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É um conjunto de observações subjectivas e objectivas que se fazem sobre um texto, de forma a revelar o seu sistema de ideias, a identificar a sua organização interna e a questionar a rede de intenções comunicadas (a intenção do autor desse texto, a intenção do leitor desse texto e a própria intenção textual comunicada). O que é que o texto diz? Como diz? O que me diz? – estas são as principais perguntas a que temos de dar resposta quando pretendemos fazer um comentário de texto. Para chegar a tais respostas é preciso, em primeiro lugar, chegar a um momento de síntese a que chamamos compreensão. Lemos um texto e, para falar dele, temos que o ter compreendido em primeiro lugar. O acto de falar do texto corresponde, por sua vez, ao acto de explicação, ou seja, o momento em que, uma vez compreendido o texto lido, estamos aptos a esclarecer os outros sobre aquilo que o texto diz, como diz e o que nos diz. O acto de compreensão do texto torna-se, a partir daqui, simultâneo em relação ao acto de explicação, porque explicamos para que os outros possam compreender. Este processo pode ser continuado infinitamente. Só podemos chegar ao comentário, depois de termos compreendido e explicado um texto.

Para atingir estes objectivos, é necessário respeitar uma determinada metodologia, que pode ser sintetizada da seguinte forma: 1. Ler atentamente o texto a comentar, pelo menos duas vezes. Desde logo, devemos assinalar todos os elementos do texto que nos ofereçam dificuldades de compreensão (vocábulos, referências concretas, conceitos complexos desconhecidos ou empregues em situações inesperadas). 2. Resolver todas as dificuldades encontradas, procurando nos dicionários e enciclopédias as respostas a todas as palavras e expressões que ofereceram dificuldade de compreensão. Nesta pesquisa, não se pretende analisar já o sentido das palavras desconhecidas, mas apenas registar e esclarecer a sua ocorrência. 3. Identificar o tipo de texto que estamos a ler. A que género literário pertence? Qual o modo que (o) representa? 4. Localizar o texto: trata-se de um excerto ou de um texto independente? No primeiro caso, identificaremos a obra original a que o excerto pertence, fazendo uma síntese do seu enquadramento geral; no segundo, limitar-nos-emos à síntese do enquadramento do texto autónomo na totalidade da obra do seu autor. 5. Indicar o tema do texto. A compreensão do texto passa por este primeiro teste que consiste em responder correctamente à questão: O que é que o texto diz? Não devemos confundir tema com assunto. O primeiro é a ideia fundamental que o texto quer provar ou desenvolver; o segundo, é a matéria ou objecto de que trata o texto. O assunto obtém-se por intermédio do resumo, que contém todos os elementos relevantes do texto. Para o comentário, interessa mais a definição do tema do que o resumo do texto. A extensão narrativa do assunto é sempre maior do que a do tema, que, pela sua extrema brevidade, se aproxima do título (mas não se confundindo obrigatoriamente com ele). 6. Determinar a estrutura do texto. Todo o texto possui uma estrutura interna, ou seja, os elementos que o constituem ordenam-se segundo uma lógica de sentido. Determinar tal estrutura significa, em termos simples, identificar os momentos em que podemos dividir o texto como um todo, possuindo cada momento, por si só, uma lógica de sentido própria. O conjunto dos momentos de um texto, sempre reduzidos a um mínimo razoável e justificável, dá-nos desde logo um plano esquemático do texto nas suas linhas fundamentais. O tema já definido terá de percorrer, de alguma forma, mesmo que implicitamente, os momentos determinados no texto. 7. Analisar a forma do texto. Nesta fase, esclarecem-se os processos estilísticos, linguísticos e/ou gráficos que o autor do texto utilizou na construção do texto. É fundamental não esquecer que esta análise só é justificável em função do nível de adequação da forma escolhida ao tema desenvolvido, isto é, o tema tem que estar representado em cada um dos processos analisados. 8. Elaborar uma conclusão, captando o essencial do texto.

Este tipo de comentário aproxima-se da análise de texto, distinguindo-se apenas pela possibilidade de nele podermos incluir juízos de valor subjectivos. Contudo, é possível distinguir um outro tipo: o comentário crítico, que pode incidir sobre textos que possuam eles próprios um conjunto de ideias personalizadas que sejam susceptíveis de discussão ou contra-argumentação. Tal acontece quando apresentamos um texto de opinião, por exemplo, sobre um tema geral ou particular ou sobre uma obra literária em particular. Partindo do nosso próprio conhecimento desse tema ou dessa obra, compete-nos então comentar ou confrontar aquilo que se diz com aquilo que pensamos ou com a forma como lemos o texto que foi objecto de apreciação pessoal. Este tipo de comentário crítico realiza-se tanto sobre textos literários como sobre textos não literários (mais frequentemente).

O comentário crítico é a metodologia corrente do ensaio literário, que se inspira numa ideia hoje em aberto no âmbito das discussões teóricas da literatura: a distância criativa entre um texto literário e um texto crítico, entre um Dichter (escritor criativo) e um Denker (pensador crítico). Geoffrey Hartman, no ensaio “Literary Commentary as Literature”, in Criticism in the Wilderness, defende que não há diferença entre ambos, servindo-se para isso do exemplo do Glas de Derrida. Acrescenta ainda, com toda a justiça, que a actividade crítica é tão exigente e inventiva como a actividade dita literária; o comentário crítico deve, portanto, ultrapassar o limite do comentário-análise, alargando os seus horizontes à retórica, que está associada por tradição unicamente ao texto literário.

A crítica literária é também inventiva e o exercício do comentário crítico no ensaísmo literário só devia ser entendido segundo este paradigma. Esta tese é defendida desde há muito, por exemplo, por Oscar Wilde em “The Critic as Artist”, in Intentions (1891), embora sendo desde logo violentamente rejeitada; T. S. Eliot recusará, ainda em 1956, no ensaio “The Frontiers of Criticism”, a mesma ideia; a crítica mais recente, sobretudo depois de Barthes, tende a ressuscitar a ideia de que a actividade especulativa é também ela própria criativa. Dizer o contrário é ressuscitar a velha querela entre imaginação e razão.

Como se usa a imaginação no comentário crítico? O encadeamento lógico de juízos apodícticos que é próprio da crítica literária não pode ser totalmente realizado sem a intervenção da imaginação construtiva, que se forma a partir de um jogo cognitivo de dissociação e associação. Para ler criticamente um texto é necessário formar combinações novas com elementos antigos, isto é, precisamos de dissociar primeiro os dados registados da memória, desagregando-os, a fim de poderem ser associados numa nova ordem. Dissociar significará, numa situação crítica ideal, libertarmo-nos de todas as ideias pré-concebidas para abrir caminho a todas as associações logicamente possíveis. Reflecte de alguma forma um despojamento cognitivo sem o qual não se pode ter acesso ao verdadeiro conhecimento do texto. É preciso esquecer para dizer algo de novo – eis um princípio que a crítica portuguesa, perdida no espectáculo da erudição do crítico, sem atender à erudição que o texto deve comunicar, desde sempre teve dificuldade em admitir. Ora, é a originalidade e a fecundidade das associações que determina o exercício crítico como faculdade criadora, tal como é no poder de dissociação e associação dos dados da memória transpostos para o texto que se funda tal faculdade. Podemos falar de uma imaginação crítica, que depende, na razão directa, desse poder. Em termos práticos, corresponde ao exercício de reconhecimento de todas as linhas com que o texto foi cosido, à forma de as re-alinhar, à conjectura sobre os seus conflitos internos, à formulação de hipóteses engenhosas, à averiguação de todas as lacunas e à expedição em busca de sentidos para todas elas. Esta complexidade deve quase tudo à capacidade de reinvenção lógica dos dados da memória. Se os utilizarmos dialecticamente, formulando e confrontando constantemente hipóteses de leitura e de construções de sentido, estaremos igualmente a fazer uso da faculdade imaginativa. A concepção de um teorema matemático utiliza exactamente a mesma faculdade. Uma retórica do comentário crítico levará consigo este selo da imaginação crítica, que permitirá, por exemplo, estabelecer a analogia dos sentidos e o parentesco das ideias ou reconstituir a lógica das formas gramaticais. E porque na lição de Pascal, a imaginação tanto pode ser mestra do erro como da verdade, assim a crítica tanto pode conduzir a um ou outro lado, precisamente porque nenhum leitor pode aspirar ao conhecimento absoluto do texto.

Bibliografia:

Antoine Berman: “Critique, commentaire et traduction: Quelques reflexions a partir de Benjamin et de Blanchot”, Po&sie, 37, 2 (Paris, 1986); Antonio Chicharro Chamorro: “Acerca del comentario de textos literarios como instrumento docente (significación actual y perspectivas del futuro)”, Revista de Literatura, 53, 106 (1991); Carlos Ceia: Textualidade – Uma Introdução (1995); Fernando Lázaro Carreter e Evaristo Correa: Cómo se comenta un texto literário (1970); Geoffrey H. Hartman: “Literary Commentary as Literature”, in Criticism in the Wilderness – The Study of Literature Today (1980); Maria Jorge Vilar de Figueiredo e Maria Teresa Belo: Comentar um Texto Literário (1990); Massaud Moisés: Guia Prático de Análise Literária (s.d); Raphael Nataf: “Commentaire litteraire et experience esthétique de la lecture “, Le Français dans le Monde (Feb./ Mar., supp., 1988).