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Conceito divulgado por Jonathan Culler, a partir da linguística chomskiana, para traduzir o grau de conhecimentos que um indivíduo deve ter para poder ler um texto literário. Este conceito permite-nos saber que existe uma competência linguística (competence/performance) que é comum a todos os falantes de uma língua, mas que não é suficiente para nos habilitar a ler criticamente um texto literário de forma tecnicamente correcta. Esta importação de um conceito restrito da gramática generativa, onde apenas diz respeito à formação de frases gramaticalmente correctas, para a literatura levanta algumas objecções: limita-se à recepção da obra de arte literária; é determinada apenas por factores culturais, ficando de fora a possibilidade de se adquirir geneticamente a competência literária, como está previsto no sistema de Chomsky; só pode ser adquirida por meio de um ensino especializado, ao contrário da competência linguística que o dispensa, porque podemos comunicar verbalmente sem termos sido formalmente ensinados para isso. De qualquer forma, o conceito deve entender-se apenas como uma forma de distinguir a capacidade de um indivíduo para leitura literária, que lhe permite reconhecer a especificidade de um texto literário, respeitando o modo e o género literário a que pertence, o contexto que o caracteriza e a tradição em que se inscreve.

O conhecimento adquirido por um falante nativo da sua própria língua é de natureza dogmática: a linguística ocupa-se de dados finais sobre a forma e o sentido das palavras e das frases, não os interrogando ou refutando (tarefa da teoria literária — modo de expressão da competência literária), mas descrevendo o seu funcionamento. Sejam dadas as seguintes frases:

(1) A Sandra gosta de ajudar.

(2) A Sandra gosta de ser ajudada.

Um falante de português sabe distinguir facilmente o sentido das frases: em (1), Sandra ajuda os outros; em (2), Sandra é ajudada pelos outros. Um linguista não se pré-ocupa deste tipo de concretização simples da competência linguística, porque não lhe interessa o sentido das frases numa perspectiva dialéctica. A tarefa da linguística é a de descrever a estrutura das frases (nos exemplos apresentados, equivale à identificação das funções sintácticas dos elementos frásicos, à natureza activa da frase (1) e à natureza passiva da frase (2), ao tipo de construção verbal, à classificação morfológica das palavras, etc. Enquanto conhecimento técnico da língua, a competência linguística permite classificar as diferenças de sentido das frases, com o fim de estabelecer uma norma. A literatura não obedece a normas fixas nem a esquemas estruturais rígidos — se a linguística procura determinar a possibilidade de uma frase significar, a literatura parte da possibilidade de uma frase poder significar múltiplas coisas e de todos os sentidos possíveis poderem ser sujeitos a uma processo de leitura interpretativa. O sentido apreendido pela competência literária pode ser aberto, instável ou indeterminado, não sendo a sua natureza que calcula o nível de competência do leitor. O que acontece é precisamente o contrário: é a competência do leitor que pode trabalhar (e dizer) todas as possibilidades de sentido de um texto literário, sem se pretender estabelecer uma norma geral. Uma frase deve ter sempre o mesmo sentido para todos os linguistas, mas o mesmo texto não terá certamente o mesmo sentido para todos os leitores.

Quando os estudos literários assumem uma posição teórica próxima da linguística, reduzem a competência literária a uma equação linguística. Nestes casos (e tal aconteceu, por exemplo, com os formalistas russos e com os estruturalistas), aproximamo-nos do domínio da poética. A literatura dispensa então a interpretação livre dos textos e a refutação do sentido, para limitar-se à descrição de um dado conjunto de convenções formais que tendem a fixar um único sentido. A competência literária exercida como uma competência poética observa apenas o texto literário em termos de performance linguística, que obedece a um código pré-determinado. Como a literatura envolverá sempre um elevado grau de incerteza sobre o sentido verdadeiro de um texto, não é possível estabelecer de forma tão simplista esta analogia entre a competência literária e uma competência poética. Se esta nos permite estabelecer a diferença entre as frases (1) e (2), por exemplo, não será nunca um dado adquirido que esta mesma competência deduza daí uma lei geral que sirva qualquer confronto entre dois textos literários.

Os estudos literários pós-estruturalistas têm privilegiado, por isso, não a poética, mas uma nova forma de hermenêutica como modo operativo mais próximo do desejo do leitor moderno: a competência literária diz-nos não tanto o modo de funcionamento de um texto literário, mas antes possibilita descobrir nele aquilo que se aproxima do nosso mundo quotidiano. A competência literária, sob este ponto de vista, será aquela força ou furor que nos permite encontrar num texto literário não só os reflexos da nossa própria experiência individual mas também os traços que nos identificam culturalmente. Em qualquer caso, a ideia de competência literária implica colocar o trabalho literário na dependência de um só dos seus intervenientes: o leitor. Propostas teóricas como a estética da recepção ou a reader-response criticism têm procurado demonstrar que o sentido de um texto resulta unicamente da experiência (ou seja, da competência) do leitor. Mas é justo recordar que o conceito também permite falar de uma competência literária do autor, que, neste caso, se confundiria com termos como arte, engenho, génio, inspiração, imaginação, estilo, etc.

bibliografia

Jonathan Culler: The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction (1981); idem: Struturalist Poetics: Struturalism, Linguistics, and the Study of Literature (1975); idem: Literary Theory: A Very Short Introduction (1997); Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Competência Linguística e Competência Literária – Sobre a Possibilidade de uma Poética Gerativa (1977).