Segundo a definição proposta por Henri Bergson: “Devemos distinguir entre o cómico que a linguagem exprime e aquele que a linguagem cria. O primeiro poderia, em rigor, ser traduzido de uma linguagem para outra, sujeito embora a perder boa parte do seu relevo ao passar para uma sociedade nova, diferente pelos seus costumes, pela sua literatura e sobretudo pelas suas associações de ideias. Mas o segundo é geralmente intraduzível. Deve o seu ser à estrutura da frase ou às palavras escolhidas. Não verifica, mediante o auxílio da linguagem, certas distracções particulares dos homens ou dos acontecimentos. Sublinha as distracções da própria linguagem. É a própria linguagem, aqui, que se torna cómica.” (O Riso: Ensaio sobre a Significação do Cómico, Relógio d’Água, Lisboa, 1991, pp.69-70). No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente explora este tipo de cómico em particular com a personagem Joane, o Parvo, tipo marginal e grosseiro por definição, a quem a sociedade não cobraria defeitos de expressão linguística, como
as célebres respostas em calão que dá ao Diabo que o quer encaminhar para a Barca do Inferno: “JOANE: Hou d’aquesta! / DIABO: Quem é? / JOA.: Eu sô. / É esta a naviarra nossa? / DIA.: De quem? / JOA.: Dos tolos? / DIA.: Vossa. / Entra! / JOA.: De pulo ou de voo? / Hou! Pesar de meu avô! / Soma: vim adoecer / e fui má-hora a morrer, / e nela, pera mi só. / DIA.: De que morreste? / JOA.: De quê? / Samicas de caganeira. / DIA.: De quê? / JOA.: De cagamerdeira, / má ravugem te dê!”. Outros exemplos no teatro vicentino, sempre modelar no recurso ao cómico, podem ser as interferências de dialectos ou estrangeirismos corruptos: a utilização de latim macarrónico (Auto
da Barca do Inferno), do Português africano (Frágoa do Amor), do árabe (Cortes de Júpiter), do dialecto das ciganas (Farsa das Ciganas), do Francês, Italiano e Castelhano (Auto da Fama).
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