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O termo provém do grego komodia, cuja raiz, kómos, designava uma festa popular. Desconhecendo-se, com exactidão, qual a génese da comédia, considera-se fidedigna a versão de Aristóteles, segundo a qual a comédia provinha dos ritos de fertilidade em homenagem a Dioniso. Tendo lugar no início da Primavera, tais ritos integravam-se na celebração do novo ciclo de vida, simbolicamente representado na figura do deus do vinho e da inspiração poética, e também na figuração fálica do processo de renovação da vida.

Os cantos entoados pelo povo em procissão ter-se-iam modificado ao longo dos tempos, passando a incorporar uma vertente satírica e jocosa que seria aproveitada a certa altura por algum poeta disposto a condensar, num texto, o teor desses cânticos laudatórios. Não se conhecem, porém, os tramites da configuração inicial da comédia na Grécia Antiga, restando-nos a noção de que aquela evoluiu ao longo de três fases: a comédia antiga, com quatro partes (prólogo, párodo, episódios e êxodo), cultivada por Aristófanes e cujos temas eram fundamentalmente de cariz político-social. A comédia intermédia, de autores como Antífanes, caracterizada pela ausência de coro e pelos temas de carácter mitológico. A comédia nova, que se debruça sobre os sentimentos e os costumes do ser humano, privilegiando o tema do amor entre jovens. Menandro é a grande referência, principalmente porque viria a influenciar a comédia latina, após o seu declínio na Grécia.

De entre os autores latinos, destacam-se Plauto e Terêncio, cujas obras se converteriam na principal fonte de inspiração no período renascentista. Plauto escreveu Amphitruo, Asinaria, Bacchides, Persa e Truculentus entre várias outras peças. No caso de Terêncio, são seis as peças que elaborou: Andria, Hecyra, Heautontimorumenos, Eunuchus, Phormio e Adelphoe.

Durante a Idade Média, a comédia parece não ter tido grande receptividade, e o próprio termo passa então a designar uma narrativa ou um poema com um desenlace feliz (é o caso da Divina Comédia de Dante). Só no fim desse período, mais concretamente após o séc. XIII, se recuperam algumas manifestações do espírito da comédia na representação de farsas e interlúdios. Com o Renascimento, o termo readquire o seu sentido primitivo, e os novos comediógrafos buscam inspiração nos autores greco-latinos, articulando nalguns casos essa inspiração com os vestígios de um drama medieval de forte pendor religioso.

Em Portugal, Gil Vicente elabora um conjunto de textos de sabor popular, estabelecendo condições para o florescimento de uma nova dramaturgia. Em Espanha, despontam nomes de relevo como Lope de Vega e Calderón de la Barca. Em Itália, a chamada commedia delll’arte já é representada por actores profissionais, e concebe personagens que se tornam típicas, como Arlequim e Colombina. Em Inglaterra, William Shakespeare e Ben Jonson desenvolvem determinados subgéneros da comédia, nomeadamente a comedy of humours, que Ben Jonson privilegia ao colocar ênfase no retrato satírico de determinados temperamentos e condutas, e a comédia romântica que Shakespeare cultiva em muitos textos dramáticos que giram em torno de histórias de amor ensombradas por obstáculos, mas com um final feliz.

Daí em diante e até aos nossos dias, a comédia desenvolveu-se segundo tendências variáveis em função dos contextos socioculturais. Tais variações consubstanciam-se na existência de subgéneros dentro da comédia, que vão desde a comédia sentimental até à comédia de costumes (ou comédie de moeurs).

Independentemente, porém, das flutuações responsáveis por essas subdivisões, a comédia enquanto género dramático tem sido alvo de inúmeras reflexões que visam apreender e definir os seus traços paradigmáticos, criando-se assim uma teoria da comédia que conta com alguns assinaláveis contributos.

Reportando-nos de novo a Aristóteles e à sua Poética, a comédia surge aí identificada com ‘limitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica que, sendo feia e disforme não tem expressão de dor” (Guimarães Editores, 1964, p.108).

A noção do ridículo, associável ao fenómeno do riso (humor), surge assim como fulcro desta visão da comédia que, implicitamente, consigna uma função correctiva. Uma tal função viria a ser sublinnada por vários críticos posteriores, como Sir Philip Sidney, quando afirma em Apologie for Poetrie (1595): ”Comedy is an imitation of the common errors of life, which he representeth in the most ridiculous and scornful sort that may be; so that it is impossible that any beholder can be content to be such a one” (Ginn and Company, 1890, p. 28).

Trata-se do papel morigerador que Jean de Santeul, poeta dos finais do século XVII, viria a retratar através da expressão “ridendo castigat mores” (corrige os costumes pelo riso). Aplicando-se sobretudo à comédia de pendor satírico, esta noção não tem, no entanto, o mesmo grau de pertinência no caso da comédia principalmente na chamada comédia sentimental. Muito cultivada no século XVIII por toda a Europa, esta era por vezes designada como comédie larmoyante, justamente porque provocava as lágrimas em vez do riso. Será, portanto, preferível não incluir este aspecto numa caracterização da comédia em geral. De modo a levar em conta as variantes deste género e a sua evolução diacrónica, há que definir a comédia em função dos traços que permanecem constantes, e dos quais, por conseguinte, não fazem parte nem o risível, nem a função correctiva.

Assim sendo, e tal como teóricos e críticos mais recentes têm sublinhado, a comédia caracteriza-se por uma configuração estrutural com algumas afinidades e algumas dissemelhanças em relação à tragédia. Em ambos os casos, encontramos uma acção dramática que, partindo de um precário equilíbrio inicial, se desenrola pelos meandros geradores de um desequilíbrio colectivo, para finalmente terminar com a consagração de uma nova ordem. Diferem, porém, no âmbito e na gravidade dos revezes e na dimensão dos conflitos e diferem, sobretudo, nos actos propiciatários da nova ordem. A necessidade do aniquilamento do herói como única forma de exorcizar o desconcerto do mundo na visão trágica, opõem-se o casamento e a reconciliação como gestos festivos que caracterizam o desenlace cómico. Consagra-se, assim, a vitória da sociedade sobre o indivíduo através de mecanismos que garantem a sua reinserção social. Trata-se de uma visão eminentemente optimista, firmada na celebração das potencialidades regeneradoras do tecido social e humano. Em conformidade, aliás, com as mais profundas raízes do género cómico, tal como ganharam forma há muitos séculos atrás, dentro dos rituais da Grécia Antiga.

bibliografia

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