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1. Na literatura, o termo é de origem italiana (concetto) e funciona como uma figura de estilo que compara duas coisas à partida diferentes entre si. Este sentido retórico é preciso e não se confunde com a noção de conceito em termos filosóficos, daí, por exemplo, a ocorrência em inglês de dois termos para a palavra única em português conceito: conceit (na acepção retórica); concept (na acepção filosófica); em castelhano, permanece também um único termo para as duas acepções: concepto.

Um conceito que não consiga ser mais do que o resultado de uma comparação convencional e esperada, como, por exemplo, é frequente nos sonetos de amor de Petrarca — como nesta Canzone 8, “Quando a gli ardenti rai neve divegno” —, não consegue funcionar como um meio de aquisição de conhecimento, como é vulgarmente aceite em filosofia da linguagem. Petrarca utilizou o conceito de forma padronizada, criando um estilo próprio em poesia que seria, aliás, muito imitado. Um género provençal denominado blason é já uma outra forma de conceito comparável às imagens convencionais de Petrarca. O conceito petrarquista recorre sobretudo a comparações poéticas entre um sujeito (geralmente apaixonado ou despertador de paixões) e uma rosa, o Sol, o Oceano, uma estátua, pérolas, corais, etc. Como os poetas isabelinos tivessem abusado deste tipo de conceito, Shakespeare satirizou-os no soneto 130 “My mistress’ eyes are nothing like the sun; / Coral is far more red than her lips’ red ” (1609).

No século XVII, tanto os poetas metafísicos ingleses como os poetas barrocos latinos jogam com conceitos, que, na essência, pouco se distinguem dos popularizados por Petrarca, diferindo talvez apenas no grau de intelectualização das imagens. Por exemplo, o poeta metafísico inglês John Donne, em “A Valediction: Forbidding Mourning” (1633), compara a união das almas de dois amantes a um compasso de desenho:

If they be two, they are two so

As stiff twin compasses are two;

Thy soul, the fix’d foot, makes no show

To move, but doth, if th’other do.

And though it in the centre sit,

Yet when the other far doth roam,

It leans and hearkens after it,

And grows erect as that comes home.

As comparações elaboradas e estranhas entre objectos aparentemente distintos é a estratégia privilegiada para a construção conceptual metafísica.

De acordo com os teóricos da poesia barroca, o conceito é a melhor via para atingir o conhecimento do mundo. Gracián define-o como “un acto del entendimiento, que exprime la correspondencia que se halla entre los objetos” (Arte de ingenio, tratado de la agudeza en que se explicam todos los modos y diferencias de conceptos – 1ª ed., 1642; Agudeza y arte de ingenio, é o título da versão definitiva em 1648 – , II). Em Portugal, a teorização sobre o conceito engenhoso é tardia, em relação à Espanha, sendo de destacar a Nova Arte de Conceitos (1718-1721), de Francisco Leitão Ferreira.

Muitas vezes, os conceitos eram de tal forma artificiais e forçados que se tornavam absurdos. O Romantismo acabaria por desprezar a sua utilização, mas os poetas simbolistas do final do século XIX e outros poetas do inicío do século XX. Emily Dickinson, por exemplo, num poema de 1890, oferece-nos ainda o mesmo tipo de conceptualizações que vemos nos poetas barrocos:

Because I could not stop for Death —

He kindly stopped for me —

The Carriage held but just Ourselves—

And Immortality.

Lemos abstracções deste tipo ainda em poetas portugueses como Eugénio de Castro, em A Caixinha das Cem Conchas (1923):

O Amor é róseo, a Dor, negra,

Mas nesta vida amargosa

O amor enegrece às vezes

E a Dor faz-se cor de rosa.

T. S. Eliot foi também um grande admirador do wit do século XVII. No poema “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, descreve o anoitecer em termos conceptistas: “When the evening is spread out against the sky / Like a patient etherised upon a table”, explorando quer a agudeza intelectual quer o despertar de emoções. O artifício do paradoxo acompanha com frequência estas novas conceptualizações.

2. Em termos de filosofia analítica, um conceito é a representação intelectual, complexa e abstracta da essência de um objecto, o que permite distingui-lo de outros termos tidos tradicionalmente como equivalentes: ideia e pensamento. O conceito é o principal alimento da reflexão filosófica, intimamente ligado a todos os problemas da linguagem. O conceito filosófico é de natureza lógica e não meramente intelectual (como se supõe na retórica barroca). Se quiser escrever uma obra sobre O Conceito de Ironia, por exemplo, não me preocupo com os factos empíricos que registam a ironia, mas antes procuro investigar as suas ocorrências lógicas. Se quiser investigar os registos lógicos da ironia num dado discurso, terei de investigar sobretudo o conceito de ironia em si mesmo, para o que necessitarei de um determinado conhecimento sobre o conceito na tradição filosófica e literária.

A teoria literária partilha com a especulação filosófica a dependência dos conceitos para a construção dos seus universais. O mesmo conceito não serve necessariamente todos os objectos, por exemplo, o conceito de sujeito terá uma definição própria para um psicanalista, para um filósofo ou para um teórico da literatura. Cada ciência investiga os seus fundamentos procurando os melhores conceitos para os objectos que estudam. Dependendo do ponto de vista especulativo, os conceitos tanto podem ser considerados produtos da mente (como admitem os conceptualistas), produtos não mentais (como admitem os realistas), ou produtos individuais (como admitem os nominalistas). As diferentes representações dos conceitos tornam possível a teoria. Se a cada objecto correspondesse um único e autêntico conceito, ou se para dois objectos tivessem que existir obrigatoriamente dois conceitos distintos e independentes, não existiria especulação possível e o trabalho de fixação de um conceito assemelhar-se-ia ao trabalho de comprovação dos elementos da tabela periódica.

Um artigo de dicionário sobre o conceito de conceito levanta os mesmos problemas que um artigo sobre o sentido do conceito de sentido. É talvez a maior dificuldade epistemológica, porque traz implicações em todas as propriedades que constituem o pensamento. Por alguma razão não existe uma teoria sequer na história do pensamento ocidental sobre o conceito de conceito. Correctamente, todos os teóricos preferem investigar a geografia dos conceitos em vez de proporem regras definitivas. Isto não significa que a conceituação de um objecto não seja nunca possível de alcançar, o que não podemos esperar é que a relação conceito-objecto respeite uma lógica universal.

Descrever um conceito é uma tarefa semelhante à explicação que fazemos das coisas, do seu funcionamento, da sua natureza, das suas causas e dos seus efeitos. Apresentar um conceito de sujeito equivale a encontrar uma explicação para aquilo que reconhecemos como sujeito. A regra mais geral leva-nos a enunciados predicativos para a definição de um conceito: “o sujeito é”, ”o sujeito actua”, “o sujeito mostra-se”, etc.

Um conceito literário define-se em função de um referente directo ou de um referente ideológico: um texto A é um referente directo do qual posso enunciar propriedades tão diversas como: “A é um texto epistolar”, “A é um texto confessional”, “A é um resumo”, “A é um texto anónimo”, etc.; uma propriedade de um texto A é um referente ideológico o qual permite definições do tipo: “o género epistolar diz respeito à redacção de cartas”, “o confessionalismo exige um discurso reservado e intimista do sujeito”, “um resumo é um texto breve”, “um apócrifo é um texto anónimo”, etc. A diferença entre um conceito lógico, por exemplo, e um conceito literário reside na resistência que este último oferece a formulações dogmáticas, definitivas ou universais. Não posso responder às duas questões (metafísica e epistemológica) que um conceito tem de respeitar — “O que é que determina aquilo que é?” e “Como é que determinamos aquilo que é?” — exactamente nos mesmos termos que outros intérpretes o podem fazer. Se é consensual que o conceito de resumo aponte para um texto breve, já não é garantido que, para todos os exegetas literários, o confessionalismo exija um discurso reservado e intimista do sujeito que se confessa. O que é “reservado e intimista” para mim pode não o ser para os outros leitores. A teoria da literatura começa quando um dado conceito não consegue fixar-se, quando não obtém a mesma resposta para dois leitores diferentes. O facto de um dicionário fixar um dado conceito não significa que o enunciado conseguido seja o único válido. Os conceitos literários possuem inclusive a propriedade de se desmultiplicarem semanticamente: dois dicionários de termos literários dificilmente nos oferecerão o mesmo conceito de alegoria, literatura, texto, narrador, tempo, teoria, voz, etc. Isto significa que um conceito literário não deve ser tomado como uma evidência. É a tradição que determinará qual dos conceitos apresentados numa dada época ficará a representar o pensamento dessa época. Quando o conceito sobrevive ao tempo, com uma satisfatória aprovação geral, dizemos que se trata de um conceito clássico. Por exemplo, o conceito de alegoria atribuído a Quintiliano, no Institutio oratoria, onde afirma que é uma “metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”, pode dizer-se que representa o conceito clássico de alegoria. Estes conceitos têm um carácter atomístico, pois tendem a não sofrer mais nenhum processo de análise. Pelo contrário, os conceitos não clássicos são aqueles que estão ainda sujeitos a análise, no momento histórico em que são propostos ou ao longo da sua própria história.

Um conceito literário também não nasce por um efeito de contraposição entre duas proposições, de tal forma que a existência de uma pressuponha a não existência ou a total incompatibilidade com a essência da outra. Por exemplo, não podemos decidir por um conceito de símbolo em função de tudo aquilo que não é símbolo. Se este procedimento que nos obriga a conhecer a natureza e a contra-natureza de uma coisa nos pode servir em muitos casos, não é seguro para todos os conceitos literários. Veja-se o caso de uma das mais complexas oposições neste campo: posso apresentar um conceito de texto literário baseado em deduções sobre todos os textos que não sejam literários: privilégio da objectividade, discurso referencial e denotativo, ausência de figuras de retórica, formas discursivas fixas, etc., porém, tudo isto é possível servir a definição de muitos textos literários. Este velho raciocínio empirista, o qual assegura que uma pessoa terá acesso ao conceito de azul se souber discriminar coisas azuis de outras que o não são, é apenas o início do problema de descrição de um conceito literário. Além disso, muitos conceitos literários não suportam este tipo de raciocínio, ou como poderíamos dizer o que é uma aposiopese, um arquivo, a ciberliteratura, a deixis, um madrigal, uma resenha, o saudosismo, etc. a partir daquilo que não são? Encontrar o contraponto destes termos equivale a entrar no universo de praticamente todos os termos possíveis de identificar num dicionário de termos literários.

bibliografia

  1. A. García Berrio: “Quevedo y la conciencia léxica del ‘concepto'”, Cuadernos Hispanoamericanos, 361/362 (1980); D. L. Guss: “Donne’s Conceit and Petrarchan Wit”, PMLA, 78 (1963); Eduardo Lago: “Agudeza y arte de ingenio: Un arte del concepto”, tese de doutoramento, City University of New York, (1995); Mercedes Blanco: “Qu’est-ce qu’un concepto?”, Les Langues Neo-Latines,79:3 (1985); Virginia R. Foster: “Baltasar Gracián y los conceptos de la poesia antes de la Agudeza y arte de ingenio“, Hispanofila, 35 (1969).
  2. C. Peacock: A Study of Concepts (1992); E. Smith e D. Medin: Categories and Concepts (1981); G. Bealer: Quality and Concept (1982); G. Rey: “Concepts and conceptions”, Cognition, 19 (1985); H. H. Price: Thinking and Experience (1954); J. Fodor: A Theory of Content (1991); Jules Vuillemin: “Conceito”, Enciclopédia Einaudi, vol.37 (1997); K. K. Ruthven: The Conceit (1969); R. Carnap: The Logical Structure of the World and Pseudo-problems in Philosophy (1969).