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[Em port., “romance formativo ou romance de formação”; em ingl., coming-of-age novel ou apprenticeship novel.] Sendo possível traduzir o termo germânico por ‘romance formativo’ ou ‘romance de formação’, considera‑se mais adequado seguir o uso da história literária e manter a designação original, pois tal uso corresponde ao reconhecimento do Bildungsroman como contributo específico da literatura alemã. O termo foi cunhado em 1803 por K. Morgenstern e por ele desenvolvido como conceito amplo em textos surgidos c.1820, mostrando o carácter distinto e o valor artístico de obras como Agathon (1766‑67) de Wieland ou Wilhelm Meisters Lehrjahre [Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister] (1795‑96) de Goethe, a par da necessidade de integrar o romance alemão no contexto da produção europeia. No processo de afirmação e respeitabilização da forma romanesca, articulando ainda a vertente lúdica e de entretenimento exigidas pelo novo público leitor com a vertente moralista e didáctica tão ao gosto do Iluminismo, a inclusão no cânone literário das referidas obras revela já a passagem para um tipo de romance de cariz antropológico. Ao centrar o processo de desenvolvimento interior do protagonista no confronto com acontecimentos que lhe são exteriores, ao tematizar o conflito entre o eu e o mundo, o Bildungsroman voz ao individualismo, ao primado da subjectividade e da vida privada perante a consolidação da sociedade burguesa, cuja estrutura económico‑social parece implicar uma redução drástica da esfera de acção do indivíduo.

Apesar de a estética idealista hegeliana ter tomado o texto de Goethe como matriz do seu conceito de romanesco, nomeadamente ao definir como essencial ao romance o expor do “conflito entre a poesia do coração” e a “prosa das relações sociais”, Wilhelm Meisters Lehrjahre surge em 1817 (no Brockhaus‑Lexikon) como Bildungsgeschichte [história de ‘formação’], caracterizado ainda e apenas pelo tema do percurso individual e pela função de celebrar a humanidade. E se a teoria do romance oitocentista foi dominada na Alemanha pela presença de Wilhelm Meisters Lehrjahre, é apenas com W. Dilthey, em 1870 e, principalmente em 1905 com Das Erlebnis und die Dichtung, que o termo se impõe e o conceito se clarifica. O Bildungsroman adquire então o estatuto de forma específica no interior da tradição romanesca, usando como paradigma o texto de Goethe. As suas qualidades definidoras — depois aplicadas a muitos outros textos em diversas literaturas que procuram recriar o modelo iniciador deste tipo de romance até se tornarem constantes de carácter temático‑formal que tanto escritores como público aprenderam a reconhecer — estabelecem um conjunto de convenções .

É assim a partir das características consideradas por Dilthey como as mais marcantes do paradigma que passaremos a definir o Bildungsroman. O protagonista é uma personagem jovem, do sexo masculino (às mulheres não era, na época, possível a liberdade de movimentos que permite ao herói o contacto com múltiplas experiências sociais decisivas no percurso de auto‑conhecimento), que começa a sua viagem de formação em conflito com o meio em que vive, determinado em afrontá‑lo e recusando uma atitude passiva; deixa‑se marcar pelos acontecimentos e aprende com eles, tem por mestre o mundo e atinge a maturidade integrando no seu carácter as experiências pelas quais vai passando; em constante demanda da sua identidade, representa diferentes papéis e usa diferentes máscaras; sofre pelo imenso contraste entre a vida que idealizou e a realidade que terá de viver; o seu encontro consigo mesmo significa também uma compreensão mais ampla do mundo.

Este tipo de romance não inclui a morte do herói e termina de modo feliz, ou, pelo menos, não pressupõe danos irreparáveis. O romance organiza‑se pela aparente ausência de um princípio de unidade: a narrativa articula‑se em função da viagem espiritual do protagonista e não impõe aos diversos episódios uma sucessão lógica visível. Tem um carácter aberto, não conclusivo que possibilita o surgir de obras de continuação (em Goethe, Wilhelm Meisters Wanderjahre [Um Homem Feliz], 1821). É o caminho percorrido pelo protagonista que determina a estrutura da obra, tanto do ponto de vista temático como formal. A plasticidade da forma adequa‑se à multiplicidade de experiências necessárias à maturação do herói. Desde Goethe, a realidade histórica e o processo de amadurecimento surgem relacionados de modo muito íntimo; o tempo histórico é filtrado pelo tempo interior; o desenvolvimento da personalidade realiza‑se pelos caminhos do conflito e da dissonância até um estado de harmonia inicialmente difícil de entrever.

Embora não usando o termo entretanto consagrado por Dilthey, ao qual preferiu Erziehungsroman [‘romance educativo’ ou ‘romance de educação’], G. Lukács, ao publicar em 1916 a sua Theorie des Romans [Teoria do Romance], revisita a tradição hegeliana de historicizar as categorias estéticas, considerando o género como uma tentativa do homem moderno para reconciliar a existência com a sua essência (o eu verdadeiro), através da epopeia então possível. Solitário, em busca constante de um significado para a vida, o herói do romance opõe‑se à sociedade; do conflito entre valores universais e as realidades comezinhas do quotidiano decorre a instabilidade estrutural da forma romanesca. Wilhelm Meister surge, neste ensaio, como o tipo de romance que procura a síntese entre o ‘romance do idealismo abstracto’(cujo herói, exemplificado por Don Quixote, é um indivíduo problemático, que luta desesperadamente para encontrar uma relação entre os seus ideais e a vulgaridade prosaica do mundo exterior) e o que designa por ‘romantismo da desilusão’ (caracterizado por um protagonista passivo, virado para si mesmo, pois renuncia a qualquer acção, a priori encarada como inútil)

A presença dominante do Bildungsroman na literatura alemã oitocentista dera entretanto lugar a obras como a de Hoffmann, Lebens‑Ansichten des Katers Murr (1820‑22), considerado uma paródia a este tipo de romance, ao mesmo tempo que facilitara o surgir do Künstlerroman (v.) [‘romance de artista’], representado entre outros pelo texto de Novalis Heinrich von Ofterdingen (1802), cuja longa descendência até hoje se manifesta no reiterado encenar do conflito entre o artista e a sociedade.

O Bildungsroman joga com duas tendências fundamentais em toda a ficção: por um lado, manifesta a necessidade de expressar o mundo concreto, por outro, a necessidade de o superar. Da tensão entre a realidade e a possibilidade, entre o real concreto e presente e um real alternativo resulta um carácter híbrido neste tipo de romance que, segundo, entre outros, M. Swales, o aproxima da utopia enquanto forma literária.

Narrativa de uma subjectividade, o Bildungsroman é também afirmação de um compromisso com o social que acaba por vencer, deixando o protagonista reconciliado com o mundo concreto. Ao longo da obra surge perante o leitor uma perspectiva narrativa distanciada, assinalando a disparidade entre os objectivos do protagonista e os resultados alcançados; o narrador, já ‘formado’, assume uma atitude plena de ironia (v.), a posição de quem sabe mais e vê mais longe, não permitindo ao leitor qualquer equívoco acerca da imaturidade do protagonista.

O romance mantém um olhar vigilante sobre a acção formadora do tempo, os diversos momentos da história pessoal do protagonista são seleccionados para representar outros tantos degraus na sua compreensão do mundo e de si mesmo. A dimensão histórica do tempo é interiorizada e, mais importante do que o final do romance é o processo, o devir que vai revelando a dimensão de acaso que domina a vida em confronto com a firmeza de propósitos e as certezas que pareciam dominar o herói no início do percurso de aprendizagem. Pela relação semelhante com o tempo, pela abertura do final o Bildungsroman aproxima‑se da autobiografia, porém, segundo L. Köhn, distingue‑se desta pelo seu grau de abstracção da realidade, favorecendo aquilo que é universal no ser humano.

Resta‑nos perguntar se esta forma específica da arte romanesca resistiu no século XX ou se, pelo contrário, se encontra exaurida. A inclusão de um número maior ou menor de textos nesta tradição tem evidentemente dependido da maior ou menor amplitude que se atribui ao conceito, desde ensaístas e historiadores da literatura que o restringem a um período determinado da cultura de língua alemã até outros que, utilizando um critério muito lato, nele incluem textos produzidos em momentos históricos muito diversos e em circunstâncias literárias e socio‑culturais muito distintas, dando origem a um extenso elenco de romances nas literaturas dinamarquesa, russa, holandesa, inglesa e norte‑americana. Em 1984, Rolf Selbmann assinala só na literatura alemã uma vasta descendência que, passando pela revisitação paródica de Thomas Mann em Der Zauberberg [A Montanha Mágica] (1924) — desmontagem sistemática das expectativas de leitura da tradição e reforço (através do intuito de ampliar os limites da consciência do protagonista ) da sua componente ontológica, ia até Heinrich Böll e Günther Grass. Recuperado no pós‑guerra por escritores da Alemanha de Leste que, através dele, procuravam interpretar o carácter exemplar do processo de crescimento do herói a par com o crescimento da nova sociedade socialista, o Bildungsroman foi mais recentemente problematizado por autores como Christa Wolf ou Peter Weiss — a (im)possibilidade de ajuste entre o eu e o mundo continua central à experiência contemporânea e é hoje porventura mais dolorosa e dilacerante do que no tempo de Goethe. De salientar é também a crescente visibilidade feminina na literatura actual, propiciando numerosos romances onde a questionação do lugar da mulher na escrita e na cultura tem, entre múltiplas outras técnicas e estratégias artísticas, recuperado e revitalizado o venerando paradigma romanesco — veja‑se, por exemplo, Doris Lessing e The Golden Notebook (1962).

Ocupando o singular terreno entre o desejo (insano?) de totalidade e as múltiplas limitações em que a contemporaneidade se enreda, entre a possibilidade e um real (ainda) concreto, o Bildungsroman pode, apesar de tudo, continuar a dar voz ao conflito de uma sociedade dividida entre os valores de um humanismo liberal cioso de preservar o indivíduo e as exigências de uma humanidade em extenuante luta pela sobrevivência. No seu pendor ontológico, na importância concedida à discursividade, no debate intelectual que sempre tem promovido, o Bildungsroman se interpretado com a amplitude que, entre outros, Der Zauberberg lhe possibilitou e metamorfoseado pelas muito diferentes circunstâncias literárias e culturais — manterá a vitalidade.

{bibliografia}

Jerome Buckley: Season of Youth: The Bildungsroman from Dickens to Golding, 1974; Petra Gallmeister:‘Der Bildunsroman’, Formen der Literatur in Einzeldarstellungen, 1991; Jürgen Jacobs e Markus Krause: Der Deutsche Bildungsroman: Gattungsgeschichte vom 18. bis zum 20. Jahrhundert, 1989; François Jost:“ La tradition du Bildungsroman”, Comparative Literature, 21, 1969, pp. 97-115; Lothar Köhn: “Entwicklungs— und Bildungsroman. Ein Forschungsbericht”, Deutsche Vierteljahrscrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, 42. 1968, pp. 427‑73; Fritz Martini: “Der Bildungsroman. Zur Geschichte des Wortes und der Theorie”, Deutsche Vierteljahrscrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, 35. 1961, pp. 44‑63; Hans Heinrich Borcherdt: ‘Bildungsroman’, Reallexikon der deutschen Literatur, 1958; Rolf Selbmann: Der deutsche Bildungsroman, 1984; George Stanitzek: ‘Bildungs — und Entwicklungsroman’, Literaturlexikon: Begriffe, Realien, Methoden, 1992; Martin Swales: The German Bildungsroman from Wieland to Heine, 1978 e “Utopie und Bildungsroman” in Utopieforschung: Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, 1985.