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Estéticas dominantes na poética barroca, em particular na literatura castelhana, representadas nas chamadas escolas de Quevedo (conceptismo) e de Góngora (cultismo). É no ensaio que estas estéticas mais são discutidas. Para o conceptismo, são referências maiores Francisco Gómez de Quevedo y Villegas, em Los sueños (1627) e Baltasar Gracián, que codificou o estilo em Agudeza y arte de ingenio (1648). O cultismo teve em Luis de Góngora y Argote o seu maior teorizador, que nos legou como obra de referência Soledades (1613), levando o cultismo a tais extremos que o nome gongorismo passou a simbolizar afectação literária.

No século XVII, esta diferenciação entre duas “escolas” não estava consagrada, apesar das polémicas em torno da obscuridade e do elitismo da poesia conceptista, e em torno do refinamento e da artificialidade da poesia cultista. Alguma crítica insistiu na oposição entre os dois movimentos, como o comprova o comentário de António Sérgio: “A primeira distinção é a de estremar o cultismo do conceptismo, outrora empregados como sinónimos. É o cultismo um artifício de forma, ao passo que o conceptismo o é de conteúdo. Aquele, em suma, promana do relevo dos elementos linguísticos, ou dos factores pictóricos e dos musicais; o conceptismo, pelo contrário, consiste na busca de relações fictícias, de aproximações artificiais entre seres e ideias — relações arbitrárias para o pensamento lógico (para a inteligência científica), mas não arbitrárias para o “agudo engenho”… Por outras palavras, poderíamos definir a tendência cultista: um abuso ou artifício da fantasia no campo psicológico da representação sensível, perceptivo; e a conceptista: um abuso ou requinte da fantasia nos domínios próprios do entendimento, do pensar formal.” (Ensaios, Tomo V, 2ª ed., Sá da Costa, Lisboa, 1955, p.120). Tornou-se, pois, um lugar comum na poética barroca contrapor o conceptismo ao cultismo (tomado como um refinamento daquele), porém aceita-se hoje que os dois movimentos estilísticos não são antitéticos. Não é correcto diferenciá-los também como um problema de pensamento (conceptismo) e um problema de expressão (cultismo). Ambos procuram um determinado aperfeiçoamento estético, apenas utilizando diferentes meios para esse fim. De referir que todos os poetas barrocos, sem diferenciação de escola, acabam por utilizar conceitos, ao ponto de o próprio Góngora ser apontado por Gracián como modelo de tal prática engenhosa. Como conclui Maria Lucília G. Pires, “temos, pois, uma polémica que não se trava entre cultistas e conceptistas, mas entre cultistas e anticultistas. A relação entre eles, no entanto, é mais de gradação que de oposição, pois todos comungam de idênticos valores literários que caracterizam a estética barroca: um conceito aristocrático de poesia destinada a receptores cultos, o deleite como sua função essencial se não mesmo única, a valorização da agudeza conceptual.” (Biblos, s.v. “Conceptismo”, Verbo, Lisboa, 1995).

O escritor conceptista trabalha a possibilidade de um conhecimento correlacional ou analógico das coisas, em detrimento da descrição directa. A realidade externa não interessa ao poeta conceptista, que prefere as visões intimistas, religiosas e morais. A agudeza demonstrada neste trabalho conduz-nos a uma maior inteligibilidade das coisas conceptualizadas, produzindo assim o ideal estético do discurso engenhoso. Gracián considera autores conceptistas Quevedo e Lope de Veja. Nos cancioneiros barrocos portugueses abundam imitações do estilo, como neste soneto anónimo sobre a “Definição do Amor”:

É um nada Amor que pode tudo,

É um não se entender o avisado,

É um querer ser livre e estar atado,

É um julgar o parvo por sisudo;

Os artifícios retóricos a utilizar para conseguir a clareza dos conceitos são: a comparação, a metáfora, a alegoria, a antítese, o paralelismo, etc. Embora seja possível atestar este tipo de artifícios nas líricas trovadoresca, palaciana e renascentista, são os poetas barrocos que mais os utilizam, combinando-os com outras figuras de retórica como a paronomásia, o calembur, o equívoco, a anfibologia, a zeugma, o paradoxo, etc. A poesia cultista também recorre aos mesmos artifícios, porém com outros objectivos, produzindo jogos de palavras como estes num soneto de uma poetisa anónima portuguesa, dedicado “Ao amado ausente”:

Se apartada do corpo a doce vida

Domina em seu lugar a dura morte,

De que nasce tardar-me tanto a morte,

Se ausente d’alma estou, que me dá vida?

Literatura de evasão, o cultismo é uma estilização do mundo conquistada graças a jogos complexos de palavras, que não raro acabam em exageros de linguagem e em formas de expressão de difícil leitura para um iniciado. Já na época, outros poetas barrocos não deixaram de criticar, parodiar e satirizar este estilo, como o fez D. Tomás de Noronha, no soneto com o título jocoso “Às poesias que se fizeram a uma queimadura da mão de uma senhora”:

Ó mão não de cristal, não mão nevada,

Mão de relógio, sim, pois que pudeste,

Nesta mísera terra em que nasceste,

Fazer dar tanta infinda badalada.

Os poetas espanhóis do movimento de vanguarda do século XX redescobriram as fórmulas barrocas conceptistas e cultistas, contribuindo também para a consagração histórica de Quevedo e Góngora, cuja reputação não fora até aí considerada.

bibliografia

Emilio Hidalgo Serna: “Orígen y causas de la ‘agudeza’: Necessaria revisión del ‘conceptismo’ español”, in Actas del IX Congreso de la Asociación Internacional de Hispanistas (2 vols., 1989); Hernâni Cidade: A Poesia Lírica Cultista e Conceptista (1938); Maria Teresa Hernandez: “La teoría literaria del conceptismo en Baltasar Gracian”, Estudios de Linguistica, 3 (1985-86); Mario Praz: Studi sul concettismo (1946); Maurice Molho: “Apuntes para una teoría del cultismo”, Bulletin Hispanique, 87:3/4 (1985); Maxime Chevalier: “Conceptisme, culteranisme, agudeza”, Dix Septième Siècle, 160 (1988); Menéndez y Pelayo: Historia de las ideas estéticas en España (1844-91); Mercedes Blanco: Les Rhetoriques de la pointe: Baltasar Gracian et le conceptisme en Europe (1992); Rafael Lapesa: “El cultismo semantico en la poesia de Garcilaso”, Revista de Estudios Hispanicos, 1:4 (1972); Suzanne Valle Killeen: “La ideologia del conceptismo: Origenes”, Circulo, 13 (1984).