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Termo de origem grega (kômikós), que chegou até nós pelo latim comicu-. De ampla aplicação, traduz, textualmente, a conciliação de ideias ou de situações aparentemente irreconciliáveis. Essa conciliação é produzida através de um raciocínio engenhoso com a intenção de produzir o riso através do texto literário.

A matéria cómica presta-se a uma dupla interpretação e, por essa razão, produz no espírito humano uma dupla impressão: de lógica e, simultaneamente, de absurdo. O riso é o resultado da nossa aceitação de duas ideias ou situações aparentemente irreconciliáveis. O cómico visa normalmente a solução de uma tensão através do riso. David Fairley-Hills considera a incongruência como fonte do cómico já reconhecida pela tradição: “The comic […] arises from the incongruities between opposed ways of regarding the same ideas or images. That incongruity is a necessary ingredient of the comic has long been recognised. In Renaissance theories of the comic the role of incongruity was thought to be crucial. Hutcheson bases his understanding of the comic on the function of incongruities: ‘the cause of laughter is the bringing together of images which have contrary additional ideas, as well as some resemblance in the principal idea.’ ” (The Comic in Renaissance Comedy, Macmillan Press, London, 1981, p.20).

Apesar de ser tradicionalmente associado à comédia, o cómico manifesta-se também em textos poéticos e narrativos. Por outro lado, o cómico não tem apenas um carácter lúdico associado ao prazer. O riso aparece muito frequentemente no texto literário associado a uma função didáctica, cumprindo a célebre máxima latina: “Ridendo castigat mores” (É com o riso que se corrigem os costumes). Entre as noções de cómico e comédia, podemos estabelecer algumas relações. De uma forma geral, a comédia provoca o riso, pondo em relevo excentricidades ou incongruências de carácter, da linguagem ou da acção. Na comédia, normalmente coexistem os vários tipos de cómico. O predomínio de um deles torna possível estabelecer as seguintes relações: o chamado cómico de situação, que resulta do próprio enredo, é característico da comédia de acontecimento ou de intriga; o cómico de carácter, resultante do temperamento das personagens, caracteriza a comédia de caracteres; o cómico de costumes, que explora as convenções e falsos valores da sociedade, é relacionável com a comédia de sociedade ou de costumes. Nesta última e na comédia de caracteres, a sátira assume-se como uma das mais fortes manifestações do cómico.

Além da sátira, podem também ser manifestações do cómico a ironia, o humor, a caricatura, o pastiche, a paródia, etc. Jean Sareil (1984) considera que uma das fontes privilegiadas do cómico textual consiste no recurso aos clichés, que tanto podem surgir tomados à letra como alterados.

Na história da Psicologia, da Filosofia e da Teoria Literária, existem diversas tentativas de explicação do fenómeno do riso. Aristóteles, na sua Poética, considera que o cómico consiste no prazer de nos rirmos daquilo que é desagradável ou que tem defeitos. Segundo Kant, seria na contradição entre a expectativa e a realidade que residiria a essência do cómico. Já para Schopenhauer, este resultaria da incongruência existente entre uma ideia e o objecto real a que se pretende aplicar essa ideia. Por seu lado, Vischer sugere o absurdo e a incoerência como causas do cómico.

O filósofo Francês Henri Bergson realizou um dos mais aprofundados estudos sobre o cómico. Na obra O Riso, encontram-se reunidos três artigos de fundamental importância para a compreensão dos mecanismos da comicidade. Bergson salienta que o cómico é um fenómeno exclusivamente humano, destacando ainda que este se dirige à inteligência. De acordo com esta teoria intelectualista, as emoções seriam um obstáculo à produção do riso. Seria assim necessária uma “anestesia momentânea do coração” (p. 19) para que o cómico produzisse o seu efeito. O vector essencial do pensamento deste filósofo consiste na ideia de que o riso tem uma função social (visa o aperfeiçoamento do Homem) e, por essa razão, o seu meio natural é a sociedade. Segundo este autor, “o riso deve preencher certas exigências da vida em comum, deve ter um significado social.” (O Riso, Guimarães Editores, Lisboa, 1993, p.21)

Os vários tipos de cómico surgem categorizados na obra de Bergson de acordo com uma perspectiva que faz residir na fusão entre o “mecânico” e o “vivente” a essência da comicidade. Assim, o cómico das formas resultaria essencialmente da rigidez adquirida por uma fisionomia e o cómico dos movimentos teria origem nas atitudes, gestos ou movimentos mecânicos com carácter repetitivo. Bergson associa a este tipo de cómico os artifícios usuais da comédia, referindo como exemplos “a repetição periódica duma palavra ou duma cena, a interversão simétrica dos papéis, o desenvolvimento geométrico dos quiproquós” (p. 37). O cómico de situação resultaria da repetição insistente de determinada acontecimento ou da inversão dos papéis das personagens face a uma dada situação. Poderia ainda resultar daquilo que Bergson designa como “interferência das séries” (p.74), ou seja, uma situação seria cómica quando pertencesse em simultâneo a duas séries de acontecimentos independentes e ao mesmo tempo se pudesse interpretar em dois sentidos opostos. O cómico de palavras teria origem na aplicação à linguagem dos processos de “repetição”, “inversão” e “interferência”. Ligado a este último tipo de cómico, estaria ainda a “transposição”. A paródia seria resultado de uma transposição do solene para o familiar. Por outro lado, o exagero resultante do processo de transposição da grandeza ou do valor dos objectos também poderia ser cómico. Bergson enquadra ainda neste processo a ironia e o humor. Concebendo a linguagem como uma obra humana, considera ser essa a razão por que ela pode produzir efeitos risíveis. Por fim, o cómico de carácter derivaria essencialmente da falta de integração da personagem na sociedade e de algo semelhante a uma distracção da própria personagem.

Também de fundamental importância, para uma tentativa de compreensão do fenómeno do riso, é o estudo realizado por Sigmund Freud, intitulado Os chistes e a sua relação como o inconsciente. Nesta obra, que se centra numa expressão concreta do cómico – a anedota – Freud procede à abordagem dos mais importantes meios de criação da comicidade. Concebe o cómico como um meio de obtenção de prazer e de superação da dor. Considera que para a compreensão da natureza do cómico é essencial estudar os meios que servem para tornar as coisas cómicas. Faz referência sobretudo à caricatura, à paródia e ao desmascaramento, considerando-os fontes de prazer cómico que resultam da degradação. Freud refere-se ainda à “disposição eufórica” como sendo a condição mais favorável à produção do prazer cómico. Também favorável a esse prazer seria, segundo esta visão, a “expectativa” do cómico. Por outro lado, seriam condições desfavoráveis o trabalho intelectual e os afectos.

Na obra The Art of Laughter, Neil Schaeffer desenvolve uma perspectiva de abordagem do riso que valoriza o papel do indivíduo no processo de criação da comicidade. Esse papel é, no entanto, definido de uma forma muito particular. Qualquer acontecimento está sempre sujeito a diversas interpretações, as quais dependem das instruções que presumimos estarem contidas nesse acontecimento ou que nós próprios impomos sobre o mesmo. É esse conjunto de instruções que, segundo Schaeffer, permite que o cómico se manifeste na mente daquele que observa, independentemente de o acontecimento ser literário ou natural. Schaeffer critica as teorias do riso que interpretam o cómico como meramente resultante de um trabalho de deformação da realidade por parte do artista. Dirige também a sua crítica à teoria que considera o riso uma reacção humana a tudo o que apresenta algo de risível. Opondo-se a essa perspectiva em que a imaginação tem um papel passivo, o crítico coloca a tónica não na valorização do objecto cómico, mas antes no sujeito que ri: “There can be nothing in nature that can be termed purely ludicrous without reference to the human nature that so perceives and laughs at it…” (The Art of Laughter, Columbia University Press, New York, 1981, p. 5). Os conceitos de incongruência e contexto são fundamentais na teoria desenvolvida por este crítico. Schaeffer defende que na origem do riso está uma incongruência apresentada num contexto do qual estão ausentes a moralidade ou a razão: “What the ludicrous context does is to suggest that for the purpose of pleasure, and during the extent of the ludicrous event, we may allow ourselves to suspend the rules by which we normally live – the laws of nature, the restrictions of morality, the sequences of logical thought, the demands of rationality – in short, we are encouraged to suspend the internal law of gravity, our seriousness.” (op. cit, p. 19). Schaeffer considera que o riso é o resultado de uma incongruência apresentada num contexto assim definido.

As reflexões sobre o cómico contam já, de facto, com uma longa tradição, embora nem sempre abonatória. Na sua famosa obra A República, Platão condenava o uso do cómico nas suas diversas manifestações. Aristóteles, na Poética, dedicou a sua atenção não só à tragédia e à epopeia, mas também à comédia. Cícero – com os livros Brutus, Orator e, fundamentalmente, De Oratore – assumiu uma posição de relevo na teorização do cómico. Quintiliano forneceu-nos também um prestável contributo com a exposição que fez sobre o cómico no Livro VI, Cap. 3 – «De Risu» – da sua obra Institutio Oratoria.

Intrinsecamente ligado à mente humana, o cómico tem surgido sempre associado ao Social. Como realça Wolfgang Keyser, “sem a uniformidade de disposição nos grupos não há cómico. É idiota […] aquele que, só para uso próprio descobre o cómico e ri sozinho, sem que os outros, à sua volta, se apercebam do ridículo.” (Análise e interpretação da obra literária, Arménio Amado, Coimbra, 1970, p.302). E é só porque o cómico pode assumir uma dimensão social é que, aliado à sátira, pode cumprir uma função didáctica associada à correcção dos costumes. Aliás, essa tradição de pendor moral deixou fortes marcas na literatura portuguesa. Embora centrada em textos literários do século XV, a obra de Mário Martins intitulada O riso, o sorriso e a paródia na literatura portuguesa de quatrocentos é bastante elucidativa da função moralizadora do cómico, comprovando que o riso pode ser prazer e também aprendizagem.

bibliografia

David Farley-Hills: The Comic in Renaissance Comedy (London, 1981); Henri Bergson: O Riso (Lisboa, 1993); J. Cândido Martins: Teoria da Paródia Surrealista (Braga, 1995); Jean Sareil, L’Écriture Comique (Paris,1984); Mário Martins: O riso, o sorriso e a paródia na literatura portuguesa de quatrocentos (Lisboa, 1978); Neil Schaeffer: The Art of Laughter (New York, 1981; Sigmund Freud: Os chistes e a sua relação com o inconsciente (Rio de Janeiro, 1977); Wolfgang Keyser: Análise e interpretação da obra literária (Coimbra, 1970).