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O termo deriva da palavra grega “kanon” que designava uma espécie de vara com funções de instrumento de medida; mais tarde o seu significado evoluiu para o de padrão ou modelo a aplicar como norma. É no século IV que encontramos a primeira utilização generalizada de cânone, num sentido reconhecidamente afim ao etimológico: trata-se da lista de Livros Sagrados que a Igreja cristã homologou como transmitindo a palavra de Deus, logo representado a verdade e a lei que deve alicerçar a fé e reger o comportamento da comunidade de crentes. Após a rejeição de certos livros denominados apócrifos, o cânone bíblico tornou-se fechado, inalterável, distinguindo-se neste aspecto do outro referente do cânone teológico, o conjunto de Santos Padres a que a Igreja Católica periodicamente acrescenta novos indivíduos, através de um processo chamado canonização. Importante para a história posterior do conceito é, pois, a ideia de que canónica é uma selecção (materializada numa lista) de textos e/ou indivíduos adoptados como lei por uma comunidade e que lhe permitem a produção e reprodução de valores (normalmente ditos universais) e a imposição de critérios de medida que lhe possibilitem, num movimento de inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do heterodoxo, do herético ou do proibido. Neste sentido, torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante num determinado contexto, teológico ou outro, e é isso que subjaze a expressões como “o cânone aristotélico”, “cânones da crítica”, etc.

Acompanhando o processo de secularização da cultura em marcha desde o Renascimento, o conceito e o termo vieram progressivamente a ser aplicados ao domínio da literatura, muitas vezes sob a forma de expressões como “os clássicos” ou “as obras-primas”. No entanto, pode afirmar-se que o núcleo semântico-ideológico posto em uso pela Igreja medieval se manteve relativamente intacto, o que autorizava, por exemplo, Carlyle, no século XIX, a dizer que “Shakespeare e Dante são Santos da Poesia; e, pensando bem, canonizados, pelo que se torna ímpio intrometer-se neles”. O cânone literário é, assim, o corpo de obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas “grandes”, “geniais”, perenes, comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração. Tal definição é válida, quer se trate de um cânone nacional, onde se presume que o povo se reconhece nas suas características específicas, quer se trate do cânone universal (de Homero a…), o que significa de facto, dada a própria origem histórica da categoria literatura, um cânone eurocêntrico ou, quanto muito, ocidental.

É possível fazer remontar o estabelecimento do cânone literário enquanto instituição social à escolarização da literatura moderna, que ocorre durante o século XIX, primeiro à margem das universidades, onde se privilegiava o estudo dos clássicos da Antiguidade canonizados por séculos de imitação e comentário, depois, já no início do século XX, na própria academia, onde se concretizava através de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos. Com a generalização da escolaridade obrigatória nas sociedades ocidentais, a escola passou a funcionar como o factor determinante de fixação e transmissão de cânones. Mais recentemente, porém, o conceito de cânone adquiriu visibilidade crítica no seio dos estudos literários organizados como disciplina e acedeu, de forma espectacular, à condição de problema central, não só do campo de conhecimentos, como também da estrutura institucional que o suporta.

Tal fenómeno, que fez do cânone simultaneamente um termo técnico e uma fonte de disputa, tem origens diversas, se bem que inter-relacionadas, entre as quais: a desvalorização da grande literatura como componente do capital cultural das sociedades pós-modernas (obrigada a competir com outros saberes e produtos culturais), a nova reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados (mulheres, minorias étnicas) e a sua repercussão no meio académico, a ascensão de modelos funcionalistas e relativistas do conhecimento na filosofia e outras áreas do saber.

Do ponto de vista da teoria literária, este último aspecto é talvez o mais interessante. Refere-se ele a todas as propostas recentes, explicita ou implicitamente inspiradas na filosofia de Wittgenstein, de problematização da concepção essencialista ou ontológica da literatura sobre a qual repousam as noções canónicas e canonizantes da obra de arte imortal, dos valores estéticos universais, etc. Resumindo, é possível provar que a categoria literatura não se define através de propriedades objectivas, referenciais ou formais que distingam de uma vez por todas certos discursos inerentemente literários de outros não-literários. Sendo assim, o literário é uma classificação de uso, descreve todos os discursos que uma comunidade de utentes considera como tal em função de critérios que são antes do mais sociais e históricos, pelo que um texto não nasce necessariamente literário e muito menos canónico, nem tem que se manter perenemente literário, posição esta que tem justificado recentes reivindicações de recanonização e descanonização. Como diz Terry Eagleton, “Tudo pode ser literatura e tudo o que é visto como inalterável e inquestionavelmente literário, Shakespeare, por exemplo, pode deixar de ser literatura” (Literary Theory: An Introduction, 1983).

Paralelamente a esta afirmação da socialidade e historicidade da categoria literatura, outro desenvolvimento que contribuiu para a relativização do cânone das grandes obras foi a prática – iniciada pelo estruturalismo e pela semiótica, mas já prenunciada pelos Formalistas russos – de estudar, lado a lado com a literatura canónica e em ambiente interdisciplinar, todo o tipo de actos e objectos simbólicos, desde os mitos, os contos populares, a literatura para crianças, a moda, a culinária, a banda desenhada, a publicidade, etc., de modo que nenhum sistema de signos, nenhum género ou tipo de texto, nenhuma forma discursiva é considerado “indigno” de ser investigado ou ensinado. Tal filosofia “descanonizante” preside à metodologia e à prática da nova disciplina de Estudos Culturais, que se tem estabelecido e rapidamente crescido um pouco por todo o mundo, mas com particular expressão nas culturas anglófonas (v. a este respeito Antony Easthope, Literary into Cultural Studies (1991) e “The Death of Literature”, Literature Matters, 14 (1993)). Outra área em que se pode verificar o forte impacto do assalto ao cânone tradicional é na reorganização curricular e programática dos cursos universitários. Em “Canons A(nd)Cross-Cultural Boundaries (Or, Whose Canon Are We Talking About?” (Poetics Today, 12 (1991)), Walter Mignolo transcreve a lista de leituras de um curso de humanidades na Universidade de Columbia em 1937, composta por 16 obras da Antiguidade e 19 clássicos da cultura europeia de Stº Agostinho a Goethe, em comparação com a bibliografia activa de um curso sobre “A Europa e as Américas” da Universidade de Stanford em 1988, onde a lógica reside inteiramente na representação da multiplicidade e confrontação de pontos de vista, de modelos textuais e genéricos, de fontes periodológicas e geoculturais.

Do acima exposto decorre que, hoje em dia, é possível encarar o cânone de dois modos distintos: enquanto objecto de investigação e enquanto tema de controvérsia. 1) Na primeira perspectiva, os conceitos de cânone e canonização têm sido apropriados pelas teorias sistémicas da literatura e da cultura, onde servem para descrever um dos processos privilegiados de funcionamento dos sistemas literários. Um sistema pode ser definido como uma totalidade auto-regulada composta por elementos em inter-relação. De acordo com os estudos empíricos da literatura, com origem na obra do teórico alemão Siegfried Schmidt, são quatro os elementos básicos do sistema de comunicação literária: produtores, intermediários, receptores e agentes de transformação. É a estes últimos (críticos, tradutores, imitadores, adaptadores, etc.) que cabe o papel sistemicamente central de canonizadores. A teoria do polissistema, primeiro desenvolvida em Israel por Itamar Even-Zohar, opera com os conceitos de centro e periferia, respectivamente a literatura canónica, legitimada pelos estratos sociais dominantes e a literatura marginal (popular, de massas, etc.). O acesso ao cânone, fonte de evolução do sistema, faz-se pela migração ou transferência de textos e normas estéticas da periferia para o centro. Finalmente a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu divide o “campo de produção literária” em dois grandes subsistemas: o campo de produção restrita, que se caracteriza pela denegação “vanguardista” do lucro imediato e das motivações económicas dos produtores, que se dirigem prioritariamente aos seus pares, e o campo de produção em larga escala, impulsionado pelas leis do mercado e produzindo para o público em geral obras de consumo fácil. No campo de produção restrita, a acção sistémica de um certo número de instituições, como as casas editoriais, a crítica, os prémios literários, a escola, é responsável pela “consagração” de autores e de obras, isto é, da sua canonização e sequente estatuto de “mercadorias” economicamente lucrativas. Com base nestes modelos teóricos se tem produzido muita investigação descritiva e empírica sobre a construção de cânones, por exemplo, estudando os critérios do discurso crítico-avaliativo, a constituição diacrónica de um cânone nacional, por vezes com recurso a instrumentos estatísticos. Alguma desta investigação pode ser encontrada na revista Poetics, que se publica em Amsterdão.

2) A segunda perspectiva surge nos anos 80, com particular incidência nos Estados Unidos, em parte por razões intradisciplinares – a imensa influência do discurso teórico na restruturação metodológica e curricular dos estudos literários -e em parte por razões sociais – o acesso à consciência de uma identidade própria por parte de grupos étnica e sexualmente definidos: os afro-americanos, os hispânicos, os homossexuais, as mulheres. É de salientar, a propósito, o êxito com que os estudos feministas arrancaram ao esquecimento dos arquivos tantas obras escritas por mulheres num passado remoto ou recente e que hoje circulam em edições de bolso e são estudadas nas escolas e lidas pelo público em geral.

Neste ambiente multicultural, o cânone das grandes obras e autores é visto como um instrumento de repressão e discriminação ao serviço de interesses dominantes, do poder branco e masculino e de uma ideologia de contornos patriarcais, racistas e imperialistas. A menos radical das reivindicações surge, então, sob a forma de revisão e abertura do cânone a textos representativos de saberes, classes e minorias tradicionalmente excluídos, numa espécie de suprimento da representatividade imperfeitamente assegurada pelas instituições políticas.

Este vasto movimento que vem agitando e transformando as universidades norte-americanas tem sido objecto de análises e críticas provenientes de pontos de vista opostos. A posição mais rigorosa é sem dúvida a de John Guillory que, em Cultural Capital (1993) e em artigos dispersos, argumenta, por um lado, que os defensores da abertura do cânone se esquecem que historicamente a exclusão não é resultado de uma conspiração política da classe dominante, antes ocorre ao nível dos meios de produção cultural, nomeadamente no acesso diferenciado à literacia; por outro, que o ataque à grande tradição é um sintoma do declínio das humanidades no mercado dos valores culturais. Outra posição, esta de contestação ao processo descanonizante, vem de sectores conservadores das próprias universidades, de associações políticas e meios de comunicação social e critica as suas motivações políticas e o que vê como a dissolução moral e pedagógica das instituições escolares, ao mesmo tempo que propõe um regresso à pureza dos valores da civilização ocidental e cristã. O mais influente e interessante porta-voz da atitude pró-canónica é certamente Harold Bloom, que em The Western Canon (1994) defende a supremacia estética de um conjunto de obras constitutivas de um cânone ocidental perene e permanente centrado em Shakespeare, “o escritor mais original que alguma vez conheceremos”.

bibliografia

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