelo humano: o belo é o resultado do trabalho humano realizado em comunidade.

{bibliografia}

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